Por Claudio Oliveira/ Portal Fiocruz
O regime militar no Brasil, que começou com o golpe de 50 anos atrás e perdurou por duas décadas, atingiu também o mundo científico e deixou marcas na Fiocruz. Móveis atirados pela janela, perda de recursos, aumento dos índices de enfermidades como a doença de Chagas, malária e meningite, perda de milhares de peças do acervo de amostras biológicas, documentos queimados, pesquisadores cassados. Esses são alguns exemplos dos problemas vivenciados pelo Instituto Oswaldo Cruz – transformado em Fundação em 1970 – durante a ditadura, período turbulento que pôs em risco a legitimidade de uma instituição que já havia vencido uma série de batalhas no campo da saúde.
A ingerência governamental na instituição começou logo após o golpe civil-militar, com a indicação do médico Francisco de Paula Rocha Lagoa para a diretoria do Instituto Oswaldo Cruz, em 1964. Por determinação do General Castelo Branco, Lagoa substituiu o bacteriologista Joaquim Travassos da Rocha, que dirigia a instituição desde 1962.
Segundo a cientista social e pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz (COC), Wanda Hamilton, os primeiros atritos aconteceram devido a divergências em relação à política científica e institucional do Instituto. “Enquanto alguns profissionais achavam que a maior parte dos recursos deveria ser destinada para a produção de vacinas, outros viam como prioridade o setor de pesquisa”. Com o golpe, recursos anteriormente destinados para pesquisas foram desviados para outros fins pela presidência, e os pesquisadores tiveram que buscar fontes alternativas, como a Fundação Ford, a Fundação Rockfeler e o CNPq. Porém, os pesquisadores continuaram a ser perseguidos e muitos laboratórios, como o de Hematologia, então coordenado por Walter Cruz, foram fechados por falta de financiamento. “Mesmo os recursos que vinham de fundações internacionais passaram a ser direcionados para alguns poucos projetos de pesquisa [os que eram de interesse da direção]. Isso deixou os laboratórios sem recursos para a manutenção da equipe e infraestrutura”.
Pesquisadores perseguidos, falta de formação e inquéritos
A tomada do governo pelo regime militar trouxe perdas materiais e intelectuais para a Fiocruz. Divergências internas eclodiram e a desconfiança passou a ser uma constante dentro da instituição. De acordo com Nara Azevedo, socióloga e pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz (COC), quando as mudanças no sistema político chegaram na Fiocruz as prioridades foram, aos poucos, se alterando. “No primeiro momento nada mudou. O que houve a princípio foram constrangimentos causados por inquéritos militares. Posteriormente é que o investimento em pesquisas foi se reduzindo. Porém, faltam estudos sobre a época. Nós não temos, por exemplo, relatos do Rocha Lagoa explicando os motivos de suas decisões”.
Além dos estragos causados no setor de pesquisa, outras ações opressoras foram implementadas pela nova presidência. Uma das mais polêmicas determinou a extinção do Conselho Deliberativo do instituto, que, desde a gestão de Francisco da Silva Laranja Filho (1954-1955), era responsável pela solução de problemas gerais da administração técnico-científica. Em pouco tempo, suas ações foram sentidas pelos funcionários. “Sob orientação de Rocha Lagoa aconteceu a abertura de inquéritos, o que desencadeou na instituição um processo de delações que criou um clima difícil e tenso entre os trabalhadores”, relatou Wanda em artigo para a publicação Cadernos da Casa Oswaldo Cruz.
O que se sabe, de fato, é que o setor de pesquisas do então Instituto Oswaldo Cruz foi extremamente prejudicado. De acordo com Nara, nem mesmo áreas tradicionais e relevantes, como a entomologia, a micologia e a fisiologia, foram preservadas. “O governo priorizava apenas a produção de vacinas e medicamentos e houve um desmonte nas iniciativas científicas realizadas em todo o país. Por exemplo, nos anos 1960 havia 140 pesquisadores no instituto. Nos anos 1970, eram apenas 70”.
A perda de profissionais não foi sentida somente nos laboratórios de pesquisa. Com a saída de pesquisadores experientes, a formação de novos profissionais ficou comprometida e o instituto passou a viver uma crise de identidade. “Na época não era possível planejar ou prever o futuro da Fiocruz. Muitos pesquisadores, apesar de não terem sido cassados, foram embora por conta própria. Sem recursos e infraestrutura, não tinham estímulos para continuar aqui”, disse Azevedo.
No livro O Massacre de Manguinhos, Herman Lent destacou a extinção sumária de várias linhas de pesquisa, a retirada de estagiários e alunos ligados aos cientistas cassados, o encerramento do laboratório de neurofisiologia e o impedimento de parcerias com outras instituições e universidades, entre outras dificuldades. “Quando você desmonta iniciativas de pesquisa, desmonta também os pesquisadores, a infraestrutura e a equipe de pesquisa. Não sobra nada. Com o tempo, houve aumento dos índices de doença de Chagas, malária e a evolução de uma epidemia de meningite”, ressaltou Wanda.
O argumento utilizado pelo regime para a abertura de inquéritos era o de que havia na Fiocruz espaços de “discussões subversivas”. Além disso, também era usado como justificativa um telegrama dirigido ao então senador Luiz Carlos Prestes nos anos 1940, que aplaudia a manifestação do político em defesa do território nacional após o término da Segunda Guerra. Segundo Herman Lent, os inquéritos atingiram seu ápice em janeiro de 1966, quando a Seção de Segurança do Ministério da Saúde intimou 16 cientistas a prestarem informações, sob a acusação de conspirar em seus laboratórios. Apesar do alarde, não foi encontrado nada que pudesse incriminá-los. “Informações verbais prestadas a alguns cientistas por pessoas como o General Aluisio Falcão e o Capitão Pedro Augusto Lisboa Baptista, encarregados dos aludidos inquéritos, diziam não ter sido encontrado fundamento algum para indiciação”, escreveu Lent no livro O Massacre de Manguinhos.
Massacre de Manguinhos e destruição
Se entre 1964 e 1969 a Fiocruz viveu anos turbulentos, foi há 44 anos que a instituição sofreu o seu mais duro revés. Empossado como Ministro da Saúde pelo General Emílio Garrastazu Médici em 1970, Rocha Lagoa utilizou o Ato Institucional nº 5 para promover a cassação de 10 cientistas da instituição. Pelo rádio, Haity Moussatché, Herman Lent (que chefiou as sessões de entomologia e zoologia do instituto), Moacyr Vaz de Andrade, Augusto Cid Mello Perissé, Hugo de Souza Lopes (então o maior especialista mundial em moscas sarcophagídeas), Sebastião José de Oliveira, Fernando Braga Ubatuba e Tito Cavalcanti souberam que seus direitos políticos haviam sido cassados. Dois dias depois, Domingos Arthur Machado Filho e Masao Goto também foram cassados.
Como o decreto só cassava os direitos, um novo foi criado. Dessa vez, os pesquisadores foram proibidos de exercer seus trabalhos. A atitude caiu como uma bomba em uma Fiocruz que já vinha combalida. Lent conta em seu livro que não podia sequer frequentar a biblioteca de Manguinhos. “Muitos pesquisadores, apesar de não terem sido cassados, foram embora por conta própria, não tinham estímulos para continuar aqui”, disse Nara.
Além das perdas intelectuais, a instituição assistiu impotente à destruição de aproximadamente 14 mil peças – amostras biológicas conservadas através da histotecnologia – de seu museu científico. Em uma ação realizada por agentes do regime militar, quase todo o trabalho realizado por diferentes pesquisadores, durante décadas, se perdeu. De acordo com Marcelo Pelajo, pesquisador do Departamento de Patologia do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), os materiais que sobraram se salvaram porque não couberam nos caminhões e porque alguns pesquisadores e patologistas os esconderam. “As peças do Carlos Chagas foram atiradas pela janela do quinto andar e muitos documentos e móveis foram queimados. Temos testemunhas pessoais e materiais [dessa ação]”.
Felizmente, algumas dessas peças foram encontradas, por sorte, durante as obras de criação do Museu da Vida. “Operários acharam algumas peças dentro de uma caçamba enterrada onde hoje é o Museu da Vida. Esse material foi retirado e trazido para o laboratório. Trouxemos uma pessoa que trabalhava aqui naquela época e começamos a recuperar essas peças, algumas delas vindas da África e América Latina. Hoje o acervo conta com 854 peças”, disse Pelajo.
Reconstrução
Apesar do ambiente hostil, inquéritos e acusações de subversão, a reconstrução da Fiocruz começou ainda no regime militar, com a nomeação do economista Vinícius Fonseca para a presidência da Fiocruz em 1975. Segundo Wanda, ele inicialmente buscou pesquisadores para trabalharem na instituição, que se encontrava deserta. “A Fiocruz que conhecemos hoje começou com Vinícius, foi ele quem conseguiu permitir a chegada de pessoas como Sérgio Arouca [presidente da Fiocruz entre 1985 e 1989] e Carlos Morel [presidente da Fiocruz entre 1992 e 1997].”
A contribuição de Vinícius na reconstrução da Fiocruz também é destacada por Nara Azevedo, que reconhece o trabalho do economista na reformulação da área de pesquisa. “Durante a gestão dele, Bio-Manguinhos foi criada e pesquisadores começaram a voltar para a Fiocruz. Não tínhamos mais pesquisadores sêniores”.
Em entrevista concedida a Wanda e Nara, em 1995, para a revista História, Ciências e Saúde – Manguinhos, Vinícius afirmou que não havia no país a consciência de que era necessário desenvolver tecnologias próprias, e que essa visão só passou a prevalecer quando o Brasil começou a se inteirar sobre o que acontecia no resto do mundo. “No pós-guerra, com a primeira reunião da ONU, é que se começou a ver: de um lado os EUA, do outro a Índia, de um lado a Inglaterra, do outro a Libéria. Quem domina a tecnologia, domina o mundo, domina a economia”.
Paralelamente ao intercâmbio com outros países, o Brasil via surgir um surto de meningite, para muitos o principal responsável pelo retorno das atividades de pesquisa na fundação – além do aumento dos índices de doença de Chagas, malária e esquitossomose. “Fui para Manguinhos, indiretamente, por causa da vacina de meningite. O Dr. Paulo Machado [então Ministro da Saúde] pleiteou uma vacinação em massa e compramos 80 milhões de vacinas do Instituto Mérieux, da França, na época o único produtor mundial”.
Fazer a Fiocruz retornar aos seus bons dias foi, segundo Vinícius, uma decisão política em prol do desenvolvimento científico e tecnológico do país. “O Dr. Paulo via Manguinhos como uma continuação daquilo que foi no passado. Ele tinha a proposta de recuperar a instituição e me apoiou totalmente. Era um enorme desafio, a credibilidade da instituição estava a zero”.
Pesquisas e Comissão de 50 anos do golpe
Apesar dos relatos obtidos e da leitura de arquivos que até pouco tempo se encontravam restritos, ainda há muito a ser estudado para se possa fazer um diagnóstico preciso sobre os impactos do regime militar na Fiocruz, assim como em outras unidades de saúde espalhadas pelo Brasil. Essa é a opinião da coordenadora da Comissão de 50 anos do golpe, Nara Azevedo.
A pesquisadora deseja realizar uma reflexão sobre esse período do ponto de vista da saúde pública, pois considera que, apesar do grande número de pesquisas sobre a ditadura e suas consequências, não existem muitas voltadas especificamente para os setores da saúde e ciência. “ Antigamente, observávamos a ditadura apenas como um golpe militar, mas hoje todos admitem que foi um movimento civil-militar. O apoio de segmentos da sociedade já foi reconhecido: empresários, por exemplo, apoiaram a ditadura”.
Para Azevedo, é preciso pesquisar os arquivos da instituição para que se conheçam as diferentes versões sobre o período. “Queremos produzir documentos históricos. Precisamos pesquisar para entendermos melhor o período e, assim, termos uma visão menos simplória sobre ele. Algo que vá além do ‘bom versus mau’. Queremos aprofundar nossos conhecimentos sobre a história do período, suas consequências para o desenvolvimento da ciência e da saúde, e transmitir isso para a sociedade”.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.