Para o filósofo Vladimir Safatle, professor de filosofia da USP e autor de livros como A Esquerda que Não Teme Dizer seu Nome e Grande Hotel Abismo: Por uma Reconstrução da Teoria do Reconhecimento, o primeiro passo para pensar melhor o Brasil é superar a “mania-depressão” em que os brasileiros oscilam, ora achando que são os melhores, ora os piores do mundo
Letícia Duarte – Zero Hora
Em entrevista por telefone, o professor da USP analisa o legado das manifestações de junho. Ao mesmo tempo em que comemora uma “latência do possível”, identifica um vazio.
“A gente está num momento de vazio político que o Brasil nunca conheceu. Desde 1930 você tem ciclos políticos no Brasil em gestação. Agora temos um ciclo que se esgotou e não tem nenhum outro no lugar”, observa. Eis a entrevista.
Na época das manifestações de junho do ano passado, o senhor afirmou que uma sociedade que passa por tamanhas mobilizações populares fica para sempre marcada. Qual é a marca mais visível neste primeiro ano das manifestações?
Ficou a abertura de um campo de instabilidade e de indeterminação na política brasileira. Em maio de 2013, se alguém chegasse e dissesse: daqui a um mês nós vamos ver 1 milhão de pessoas na rua, essa pessoa seria vista como uma caricatura. Hoje ninguém tem coragem de dizer que não é possível. Então abre uma latência do possível. Há muito mais coisas possíveis do que antes.
E acho que isso é um dado muito importante, porque através da abertura dessa latência novas experiências políticas podem ser paulatinamente formadas. A gente tem uma ideia meio instantaneísta das ações, de achar que uma ação produz o seu efeito no instante em que ela aparece. E nem sempre é assim. Às vezes ela demora muito tempo para produzir de fato seus efeitos.
Em coluna recente na Folha, o senhor cita Deleuze dizendo que o novo nunca aparece de uma vez. Que o novo, para poder sobreviver, precisa revestir-se por um tempo da capa do já visto. Esse elemento está aparecendo agora?
Eu acredito muito nisso. O que há de mais novo nisso é a formação de novos sujeitos políticos. Não são aqueles atores vinculados às instituições tradicionais, vinculados a sindicatos, partidos. São atores que aos poucos vão aparecendo em cena, inclusive trazendo tópicos que antes poderiam parecer totalmente despropositais, como transporte público gratuito, a restrição do valor dos aluguéis, o problema do déficit habitacional. Essas questões vem aparecendo com cada vez mais força, porque são a exposição mais sistemática da irracionalidade do modelo político e econômico ao qual o Brasil está submetido há muito tempo.
Quais as principais diferenças entre os protestos de 2013 e os de agora?
Os de agora ainda não têm muita cara, porque estão no início. A gente não sabe de fato quais são os protestos de agora. A gente viu alguma coisa aqui em São Paulo, em algumas outras cidades, algo muito pontual. Falar qualquer coisa neste momento seria muito temerário. Mas uma coisa é certa: a gente está numa situação em que tudo pode acontecer, inclusive nada. Mas pode acontecer qualquer coisa, haja viso o aparato militar que o governo montou, com medo de aconteça.
E pensando no futuro: para onde estamos indo? Tem como prever alguma direção?
Com certeza a gente está indo para uma situação melhor do que antes. Faz parte da política brasileira que ela se decida em grande medida nas ruas. Esse é um dado da história do Brasil. A gente teve um momento nos últimos 20 anos de estabilidade, graças aos governos Lula e Fernando Henrique, em que houve menos manifestações de rua. Mas nos anos 80 tinham greves gerais no Brasil, tudo parava. Nos anos 60, o Brasil era um país de alta mobilização, tanto à esquerda quanto à direita.
Então eu diria que nós estamos simplesmente voltando para esse padrão de atuação política brasileira, que eu diria muito melhor, porque não é o padrão dos lobbies, dos acordos partidários escondidos, dos conchavos eleitorais. Mas é o padrão do conflito de expectativas no interior da sociedade. Acho que você tem os verdadeiros atores aí. O problema do outro modelo é que a política se transforma num grande acordo florentino, dos acertos entre partidos, que isso é o que faz com que a população tenha uma descrença em relação à política.
No livro A Esquerda que Não Teme Dizer seu Nome o senhor afirma que a esquerda abriu mão dos fundamentos de sua política, acuada por críticas e experiências feitas enquanto estava no governo e seduzida pelos “confortos do poder”. E defende que a esquerda recoloque no debate político tudo aquilo que seria “inegociável”: a defesa radical do igualitarismo, da soberania popular e do direito à resistência. Como o senhor vê hoje os rumos da esquerda no Brasil?
Estamos numa situação bastante complicada. Existe uma demanda por uma política de esquerda mais clara. Durante muito tempo se fez pesquisa sobre direita e esquerda no Brasil e se chegava à conclusão de que a maioria da população era conservadora. Até porque boa parte das pesquisas eram baseadas em questões de costume: “você é contra ou a favor do aborto? O que pensa do casamento homossexual?” Quando se colocaram questões econômicas: “você é contra ou a favor da intervenção do Estado?”, o número de pessoas de esquerda aumentou exponencialmente, o que demonstra, muito claramente, uma consciência tácita da população brasileira de que há uma política, principalmente do campo econômico à esquerda, que é mais adequada ao Brasil.
Mas ela desapareceu do debate, pura e simplesmente. Não há política de esquerda sem pelo menos três questões fundamentais: primeiro, uma defesa radical do igualitarismo. A gente vive num país onde mesmo essas questões que são pautas reformistas sociais democráticas clássicas, como imposto sobre grandes fortunas, estão ausentes do debate político brasileiro. Que são pautas que poderiam indicar onde o Estado poderia conseguir se financiar para oferecer serviços públicos de qualidade para seus cidadãos. O segundo ponto é a defesa radical da democracia direta. Existe uma tradição ruim na esquerda, que é uma tradição dirigista, centralizadora. Há uma exigência de mostrar que nós podemos avançar muito no modelo de democracia que não só apenas os processos decisórios, mas de gestão, sejam pensados em democracia direta. E o outro, que é fundamental para a esquerda, é o direito humano, que é o direito de resistência. Falar em direitos humanos é falar em resistência. O que está longe de ser o caso do Brasil, onde se criminaliza qualquer tipo de revolta, o mais rápido possível.
Depois de seu nome ter sido substituído na candidatura do governo de São Paulo sem aviso prévio, o senhor fez críticas contundentes à direção do PSOL e defendeu a necessidade de “uma esquerda não dirigista”. O que fica dessa experiência pessoal?
Primeiro, o PSOL é um partido de muitas tendências, muito diferentes uma das outras. Isso pode parecer um problema, mas também pode aparecer como uma força. Existe uma militância muito ligada à juventude no PSOL que tem uma consciência muito clara da necessidade de inventar um novo tipo de organização, que não seja simplesmente a repetição de velhos vícios de organizações de esquerda, que são um elemento deslegitimador. Acredito que boa parte da desconfiança de parte da população em relação à esquerda se dá por isso: para você ter legitimidade do que você fala, você tem que mostrar que é capaz de fazer dentro da sua casa o que se propõe a fazer fora de casa. E isso falta, em larga medida. Você não pode propor uma prática profundamente democrática se você enquanto organização está longe de ter democracia interna.
Qual é o maior desafio de um filósofo na política partidária?
É entender que a filosofia não produz acontecimentos, os acontecimentos são produzidos fora, e nós simplesmente procuramos ir onde o acontecimento está. Por que eu aceitei uma coisa dessas? Porque sempre houve dois tipos de intelectual, ou pelo menos hoje é assim. Aqueles que são ligados a suas especialidades, e falam a partir de suas especialidades, e aqueles que se transformam em intelectuais orgânicos, totalmente vinculados às pautas de partidos. Então um muito longe, um muito perto do processo. E eu acreditava que era possível fazer alguma coisa no meio do caminho. Você entra em um dado momento, para você conseguir pensar mais perto das coisas, e depois você sai, para que você possa saber o que você realmente possa fazer. Eu ainda acredito que isso seja possível, necessário.
Na Europa estamos assistindo a uma elevação da extrema direita, em parte associada a uma desilusão com as políticas de esquerda. Esse movimento o preocupa?
Eu acho que é um dos movimentos mais sérios e graves da história nos últimos 40 anos. Essa extrema direita não veio para ir embora. Isso não é um ponto fora da curva. É um processo que está em crescimento contínuo há pelo menos 10 anos. Eles vieram para ficar, porque é uma direita popular. Não é uma direita clássica, ligada a certos setores, sistema financeiro. É uma direita inclusive capaz de mobilizar algumas políticas de esquerda para continuar com sua lógica de exclusão, de ódio racial, de paranoia identitária, de xenofobia. É realmente fascista. Mais uma vez a Europa demonstra que em situações de crise ela não tem outra resposta a não ser realimentar as suas paranoias identitárias, como um sistema defensivo, ao invés de reinventar sua política socioeconômica. É uma crise que nunca foi produzida por imigração, ao contrário.
Tem um estudo da OCDE que saiu no ano passado que demonstrava que a Europa precisava era de mais 35 mil imigrantes se quisesse continuar o nível de produção com o acúmulo que se encontra hoje. Então nunca foi um problema de imigração, e sim um problema ligado à maneira como a comunidade europeia se descapitalizou rapidamente ao entregar um trilhão de euros ao sistema financeiro internacional, e agora isso é visto como um problema cultural-imigratório. Você transforma um problema econômico num problema cultural. Isso eles conseguiram fazer de maneira perfeita. Você pega a política do partido (socialista) francês hoje, do ponto de vista de debate cultural e de imigração, não se diferencia nem uma vírgula da política pregada pela Frente Nacional (de extrema-direita). E você teve casos do ministro do interior de então, hoje o primeiro ministro Manuel Valls, que fazia caça contra ciganos. E estamos em 2014. Fazendo discurso que eles não tem os mesmos valores que nós temos, que implica em direito de Imigração. Chega uma hora em que as pessoas olham e falam: eu prefiro o original à cópia.
Parte dessa ocupação pela extrema direita seria uma omissão da política socialista?
Você pode colocar isso na conta da política socialdemocrata com certeza. Se os sociais-democratas que estavam governando a Europa nos anos 90 tivessem sido mais duros em relação à política de direitos humanos mais efetiva e menos discriminatória, com integração política dos imigrantes… Você pega a Assembleia Nacional francesa, vê quantos descendentes de árabes têm? Não deve ter três, numa Assembleia de mais de 500 lugares. Isso em uma população onde se tem mais de 10% de árabes. Que integração é essa, em que você não partilha poder? Não existe isso.
Em seu livro O Cinismo e a Falência da Crítica, o senhor aponta um esgotamento da crítica tradicional do capitalismo e propõe o cinismo como uma categoria para análise das dinâmicas da racionalização em operação no capitalismo contemporâneo, com a chamada racionalidade cínica cunhada por Sloterdjik. Quais são as manifestações mais evidentes desse cinismo na sociedade brasileira atual?
O cinismo não deve ser compreendido como um julgamento moral. Tem uma peculiaridade nessa discussão sobre o cinismo que são esses momentos em que o discurso é capaz de se estabilizar mesmo com falta de legitimidade. Mesmo em situações de crise de legitimidade, você continua agindo como se nada tivesse acontecendo. Você não precisa mais estar convicto do que você faz para agir. Você age mesmo sem convicção. Esse é um dos piores sintomas da vida social contemporânea. Posso dar uma imagem para isso. Freud descrevia um sonho que ele teve, em que estava numa mesa, com a família, e o pai conversava com todo o mundo de maneira normal, mas Freud começa a chorar, dizendo: meu pai não sabia que estava morto.
Ele agia como se estivesse vivo, mas estava morto. Nossa vida contemporânea tende a funcionar quase dessa maneira: você age como se nada estivesse acontecendo, como se tudo estivesse garantido, do ponto de vista de legitimidade, mas ninguém mais acredita nos próprios papéis. Mesmo a socialização de nossa criança: elas consomem hoje desenhos animados em que os próprios personagens criticam os papéis que representam. Esse modelo é um dos piores, porque não se trata mais de criticar tentando desvelar alguma coisa que a pessoa não saberia. Você é obrigado a ver a impotência da sua crítica diante de um sistema em que ninguém mais acredita nas figuras de poder, e é exatamente porque ninguém acredita que elas permanecem. Porque se você pedisse crença para as pessoas, elas diriam: agir já é difícil, agir com convicção é um pouco demais.
Qual a sua opinião sobre o livro Capital no Século 21, do economista francês Thomas Piketty, que vem causando polêmica ao apontar um aumento no crescimento da desigualdade de renda no mundo nas últimas décadas?
É impressionante a polêmica, porque o livro é simplesmente óbvio. Ele simplesmente demonstra: veja, nosso capitalismo, é um capitalismo patrimonial, no qual um conjunto limitado de famílias continua detentora do capital durante décadas. Durante todo o século XX, não teve grandes modificações. Essas famílias vão criando um sistema rentista, se alimentando das fortunas acumuladas, e vão conseguindo influenciar os governos, e os governos vão criando situações cada vez mais favoráveis para o rentismo. Ou seja: não para produzir, mas simplesmente aproveitar sua riqueza e investir num sistema financeiro que é cada vez mais autossuficiente, mais autônomo.
Essa é uma das razões para explicar porque a nossa desigualdade regrediu ao nível do século XIX. A única coisa fantástica no livro é que ele simplesmente mostrou isso. Os dados são de uma obviedade absoluta. E a gente ficou durante 20 anos dentro desse mantra neoliberal de que a gente estava numa sociedade de produção de riquezas, uma sociedade de ascensão ligada a sua capacidade de empreendedorismo, sua força de inovação, e blabla. E ele mostrou que isso era falso. A quantidade de pessoas que tem mobilidade social é mínima. Isso que é triste. Essa era a discussão que a gente devia estar tendo hoje. Ninguém está falando da estatização total dos meios de produção, da sociedade socialista, do comunismo cubano. São questões muito concretas, que as pessoas sentem isso na pele.
O Brasil tem vivido um espírito de ame-o ou deixe, com uma parcela da população muito otimista, e outros muito pessimistas. Onde o senhor se alinha?
O Brasil sofre de um transtorno bipolar, a gente vive da mania-depressão. Tem momentos em que se acha que o Brasil é a nova Roma, como dizia o Darcy Ribeiro, que vai mostrar ao mundo o caminho da transformação. E tem momentos em que você acha que o Brasil é a catástrofe mundial, que é o pior país do mundo, o país onde tudo dá errado. Esse tipo de bipolaridade, que também afeta os intelectuais, deveria ser superada de uma vez por todas. O Brasil é um país cuja população tem uma força incrivelmente resistente contra uma série de desmandos, tem uma história de resistência inacreditável, e tem também várias oportunidades perdidas, como todo grande país. O que você não pode no Brasil é viver é entre a mania e a depressão. Se você conseguir escapar desse tipo de acepção, talvez você consiga pensar melhor o Brasil.