Gracias a la vida

Francisca Gavilán dá vida e emoção a Violeta Parra, em atuação plena de verdade humana

João Paulo

O filme Violeta foi para o céu, de Andrés Wood, é um desses momentos que nos fazem crer no cinema. Contar a vida da cantora, compositora e artista plástica chilena Violeta Parra poderia ser motivo para todo tipo de arte. Sua vida cabe numa canção, num romance, numa peça de teatro. No entanto, ao levar para a tela a biografia escrita pelo filho de Violeta, Angel Parra, o diretor fez aquilo que cabe ao cinema e nenhuma outra forma de expressão: deu vida à artista.

Andrés Wood já havia mostrado talento e força em Machuca, seu filme anterior, marcadamente político, centrado nas disputas ideológicas entre a esquerda e a direita chilenas no movimentado início dos anos 1970, que seriam cortados a bala em 1973, com a morte de Salvador Allende. Era de se esperar que seu filme sobre Violeta, retrocedendo um pouco no tempo, buscasse inspiração política que desse à personagem sua ancoragem no tempo. O cineasta preferiu iluminar a mulher.
Violeta Parra foi artista rara, dessas que fazem falta ao mundo. Um dos maiores símbolos da cultura latino-americana (na época, em processo lento de aproximação com a brasileira, o que até hoje lentamente se constrói), fez canções que ainda hoje habitam a memória de várias gerações, como Volver a los 17 (gravada por Milton Nascimento e Mercedes Sosa) e Gracias a la vida (por Elis Regina). O filme é uma espécie de biografia a contrapelo, deixando de lado momentos mais conhecidos para se concentrar na atormentada alma de Violeta.

No entanto, não se pode rasurar a dimensão política de Violeta foi para o céu. Mesmo com o olhar voltado para a emoção, a narrativa vai deixando pelo caminho os signos que definem o período: a aproximação da cantora com os comunistas, a capacidade de indignação com a opressão aos trabalhadores rurais, a luta pela liberdade da mulher numa sociedade machista, o destemor em lutar por seu amor.

Violeta teve uma vida difícil. Pobre, educada sem a mãe, separada do marido e com filhos para criar, nada abate sua decisão de fazer de seu destino a expressão da verdade de seu povo por meio da arte. A cantora encantou os dois lados do mundo (fez sucesso como artista plástica na França) e teve que vencer muitos percalços: perdeu um filho quando estava na Europa, seu grande projeto de criar uma universidade do folclore não se concretizou, sua casa de cultura na periferia de Santiago, a Carpa de La Reina, não se sustentou.

Em todos esses momentos, a artista, que ainda sofria pelo fracasso de sua relação com o suíço Gilbert Favre (amigo do filho), se sente fraca, muitas vezes confusa e amargurada. O que dá ainda mais força à limpidez de sua poesia, expressa em canções sublimes. O sofrimento conferia-lhe o condão de falar em amor; era a percepção na carne da dor dos pobres que incrustava de indignação e beleza o seu canto; era a sabedoria que se perdia dos herdeiros da tradição que ela valorizava em suas músicas. Enquanto a mulher sofria e lutava, a artista compunha a utopia possível em forma de beleza.

A atriz chilena Francisca Gavilán merece ser reconhecida como uma das criadoras de Violeta foi para o céu. Sua atuação magistral foge de toda a tentativa de se decalcar na personagem real, criando alguém forte e singular, que se revela na tristeza que sombreia o olhar e no desejo que aquece os olhos. Ao cantar com voz própria aquelas músicas, Francisca Gavilán dá ainda mais verdade humana à atuação. O diretor, ao que parece, gosta de atores. O que evidencia um filme que se distancia do padrão. Violeta foi para o céu é uma história viva e por isso precisa de atores de verdade.

Técnica e emoção
A narrativa, com seus saltos, retrocessos e mudanças de temporalidade, leva o espectador a um mergulho que transcende à história. O destino político de Violeta, expresso com sabedoria e sem panfletarismo, é sobretudo a encarnação de um projeto: a busca da afirmação da verdade humana por meio da arte. Por isso há uma atualidade pungente no filme.

Os valores pelos quais Violeta lutou, expressos de forma tão bela, não foram recuperados com a aparente normalidade institucional de seu país e do subcontinente. A cultura popular continua desprezada, a arrogância do poder ainda divide as pessoas, a arte não carrega mais o papel histórico de levar consciência ao cidadão, a divisão social do trabalho se mantém discriminando os homens e mulheres. Se a Carpa da La Reina parece extemporânea mesmo naquela quadra, que seria dela num cenário nivelado pela mediania da indústria cultural?

Outra lição importante do filme parece dirigida ao cinema brasileiro. Violeta foi para o céu mostra um caminho de independência, capacidade expressiva e beleza formal que não tem relação com o custo da produção (menos de USS 2 milhões) nem com a repercussão que vem conquistando em todo o mundo. É uma saída que aposta na dimensão estética, filosófica e política da arte como a busca de emoção e diálogo com as pessoas. Não é preciso se afundar no lodo engraçadinho da Globo Filmes nem nos experimentalismos que não conseguem sair do labirinto das leis de incentivo e dos festivais que se bastam a si mesmos.

Por fim, filmes como Violeta foi para o céu nos ajudam a dimensionar melhor nosso destino de americanos do sul. Muitas vezes, é a arte que nos liberta de condicionamentos ideológicos. A recente questão paraguaia mostrou bem esse processo. O fato serviu de munição para os dois lados do diálogo de surdos que vem ganhando a cena. Os ditos liberais apontaram para a legalidade da deposição de Lugo (deixando de lado o fato de que o rito foi fraturado pela elisão da defesa), a esquerda fez questão de apontar o golpe, que foi real, mas sem avaliar as condições que permitiram que um governo popular e eleito fosse derrubado por seus méritos (distribuição de renda), e não por suas fraquezas em termos de capacidade de estabelecer alianças políticas viáveis.

Um lado não aceita o povo; o outro desdenha da política.

As canções de Violeta Parra expressam a injustiça e criam força moral para que se lute contra ela. Não é o único caminho. Mas, para quem teve coragem de voltar aos 17, traz a sabedoria de um século.

http://impresso.em.com.br/app/noticia/toda-semana/pensar/2012/07/07/interna_pensar,42065/gracias-a-la-vida.shtml. Enviada por José Carlos.

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