Desaproriação de terras indígenas do Jaraguá traz a tona o debate sobre a história dos ancestrais
Por Laura Viana, Jornal do Campus
“Vamos resistir até o último guerreiro, com as nossas vidas, com o nosso sangue! É muito pouco o que pedimos perto de tudo o que os brancos tomaram de nós e não podemos abrir mão de nem mais um palmo de terra.”
Com estas palavras, o manifesto guarani contra a reintegração de posse das terras do Jaraguá nos lembra de que a história indígena no Brasil pós-colonização tem sido uma história de usurpação. O português do século XVI serviu ao brasileiro contemporâneo como ótimo professor no que toca a apropriações indevidas de territórios e matanças generalizadas em nome do deus desenvolvimento (de quê e para quem, resta-nos saber), e, acima de tudo, ensinou valiosamente como varrer os corpos para baixo do tapete e seguir fingindo como se nada tivesse acontecido.
Foi este eterno estado de negação que permitiu, entre outras atrocidades, que os massacres realizados pelos Bandeirantes – hoje, heróis que dão nome a estradas, colégios e prédios públicos – fossem repetidos entre 1964 e 1985, ao longo da ditadura militar. Com os projetos desenvolvimentistas para o Norte do país, a população local foi incorporada à paisagem e derrubada com as árvores para a implantação de estradas. Relata-se, inclusive, o uso de armamento de guerra contra as aldeias, que teriam sido alvo de bombardeios e artilharia aérea, além, claro, das mesmas – e até mesmo pioradas – táticas de tortura empregadas contra os presos políticos da época.
As perdas indígenas, diferentemente das que se deram no seio da classe média urbana, seguem anônimas. Não ganham menção em monumentos aos torturados nem fazem parte das contas oficiais de mortos e desaparecidos do período – o saldo, segundo relatório da Comissão Nacional da Verdade, saltaria dos atuais 434 para ao menos oito mil, com vítimas de dez etnias diferentes.
E não se trata só de todo o sangue derramado. Trata-se também de território. Hoje, depois de tantos roubos institucionalmente legitimados, quem a princípio tinha a posse irrestrita da terra brasileira, precisa se contentar com as migalhas que este mesmo Estado oferece.
No Brasil inteiro, existem, segundo a Funai (Fundação Nacional do Índio), aproximadamente 110 milhões de hectares de terra indígena oficial, que está, em sua maioria, já demarcada. Parece um número imenso, mas torna-se tímido quando comparado à extensão dos latifúndios – de acordo com dados do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), são 228 milhões de hectares de terra improdutiva, ou seja, mais que o dobro.
A Grande São Paulo conta, oficialmente, com acanhados 54 hectares de terras demarcadas para os povos Guarani, dentre os quais está presente o território do Jaraguá, que contava inicialmente com 1,7 hectare de área reconhecidamente indígena – que também é a menor de todo o país. Enquanto as duas outras demarcações da região, Barragem e Krukutu, que ficam no extremo sul da capital, possuem densidade populacional de aproximadamente 34 e 20 indivíduos por hectare respectivamente, o índice chegava a exorbitantes 500 habitantes por hectare no Jaraguá, de acordo com a Comissão Guarani Yvyrupa.
Com a superpopulação e a escassez de terras para plantação, o grupo por lá assentado promoveu a ocupação de outros 532 hectares dos terrenos ao redor, 72 deles reclamados por Antônio Tito Costa – exatamente a área da aldeia Itakupe onde se encontra a casa de reza e a plantação de mandioca, inhame e batata doce para subsistência.
Costa, que já foi prefeito do município de São Bernardo do Campo, em São Paulo, afirma que a posse da terra é de sua família desde 1947. Ele, porém, nunca residiu no local, que encontrava-se improdutivo antes da apropriação indígena, e não apresentou, quando solicitado, os documentos que comprovassem a legitimidade da propriedade.
A ocupação, por outro lado, recebeu aval da Funai em 2013, com o reconhecimento dos novos limites do local como Terra Indígena. Para a oficialização, porém, é necessário que haja a aprovação do ministro da justiça, José Eduardo Cardozo, que vem analisando o projeto desde o início de 2014 e não tem dado sinais de que irá se decidir em um futuro muito próximo, ainda que a questão seja claramente urgente: enquanto não há a demarcação definitiva das terras, o povo guarani sofre com a incerteza, e absurdos como a reintegração de posse autorizada no início do mês de maio, e suspensa no último dia 16, têm espaço livre para acontecer.
Privar da terra povos que dependem da agricultura como meio de sobrevivência é condená-los automaticamente à miséria. Não à toa, os índices de desenvolvimento entre a população indígena são críticos: segundo relatório da Onu, 38% vive em situação de pobreza extrema e a taxa de suicídio entre os guaranis é seis vezes maior do que a média geral nacional. Além disso, impulsionado pela alta incidência de desnutrição e doenças infectoparasitárias de tratamento simples, o índice de mortalidade infantil indígena, de acordo com dados de 2010 do IBGE, é de 42 para cada mil nascidos vivos, enquanto a média nacional é de 19.
Confinados em territórios muito menores do que aqueles que forjaram os hábitos de seus antepassados, com opções restritas de culturas em solos muitas vezes inférteis e distantes de rios, sem saneamento básico, com atendimento médico precário e acesso prático muito restrito ao sistema de ensino, principalmente às universidades, os povos indígenas se veem em um limbo , em uma sociedade que não permite que vivam segundo seus próprios costumes, ao mesmo tempo em que não os incorpora.
A reintegração de posse das terras guarani do Jaraguá foi suspensa temporariamente pelo Supremo Tribunal Federal. Enquanto não houver reconhecimento oficial do território, porém, a decisão ainda pode ser revertida. Quando opta por ignorar políticas de demarcação de terras, o Brasil amplia sua já inchada dívida histórica com os povos indígenas e reafirma o chavão de “país sem memória”, que carrega em suas instituições e avenidas os nomes de torturadores e genocidas, enquanto convenientemente apaga seus mortos e marginalizados.
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Ilustração: Laura Viana