MUF: Um programa de índio, por José Ribamar Bessa Freire

muf_morropavaozinho_foto_gilsoncamargo_riodejaneiro_20_03_09y(1)E eu não deixo os meus passos no chão
Se você não entende não vê
Se não me vê, não entende
Primeiros Erros – Capital Inicial)

Por José Ribamar Bessa Freire, em Taqui Pra Ti

Ocupadíssima (o) leitora (o), eu te entendo. Sei que não dispões de tempo para passear por favelas, ainda mais num fim de semana que é sempre destinado ao descanso e ao lazer familiar. Talvez não tenhas sequer cinco minutinhos para ouvir o que tenho para te contar. De qualquer forma, conto assim mesmo. Suspeito que pode te interessar. Quem sabe?

Domingo passado, com alunos do curso de Museologia da UNIRIO, percorri durante mais de três horas um caminho que começa na escadaria do morro do Cantagalo, em Ipanema, atravessa o Pavãozinho e termina – não poderia ter melhor destino – no Beco do Amor Perfeito, no morro do Pavão, já em Copacabana. Vale a pena conferir.

A caminhada dominical foi programada para repor uma aula que não aconteceu durante a semana por ter sido abortada pela greve dos rodoviários. Demos 2.050 passos por um labirinto de becos estreitos, ruas, ruelas, dobras, vielas, bifurcações, ladeiras íngremes e escadarias empinadas que conectam um território de três favelas, onde hoje vivem quase 20 mil pessoas em mais de cinco mil moradias. Visitamos as favelas, que são representadas na mídia sempre como palco de violência e de bandidagem, quase nunca como lugar de expressão cultural.

– Mas isso é um programa de índio – dirá alguém desavisado.

Nós, os desocupados que dispomos de tempo, concordamos, mas atribuímos um sentido positivo ao termo, porque vemos os índios com outros olhos. Foi efetivamente um belo programa de índio. Quem passa ali embaixo, nem suspeita o que acontece lá nas alturas. Lá, a ONG Museu da Favela (MUF), que integra o Programa Pontos de Memória do Ministério da Cultura, instalou 40 obras de arte constituídas por três portais de acesso, dez placas indicando o caminho e 27 telas gigantes de arte grafite pintadas em grandes painéis nas fachadas de algumas casas.mulher amamentando(2)

As escutadoras

Foi assim. Logo após o início do projeto de reurbanização da favela lançado pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em 2008, moradores cederam paredes externas de suas casas situadas em diferentes pontos das três comunidades, onde 25 artistas grafiteiros locais, mas também de fora, inclusive estrangeiros, pintaram painéis contando a história das favelas. Para isso, se apoiaram na documentação oral obtida em entrevistas feitas com 13 idosos ilustres que são enciclopédias vivas.

As moradoras da comunidade que contaram suas histórias de vida receberam o prêmio Mulheres Guerreiras,  concedido pelo MUF. O projeto, ampliado agora com as “escutadoras de memórias” – dez mulheres que receberam treinamento para ouvir histórias – criou uma galeria a céu aberto do primeiro museu territorial de favela do Brasil.

– Ali, no museu territorial, a arte da narrativa está viva e a metamorfose é cotidiana – diz o representante externo na direção do Museu da Favela, Mário Chagas, museólogo e professor da UNIRIO.

A partir das histórias narradas, o Museu da Favela programou o MUFTUR, composto por três circuitos que equivalem às exposições permanentes num museu tradicional. O Circuito do Alto é uma ecotrilha educativa pelas matas do topo do morro, contendo as memórias da natureza antes da favela. O Circuito do Meio, em construção, pretende reunir esculturas gigantes similares – pelo que entendi – às esculturas de Brennand, em Recife, mas que se movem, cantam, tocam violão. O Circuito de Baixo ou Circuito das Casas-Tela, já implantado desde 2009, foi o que nós percorremos.

Esse circuito conta a história das três favelas a partir das imagens representadas nas telas. Está tudo lá. A origem da favela do Cantagalo, com a chegada dos quilombolas e de escravos libertos que se refugiaram no morro, vindos de Minas Gerais e do Espírito Santo, bem como a imigração dos nordestinos para o Pavão-Pavãozinho. O perrengue dos moradores, o descaso do Estado e a ausência de políticas públicas, as estratégias de sobrevivência das famílias, a resistência, o papel celofane colorido diante da tela da TV preto e branco, o fogão a querosene…

Apoiado pelo Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), o MUF constitui uma experiência no campo da museologia social, que reivindica o direito à memória. Foi inaugurado em fevereiro de 2009 na quadra da Escola de Samba Alegria da Zona Sul. Criou as Casas-Tela, acompanhadas de poesia de cordel em homenagem à cultura nordestina. Segundo Carlos Esquivel Gomes da Silva, conhecido como ACME, grafiteiro que mora na favela e coordenou a oficina de artistas, a falta d’água obrigava os moradores a subir as escadarias com lata na cabeça:

– Voltando da Catacumba / fincando as unhas no chão / com lata de banha e rodilha / à luz de vela e lampião / cortando por dentro da trilha / Meu Deus como o povo sofria / Mas tinha bem mais união.

Monet(2)

Pombo sem asa

Quando os dois artistas ACME e Marcelo Eco foram pintar a tela da Casa 2, explicaram à moradora, dona Regina, a Teteca, que iriam retratar na parede de sua casa a falta de saneamento básico, esgotos a céu aberto, valas negras e pinguelas que ocuparam grande parte da história da favela. Dona Teteca discordou e deu várias sugestões alternativas:

– Essa não. Não quero a imagem do mal sujando meu muro. Quero coisa bonita, flores, paisagens, cores alegres embelezando aquilo que é ruim.

Depois de muita negociação, ACME, que ajudou a fundar e presidiu o MUF, achou a solução. Ele se inspirou na Ponte Japonesa do impressionista francês Monet: “A vala ficou azul, a pinguela virou uma ponte colorida. Da penúria do passado, só sobrou de símbolo o cachorro magricela. Teteca ficou satisfeita, elogiou o resultado, afirmando que sua parede tem que refletir coisas boas, porque a realidade já não é das mais bonitas”.

No entanto, em outras casas-tela, os artistas retrataram também a realidade dura: a falta de energia elétrica, com o uso da vela e do lampião; a falta de água do tempo da lata d’água na cabeça; a bica, a torneira ao pé do morro só instalada em 1972; a falta de saneamento básico, a existência de esgotos a céu aberto, as valas negras, o mau cheiro, as pinguelas, a lama, o lixo, as ratazanas gordas, o tráfico e a polícia que ceifaram vidas de entes queridos, os tiroteios, o medo, a insegurança, a repressão à fé e à religiosidade, a intolerância e a proibição do candomblé, o velório dentro das casas…

– Certas memórias são doídas, narrativas de violências, uma palavra maldita, uma pergunta mal feita fere como uma bala perdida. Mesmo quando a memória guarda algo negativo é importante lembrar, porque ajuda a cicatrizar e fortalece para a vida e para decidir novas e melhores escolhas – escrevem ACME, Rita de Cássia Pinto e Kátia Loureiro no livro Circuito das Casas-Tela – Caminhos de vida no Museu da Favela.

Uma das casas-tela retrata o “pombo sem asa” em pleno voo. Quando não havia latrina, o coco era feito num jornal, embrulhado e arremessado morro abaixo, atingindo às vezes as pessoas, o que não era prática exclusiva das favelas. Segundo o viajante inglês John Luccock, que veio ao Brasil em 1808 e escreveu “Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil”, o “pombo sem asa” voava, tendo como ponto de arremesso casas das melhores famílias da Corte na época de D. João VI.

Pombo sem asa

Programa de branco

No final do circuito, já quase no asfalto, em Copacabana, há o registro da tragédia que em 1983 matou treze pessoas, feriu dezenas de outras e destruiu casas, em decorrência do deslizamento de uma caixa d’água na noite de natal provocada pelo acúmulo de lixo. Foi então que o governador Leonel Brizola decidiu construir o Plano Inclinado com a instalação de um elevador com cinco estações para facilitar o acesso dos moradores ao morro.

As paredes das casas-tela revelam também o outro lado da realidade, registrando uma nostalgia do tempo que se foi: o lazer das crianças, o futebol, a pipa nos céus da favela, as brincadeiras de roda, as roupas no varal, as conversas na porta dos barracos, a solidariedade dos vizinhos, a musicalidade da favela, a dança do calango e o arrasta-pé de fim de semana. Lembram ainda que o sambista Bezerra da Silva morou mais de vinte anos no Cantagalo.

Para se conciliar com esse tempo, o MUF projetou uma Brinquedoteca para crianças da comunidade, que foi contemplada pela Ação Pontinhos da Cultura, além de criar o Cine-MUF, com exibição de filmes escolhidos pelos moradores.

A visita ao Museu de Favela foi tão gratificante que, com greve ou sem greve, a partir de agora cada semestre levarei meus alunos lá. Eles avaliaram – e eu concordo – que foi a melhor aula que tiveram na disciplina: justamente a que assisti com eles, ministrada por Sidnei Tartaruga e Valquíria Cabral, que nos guiaram favela adentro. Arruma tempo, leitora (o) e sobe o morro num domingo. A vista panorâmica da Laje Cultural do Museu é deslumbrante. É melhor do que ficar vendo Faustão, Silvio Santos, Fantástico, isso sim é que é “programa de branco”.

P.S.1 – Participaram da criação do MUF, além dos já citados, Rita de Cássia, Antônia Soares, Kátia Loureiro, Márcia Souza e Josy Manhães. Eles contribuíram para a dissertação de mestrado sobre o Museu da Favela que está sendo elaborada por Fernanda Silva F. Rodrigues orientada pelo doutor Agripa Faria Alexandre do Programa de Pós-Graduação em Memória Social (PPGMS).
P.S. 2 – Fotos: a primeira de Gilson Camargo, as demais de Juliana Venturelli do PPGMS.

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