Depoimento: Velho Chico, santo Chico

Por Roney Garcia – Subeditor do Caderno Gerais

Atracado no porto de Pirapora, o Gaiola solta seu grito. Não é mais o canto imponente que o Benjamin Guimarães entoava nas primeiras décadas do século 20, convidando passageiros a embarcar para uma viagem de 1.370 quilômetros rio abaixo, até Juazeiro, na Bahia. Soa como um tipo de lamento, misto de vapor e nostalgia, que a embarcação, transformada em espécie de museu flutuante, usa para avisar sobre a próxima partida, para modestos 18 quilômetros cumpridos em três horas. Pode também ser interpretada como uma dolorida homenagem ao Velho Chico, que desde a década de 1920 serve de estrada agora cada vez mais curta ao vapor construído no Mississipi (EUA) em 1913.

Testemunhei um desses passeios,em 2011. Uma experiência inesquecível, sob vários – aspectos da bem azeitada máquina a vapor que move a embarcação ao encanto que emana do São Francisco propriamente dito.Mas a parte doída da viagem não demora a se denunciar: pode ser vista bem perto, nas chaminés de fábricas que cospem fumaça sem parar na margem direita. A névoa que encobre o leito desafia a perícia do timoneiro: o Gaiola precisa se safar entre obstáculos naturais, como as pedras do fundo, em um leito cada vez mais raso e entulhado de sedimentos e sujeira.

O olhar que se volta para as famosas barrancas encontra manilhões vomitando sujeira nas águas, que deveriam ser sagradas como o nome que as batiza. Em alguns pontos ainda preservados são os ranchos – nome genérico que serve para designar de casebres a quase mansões – que abrigam turistas, pescadores e ligações de esgoto cujo destino não é muito difícil de imaginar.

Difícil mesmo é entender como o velho e maltratado Chico – açoitado desde a Serra da Canastra, varrido por redes e saqueado pela pesca predatória em Três Marias, agredido em todo o seu curso pelas descargas de córregos imundos – pode chegar vivo a Pirapora e ir além, transformando em mar verde-azulado o sertão da Bahia, em Sobradinho. Só há uma explicação: o rio é milagroso. Milagroso como a fama de seu patrono, protetor dos animais e padroeiro da ecologia. O que se vê em sua calha, porém, pode ser interpretado como um alerta: a capacidade mágica do velho e santo Chico tem limite. E ele parece se aproximar perigosamente.

http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2012/07/08/interna_gerais,304862/estado-lanca-1-7-bi-de-litros-de-esgotos-por-dia-em-seus-mananciais.shtml#.T_l3YL8PkUc.gmail. Enviada por José Carlos.

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