Ruy Sposati, de Caarapó (MS)
As duas testemunhas do assassinato de Denilson Barbosa, Guarani Kaiowá de 15 anos da aldeia Teyikue morto a tiros pelo fazendeiro Orlandino Carneiro Gonçalvez, prestaram depoimento à Polícia Civil de Caarapó, região sul do Mato Grosso do sul, na quarta-feira, 20. Também o capitão da aldeia registrou testemunho no inquérito.
Acompanhados de intérpretes Guarani, o irmão de Denilson, B., seu cunhado, S. e o capitão da aldeia conversaram por mais de cinco horas com a delegada responsável pelo caso, Magali Cordeiro, detalhando o ataque e contrapondo a versão do fazendeiro, que confessou a autoria do crime na terça-feira, 19. A polícia aguarda a conclusão da perícia e do laudo cadavérico, e um pedido de prisão contra o proprietário da terra deve sair nos próximos dias
Com os novos depoimentos e a autoria do crime já definida, a polícia acredita que é possível esclarecer as circunstâncias em que o crime de homicídio doloso ocorreu. “Eles não tinham o objetivo de danificar ou fazer nenhum tipo de baderna. Eles foram para o açude pescar, quando foram abordados pelo fazendeiro, armado, e mais dois homens”, afirma a delegada.
Os indígenas permanecem ocupando a fazenda, onde estão construindo barracos. As aulas da escola da aldeia haviam sido suspensas, em protesto ao assassinato, e foram retomadas nesta quinta-feira, 21.
As investigações estão sendo conduzidas pela Polícia Civil, mas os indígenas reivindicam o deslocamento de competência do caso para a esfera Federal. “Nós queremos a Polícia Federal. Muitas vezes, não podemos confiar na polícia daqui”. Segundo os indígenas, já existem conflitos na área envolvendo a questão fundiária, além de disputas judiciais com o fazendeiro. Lideranças do Conselho do Aty Guasu – grande assembleia Guarani e Kaiowá – apontam a delegada responsável pelo inquérito policial como uma das testemunhas de acusação num processo criminal relativo à questão fundiária que resultou na prisão de quatro indígenas em Dourados.
O crime
Conforme relataram as testemunhas, por volta das sete horas da noite, Denilson, seu irmão de 11 anos, B., e o marido de sua irmã, S., saíram da aldeia Teyi’kue para pescar no açude de peixes localizado dentro da Fazenda Santa Helena, com vara e sacolinha para carregar os peixes. Quando chegaram ao local, cachorros da fazenda começaram a latir e três pessoas saíram correndo da sede – casa onde morava o proprietário, Orlandino Carneiro Gonçalvez. Eram o próprio fazendeiro, acompanhado de dois homens que trabalhavam para ele.
Com lanternas, os dois funcionários iluminaram o local onde estavam os indígenas. Orlandino estava armado, deu dois disparos para o alto e os três garotos saíram correndo. Durante a fuga, Denilson escorregou e caiu na cerca de arame farpado que circunda o criadouro. O fazendeiro, então, segurou o jovem pela camiseta. Na tentativa de se libertar e também correr, Denilson foi executado com um tiro queima-roupa quando virou o rosto. O projétil entrou na cabeça do jovem na região abaixo do ouvido, saindo pelo pescoço. Daí a confusão dos indígenas acharem que mais disparos haviam atingido o jovem.
O irmão de Denilson e seu cunhado ficaram todo o tempo, em locais diferentes, escondidos nas moitas da mata ciliar do córrego, assistindo a ação do fazendeiro. No momento do tiro, ouviram um deles gritar: “Morre, seu cachorro”. Avistaram, então, os três erguerem o corpo de Denilson – possivelmente morto -, colocarem-no na carroceria de uma caminhonete e saírem do local. O cunhado permaneceu nas cercanias do açude, em choque, enquanto o irmão de 11 anos correu de volta à aldeia, para contar aos pais o que havia acontecido. S. viu, então, o trajeto da caminhonete: saiu da beira do açude para o canavial – onde o corpo seria encontrado horas depois – e retornou para a sede da fazenda. Os três, então, apagaram as luzes da residência e saíram novamente com a caminhonete no sentido de Nova América, distrito de Caarapó.
Chegando em casa, B. contou ao pai o que havia acontecido. A história começou a se espalhar entre a comunidade. O cacique da aldeia ouviu a notícia e foi em busca de mais informações sobre o ocorrido. Encontrou o pai de Denilson – que, segundo a liderança, estava visivelmente abalado, sem entender direito o que havia acontecido. “Meu filho saiu pra pescaria e não chegou ainda”, disse.
O corpo foi encontrado por um funcionário de uma fazenda vizinha, que dirigia um caminhão pela vicinal, onde foi deixado o corpo, num trecho conhecido como Pé de Galinha, por volta das 5 da manhã de domingo, 17. O homem avisou a comunidade indígena sobre a localização do corpo. A Polícia Civil foi acionada e fez a perícia no local em que o corpo foi abandonado, mas, segundo os indígenas, não na fazenda, cenário do crime.
Posteriormente, durante outra visita dos policiais civis ao local, uma liderança da aldeia os acompanhou até o açude, onde foram encontradas a vara de pescar e a sacolinha de carregar peixe. Vazia e abandonada.
Winchester 44
Na terça-feira, 19, o fazendeiro mandou que retirassem o gado e alguns pertences de sua casa, como sua antena parabólica – mas, curiosamente, deixou na residência uma espingarda, que pode ter sido utilizada no crime, recolhida como prova pela Polícia Civil na quarta, 20. Era um rifle Winchester 44, calibre 22, a famosa “arma que conquistou o Oeste”, de xerifes e pistoleiros estadunidenses no final do século dezenove, muito presente em filmes de época e no imaginário popular e a preferida do General Custer para acertar os “peles vermelhas”.
A delegada Magali acredita que a arma possa ser ilegal. “Ainda não foi possível realizar consulta para saber da legalidade dela, mas provavelmente ele não deve ter registro e porte da arma, e não iria correr o risco de ser autuado em flagrante delito por porte ilegal”, diz.
Prisão e confissão
Um funcionário de uma plantação de soja arrendada na área da fazenda de Orlandino garante ter sido preso e depois solto, acusado de ser um dos autores do crime. “Eles me confundiram porque um dos caras que ajudou o fazendeiro também era cabeludo, e de noite todos os gatos são pardos, né?”. A informação da prisão não é confirmada pela Polícia Civil, mas ele e o patrão foram ouvidos na investigação.
Na noite de terça-feira, 19, pressionado pela onda de denúncias na imprensa local e nacional e temendo que as investigações passassem à esfera federal, o fazendeiro foi até a delegacia de Caarapó confessar o crime, afirmando que estava sozinho no momento do assassinato, e foi liberado em seguida. A delegada Magali Cordeiro, responsável pelo inquérito policial do caso, acredita que estes elementos sejam suficientes para concluir o inquérito, o que deve levar à prisão do fazendeiro.
Pra matar
“Ele não atirou pra assustar. Ele atirou pra matar mesmo”, relatam. Os indígenas conhecem bem Orlandino. Muitos trabalharam em sua fazenda preparando roça, plantando, cuidando do gado ou levantando cercas. O próprio pai de Denilson trabalhava para Orlandino, assim como o pai do pai de Denilson trabalhava para o pai de Orlandino. “A gente sempre ouvia ele dizendo que um dia ia matar um bugre. Ele já tinha matado uns cachorros nossos que entraram na fazenda, já tinha dado tiro pra cima pra espantar a gente do criame [criadouro de peixes].”
Um tio de Denilson, idoso, conta que, certa vez, resolveu pegar um atalho para chegar a uma das fazendas onde trabalhava. O atalho era a fazenda de Orlandino. “Ele me cercou e disse: ‘ô índio, pode voltar’. Eu falei que não, e continuei seguindo pra frente. Ele falou ‘pode ir embora daqui, bugre’, e ‘pôu’ [deu um tiro] pro alto. Eu sei que eu tô errado, mas, se ele vai cruzar a reserva, a gente nunca ia atirar em ninguém, tirar a vida de ninguém”
“Em realidade, fomos nós que abrimos essas estradinhas, fizemos tudo isso aqui. Nós sempre trabalhamos pros fazendeiros a troco de carne, de arroz, de sal. Era o que restava”, conta um ancião. Os relatos corroborariam a alegação dos indígenas de que a área da fazenda de Orlandino faz parte de um território maior que, no passado, fora ocupado pelos indígenas.
“Aqui antigamente era o tekoha [território tradicional Guarani e Kaiowá] Pindoroky [broto de coqueiro pindó]. A gente acha que pode ter sido gente do SPI [Serviço de Proteção ao Índio, antigo órgão oficial indigenista do Estado brasileiro] que vendeu [para fazendeiros]. Então foi roubado da gente e agora que ele matou, nós tomamos de volta o que já era nosso”, afirma uma liderança indígena.
“A gente tentava ficar em paz com os vizinhos [fazendeiros], mas muitas vezes o fazendeiro nunca foi amigo do índio. Ele se faz de amigo e se aproveita da gente. E agora ficou claro que eles nunca quiseram amizade, Eles querem nos matar”, argumentam. “Então nós queremos eles afastados de nós, queremos ficar nessa terra que é nossa, que foi roubada dos nossos antepassados. Nós não vamos sair daqui”, dizem.
Os indígenas justificam que utilizavam o açude, mesmo com os perigos de serem atacados, por este ser o único trecho em que há peixes nas redondezas da aldeia. “Na reserva mesmo não tem peixe, porque eles mesmos [os fazendeiros] acabaram com os peixes. Por causa dessas plantações não tem mais peixe, não tem caça, não tem nada. É difícil até achar uma lagartixa por aqui”. No criadouro de Orlandino, encontra-se também um dos raros trechos de mata ciliar da região, onde os indígenas caçam, tiram ervas para remédios e extraem madeira.
Denilson era tímido, de poucas palavras, um pouco bagunceiro na sala de aula. Os professores dizem que era aluno muito bom. “Um rapaz sério”, disse um de seus professores. “Ele matou nosso aluno, por causa de dois peixinhos. Não conseguimos entender porque Orlandino ainda está solto”.
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