Paraguai: a crônica de um golpe anunciado

Autor: Maurício Colares
Por mauriciovirtus

“Um povo só é livre por vontade de espírito coletivo e por ninguém mais que por ele mesmo pode ser libertado.” (Augusto Roa Bastos, escritor paraguaio)

Para quem acompanhou a trajetória do padre Fernando Lugo desde a campanha política em 2008, o golpe de Estado realizado ontem no Paraguai é apenas a consolidação de tantos preparativos e tentativas de impedir sua ascensão, que começaram muito antes de quando teve que largar a batina devido ao papa não aceitar sua candidatura.

Lugo vem de uma família perseguida da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989), tornou-se bispo da Teologia da Libertação e se aproximou de homens como Frei Beto, Leonardo Boff, Dom Hélder Câmara e outros nessa linha. Em 1983 foi expulso do Paraguai nada menos que por seus “sermões subversivos”. Em 2004, para minar sua ascensão política e a oposição ao presidente Nicanor Duarte (2003-2008), a Igreja o aposentou sem apresentação de qualquer motivo.

Durante a campanha em 2008, por ousar romper efetivamente a dominação do Partido Colorado, que vinha há mais de 60 anos, passando por toda a ditadura de Stroessner e por todas as tramas comandadas pelo general Lino Oviedo na década de 90, ele teve que desmarcar muitos comícios pelas suspeitas de tentativas de assassinato, havendo também perseguição violenta aos que lhe apoiavam, como no caso do assassinato da brasileira Silvana Rodrigues de Avalos, esposa de Alfredo Avalos, do movimento de esquerda Tekojoja.

Com a vitória daquele que se dizia de si mesmo como “o buraco no centro do poncho” e que o povo paraguaio chamava de Tekojuja – que em dialeto guarani quer dizer “viver entre iguais” –, aparecia também para a América Latina como mais um fortalecimento na linha de governos democráticos e comprometidos com ideais sociais e humanos. Mas se sabia que seria difícil devido à força do conluio Oligarquia–Mídia–Igreja instalada no paraguai.

Começado o governo, com um país que tem mais da metade da população na linha de pobreza, e que tem o mais alto registro de concentração de terras em toda América Latina (80% do total da das terras férteis sob controle de apenas 2% da população), a tarefa não era fácil. Sem uma base forte no Congresso, Lugo intentou fazer acordos para a governabilidade, ao mesmo tempo que auxiliava o campesinato paraguaio a incrementar seu poder de mobilização, inclusive aumentando a ocupação de latifúndios improdutivos.

Os conflitos maiores estão na fronteira com o Brasil, lugar dominado pelos, na expressão de Martín Almada, prêmio Nobel da Paz alternativo, “latifundiários brasiguaios”, como Blás Riquelme, Tranquilo Favero e outros, que se locupletaram de terras durante a ditadura de Stroessner e que mantêm seu controle até hoje com as polícias locais e um verdadeiro exército de paramilitares.

E foi justamente o violento desalojamento de camponeses de uma fazenda de Blás Riquelme na semana passada, que produziu 18 mortos (11 camponeses e 7 policiais), o estopim esperado pela direita uruguaia para abreviar a trajetória de Lugo no governo. O objetivo, além de brecar o impulso dele nos últimos meses em levar adiante uma reforma agrária, e além de uma manobra política do vice-presidente Frederico Franco para tomar o poder, é, principalmente, eliminar o importe que teria Lugo na próxima campanha presidencial em 2013.

Com esta ocorrência, a ameaça de golpe que o próprio Lugo vinha denunciando desde o início de seu governo, se materializou em dois dias. A única possibilidade de manutenção de Lugo na presidência do País era a mobilização popular, que não se fez possível devido à velocidade e oportunismo do Congresso. Embora com a denúncia do instigamento pelos latifundiários no massacre ocorrido, na quinta-feira a Câmara de deputados aprovou (com 76 votos a favor e apenas 1 contra) o juízo sumário ao presidente pelo acontecido, e ontem o Senado (com 39 votos a favor e apenas 4 contra) destituiu Lugo da presidência, realizando o golpe sempre anunciado.

Por todos os lados da América Latina, quando se postula que se rompeu a situação de dependência, muitos foram surpreendidos pela forma de como se deu esse golpe de Estado no Paraguai, apesar de sua duradoura anunciação. O golpe sobre Lugo não é somente um golpe nos difíceis avanços democráticos e de direitos humanos no País, mas é mais uma demonstração de que este tipo de manobra, depois de Honduras, em 2009, continua vigente, principalmente nos lugares onde se faz mais visível de que “há uma dimensão étnica de classe social”, como diz o filósofo boliviano Álvaro García Linera, e onde a forma representativa de governo está organizada de modo a não permitir qualquer alteração na ordem secularmente constituída.

O que provavelmente ocorrerá no Paraguai? Com as diferenças oportunas, o modelo dos golpes de Estado atuais é Honduras: estado de sítio, recrudescimento policial, aumento da insegurança, crescimento do tráfico, censura e militarização de meios de comunicação opositores, perseguição à jornalistas, ativistas de direitos humanos e militantes sociais, enfim, sabotagens e brutalidades incontáveis à população…

Talvez, talvez o novo governo golpista de Federico Franco não seja reconhecido por outras nações e por órgãos como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a União de Nações Sul-americanas (Unasul), esta que inclusive já teve a imagem preparativamente minada pela mídia e o Congresso paraguaios. Em um mundo de interdependência globalizada, o não reconhecimento do governo parece um problema, mas isso somente até a eleição no próximo ano quando provavelmente será eleito um candidato de centro-direita neoliberal e logo voltará o reconhecimento, a começar pela OEA, claro.

Dando-se nesta ou outra qualquer configuração, o golpe não é somente contra Lugo, mas principalmente contra o campesinato paraguaio. E é em relação a este campesinato que o Brasil, uma potência econômica na atualidade, deve pensar e agir, a começar verificando a ação dos latifundiários brasileiros envolvidos nos conflitos de terra na fronteira com o Paraguai.

Finalmente, tudo depende de como esse campesinato, que conseguiu impor Lugo ao governo em 2008, mesmo não conseguindo mantê-lo seguindo a forma representativa clássica, de como durante esses anos se manteve coeso e se conseguiu elaborar alguma forma incapturável de organização para lutar contra o ouro que brota e se cria nos campos de soja, nas fazendas de gado.

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Quem sabe sentindo que as reverberações de Stroessner e Oviedo ainda rondam o Paraguai foi que Victor Heredia acompanhou Lugo na campanha de 2008, e do qual o povo paraguaio fez hino de campanha a canção Todavía cantamos, que o engajado cantor havia gravado na abertura democrática na Argentina em 1983. E é a letra desta música que recordamos aqui diante de mais um golpe em Latinoamérica:

Todavía cantamos

Todavía cantamos, todavía pedimos,
todavía soñamos, todavía esperamos
a pesar de los golpes
que asestó en nuestras vidas
el ingenio del odio,
desterrando al olvido
a nuestros seres queridos.
Todavía cantamos, todavía pedimos,
todavía soñamos, todavía esperamos
que nos digan adonde
han escondido las flores
que aromaron las calles
persiguiendo un destino,
¿dónde, dónde se han ido?
Todavía cantamos, todavía pedimos,
todavía soñamos, todavía esperamos
que nos den la esperanza
de saber que es posible
que el jardín se ilumine
con las risas y el canto
de los que amamos tanto.
Todavía cantamos, todavía pedimos,
todavía soñamos, todavía esperamos
por un día distinto,
sin apremios ni ayuno,
sin temor y sin llanto,
porque vuelvan al nido
nuestros seres queridos.
Todavía cantamos, todavía pedimos,
Todavía soñamos, todavía esperamos…

http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/paraguai-a-cronica-de-um-golpe-anunciado

Enviada por Sonia Rummert.

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