Diante do acirramento da tensão entre índios e fazendeiros em Mato Grosso do Sul, o governo decidiu enviar tropas da Força Nacional para o Estado.
João Fellet, da BBC Brasil em Brasília
Uma portaria do Ministério da Justiça publicada nesta sexta-feira autoriza o emprego imediato da força para impedir confrontos no Cone Sul do Estado e na Terra Indígena Buriti, em Sidrolândia (a 70 km de Campo Grande). Seu período de atuação será de 90 dias e pode ser prorrogado.
As tropas, que atuarão com a Polícia Federal e forças estaduais, chegarão a Mato Grosso do Sul no momento em que se encerra um prazo dado por associações de agricultores locais para a solução dos conflitos agrários no Estado.
Elas têm dito que, caso as autoridades não apresentem até este sábado uma proposta para acabar com as disputas de terras, confrontos violentos poderão ocorrer.
A Acrissul (Associação dos Criadores de Mato Grosso do Sul) marcou para 7 de dezembro um leilão que levantará recursos para a defesa dos agricultores em áreas de disputa. A organização diz que já foram arrecadadas cerca de mil cabeças de gado e toneladas de grãos para o evento, batizado de “Leilão da Resistência”.
Segundo o presidente da Acrissul, Francisco Maia, os recursos servirão para que os fazendeiros contratem três tipos de profissionais: advogados, antropólogos incumbidos de contestar os estudos que embasam as demarcações e empresas de segurança.
“Até agora, eles invadiam e nós recuávamos. Se invadirem outras terras, vai ter tiroteio, e aí ninguém sabe a consequência.” O presidente da Acrissul diz que a contratação de seguranças ocorrerá dentro da lei.
Para os índios, não há novidade na postura dos fazendeiros. “Eles já têm agido com violência nos últimos dez, quinze anos”, diz o líder guarani kaiowá Tonico Benites. Ainda assim, ele afirma que a crescente animosidade no Estado é preocupante e que o leião financiará a criação de uma “milícia” contra os índios.
Poder de barganha
Para outros órgãos familiares ao conflito agrário no Estado, no entanto, o principal objetivo do leilão é ampliar o poder de barganha dos fazendeiros nas negociações para resolver o impasse.
Desde junho, após a morte do índio terena Oziel Gabriel numa ação de reintegração de posse na Terra Indígena Buriti, em Sidrolândia, representantes de fazendeiros, indígenas, governo federal, governo estadual, Ministério Público, Poder Judiciário e a Assembleia Legislativa passaram a dialogar em conjunto em busca de uma solução para os problemas agrários em Mato Grosso do Sul.
Combinou-se que as negociações começariam pela Terra Indígena Buriti, onde os índios ocupam trechos de 27 fazendas, segundo a Acrissul.
Em 2010, o Ministério da Justiça delimitou a Terra Indígena e determinou que os índios terena têm direito à posse e ao usufruto exclusivo da área. No entanto, fazendeiros se recusam a sair e têm conseguido travar a conclusão do processo na Justiça.
As negociações para acabar com o impasse empacam num ponto: como indenizar os fazendeiros pelas terras.
A Constituição determina que não índios a serem expulsos de áreas indígenas só podem ser indenizados por benfeitorias, como casas. Acontece que muitos dos fazendeiros detêm os títulos dessas áreas (emitidos pelo Estado há décadas) e querem compensação por toda o terreno a ser desapropriado.
A situação se reproduz em vários pontos do Estado. De acordo com a Acrissul, há hoje 80 fazendas ocupadas por índios em Mato Grosso do Sul. Como praticamente todos os casos foram judicializados, as demarcações avançam a conta-gotas e não têm desfecho à vista.
Inicialmente, definiu-se que o governo estadual indenizaria os fazendeiros de Buriti com a venda de terras estaduais à União. O Estado, porém, alegou não ter terras suficientes.
Agora, segundo nota do Ministério da Justiça à BBC Brasil, o governo federal se comprometeu a repassar recursos da União para compensar os fazendeiros.
Ainda não se acertou como o repasse a ocorrerá. Estuda-se a possibilidade de que o governo reserve parte do Orçamento de 2014 para os pagamentos.
Nesta semana, o governo estadual e fazendeiros apresentaram outra proposta, que prevê, entre outros pontos, que o Estado use recursos comprometidos com sua dívida com a União para pagar as desapropriações. O governo federal ainda não se posicionou sobre a proposta.
Quando o caso de Buriti for resolvido, o governo federal diz que passará a negociar soluções para os demais conflitos agrários no Estado.
Embora a gestão se diga empenhada em avançar no diálogo, as demais partes afirmam que o tema se tornou tão complexo que qualquer solução agora depende de uma participação direta da presidente Dilma Rousseff.
Os índios temem o prolongamento do conflito. O clima é tenso nas “retomadas”, como eles se referem às áreas ocupadas. Há relatos frequentes de intimidações e ataques de seguranças contratados por fazendeiros.
De acordo com os indígenas, desde 2012 ao menos sete pessoas – entre as quais seis índios – morreram em decorrência do conflito de terras na região.
O Cimi (Conselho Indigenista Missionário), ógão ligado à Igreja Católica, calcula que mais de mil índios guarani kaiowá se mataram entre 1988 e 2012, o que, segundo o órgão, sinaliza o desespero e descrença dos indígenas na solução de seus problemas, principalmente da terra.
Guerra do Paraguai
Os problemas agrários em Mato Grosso do Sul tiveram desdobramentos importantes com a Guerra do Paraguai (1864-1870). Após o conflito, enquanto o governo estimulava a migração de agricultores para assegurar seu controle na área próxima à fronteira com o país vizinho, o hoje extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI) foi incumbido de agrupar os indígenas da região em pequenas porções de terra.
A estratégia produziu uma distorção que persiste: embora o Mato Grosso do Sul tenha a segunda maior população indígena do país (73,2 mil pessoas, ou 9% do total de índios no país), as terras demarcadas no Estado correspondem a apenas 0,7% das áreas indígenas no Brasil.
Para o líder guarani kaiowá Tonico Benites, a lentidão para regularizar as terras justifica que novas ocupações ocorram, apesar da ameaça de reação enérgica dos fazendeiros a partir do dia 30.
Segundo Benites, essas ações costumam ser articuladas por índios idosos como um “último recurso” para que eles possam ser enterrados junto de seus antepassados.
“Quando um índio que esperou a vida inteira pela demarcação sente que vai morrer, não tem ameaça de fazendeiro que o impeça de cobrar os filhos, netos e bisnetos a fazer a retomada”.
“É isso que a burocracia e a Justiça do branco se recusam a entender”.