Tadeu Breda
São mais ou menos 6 horas da tarde. Como milhões de paulistanos, Rogério de Souza Ferreira, de 39 anos, volta pra casa depois de passar o dia todo na rua, trabalhando. Sua jornada, porém, ainda não acabou. Um banho, a tevê ligada na novela, Rogério começa a se preparar para o dia seguinte. Lava algumas panelas, posiciona a batedeira, acende o fogão industrial e bota a mão na massa. Com ovos, leite e leite condensado, prepara pudins muito apreciados em bares, lanchonetes e restaurantes do bairro da Luz, no centro de São Paulo. É na região que garante o sustento. E mora.
Há dois anos, o confeiteiro ocupa as quatro paredes apertadas de um apartamento da rua Mauá, número 340. São seis andares, que desde 2007 estão sendo revitalizados por integrantes de três movimentos sem-teto da capital. Até então, o edifício estava vazio, entregue a ratos e baratas, como costumam dizer os atuais moradores. E repleto de lixo – tanto que trinta caminhões com a caçamba lotada não foram suficientes para retirar tamanha tranqueira acumulada em décadas de abandono.
Ao se instalarem no prédio, os sem-teto não lhe deram apenas uma função social, como reza a Constituição: pessoas como Rogério transformaram o local numa espécie de incubadora popular de empresas. Iniciativas como a sua se multiplicam pelas pequenas salinhas que também servem de moradia, e pelos espaços que vão se improvisando nas áreas comuns do prédio. Falta chão para tanto empreendedorismo. Quem duvida, que entre pela portaria, peça autorização à Elisete – palmeirense roxa que controla o acesso das visitas – e suba apenas dois lances de escada. No primeiro andar, é impossível não se surpreender com um mini-mercado, bem recheado e iluminado, com as prateleiras cheias.
A responsável se chama Raquel Guimarães Dutra, tem 34 anos e muita disposição para crescer no ramo da alimentação. É agressiva nos negócios, e não perde tempo. Na falta de capital para investir, recorre a suaves parcelas de dez, doze meses para comprar gôndolas, balcões, freezers, caixa registradora. Assim foi conseguindo diversificar suas vendas. “Comecei no meu apartamento com balas e chicletes”, lembra. Depois, vieram as bolachas e os macarrões instantâneos. Então, o apartamento 107 foi ficando pequeno. Conversando com a coordenação do movimento, pediu – e obteve – um espaço maior, pra vender e morar. “Deu certo, e comecei a fazer lanche, cachorro quente e batata frita.” A chapa ela também parcelou, e a televisão de cachorro. Agora, tem frango assado no final de semana, pertinho das 237 famílias do edifício.
O que os moradores pedem, Raquel providencia. Por isso, não deu pra continuar morando na loja. “O lanche solta muita gordura, eu tinha meu armário aqui e as roupas ficavam terríveis”, recorda. Mas o problema não era apenas a fritura. “Não tinha mais espaço pra mim.” Uma nova conversa com a coordenação do movimento a transferiu, com as duas filhas e o marido, para outro apartamento, o número 222. “Ainda não coloquei na ponta do lápis quanto dinheiro já investi aqui. Só me preocupo que tenho parcelas pra pagar. Tou sempre pagando alguma coisa. Quando acabo um carnê, já começo a pensar na próxima compra.”
Abrindo crediários e arriscando sua pequena renda mensal em novos equipamentos, Raquel se transformou em empregadora. Hoje, tem uma funcionária, também moradora da ocupação. Além dos alimentos, vende produtos da Avon e da Natura. “Antes de vir pra cá, trabalhava em casa de família”, diz. Ao ingressar no movimento, portanto, não foi apenas seu endereço que mudou. “Não tinha tempo de cuidar direito das minhas filhas. Agora, posso dar mais atenção a elas. Se tem uma reunião na escola, não preciso pedir autorização pro patrão. Eu simplesmente vou.”
Concorrência
Ao invés de competir, os empresários da ocupação se ajudam. Por exemplo, o mercadinho-lanchonete da Raquel costuma vender os pudins do Rogério, que não se incomoda com que Raquel comercialize outros doces em suas prateleiras. Pelo contrário, por vezes se associam para baratear a compra de estoque. “Aqui não tem concorrência”, garante Jirlaine Sousa Braga, 36, que abastece a ocupação de roupas e confecções.
“Comecei com jeans, depois passei a vender infantil também. Só feminino, porque homem não gasta muito”, ensina. No início, Jirlaine não tinha lugar fixo para oferecer as peças de vestuário que compra no bairro do Brás, na zona leste da capital. Punha a mercadoria numa mala e se colocava na portaria do prédio, avisando os moradores que passavam por ali, entrando e saindo, sobre as novidades que trazia a tiracolo. Mas o negócio cresceu, e a venda migrou para o apartamento 331, no terceiro andar, onde morava só com o marido. Como a situação econômica melhorou, a família também cresceu. Jirlaine conseguiu trazer seu filho de Itapipoca, no Ceará, onde nasceu e constituiu família. Depois veio a filha.
Hoje, tem uma lojinha no térreo do prédio, bem ao lado da portaria. “Vendo fiado, pra receber em 30 dias. Quando pagam à vista, dou 10% de desconto. Dependendo da compra, faço em até 60 dias”, conta, lembrando que a estratégia não lhe exime dos calotes. “Já levei muuuuuitos”, ri. “Mas a gente não fica com raiva. Se não pagou, pode até comprar de novo, só que crédito não vai ter mais.”
Antes de entrar no ramo das confecções, Jirlaine mantinha um barzinho com o marido, na rua Cásper Líbero, onde trabalhavam e moravam. Mas o proprietário pediu o imóvel de volta, e numa tacada só perderam emprego e casa. O movimento sem-teto, que ela sequer conhecia, foi uma das poucas saídas que restaram diante dos aluguéis abusivos de São Paulo. “Na ocupação, comecei a fazer marmitas, que meu marido entregava na região. Depois, ele passou a trabalhar aqui na portaria do prédio e tivemos que parar. Então veio a ideia de vender roupas”, explica.
Foi uma mudança profissional que dificilmente terá volta atrás. “Roupa é uma coisa que não vence, todo mundo usa e sempre está em alta. O retorno demora um pouco, mas compensa bem mais do que trabalhar com comida”, compara. E dá mais dinheiro. Por enquanto, livre do aluguel, Jirlaine está pagando faculdade para sua filha, que cursa o primeiro ano de Direito na Universidade São Judas. Seu sonho é entrar para a Polícia Federal. “Morando aqui, o pouco que a gente ganha dá pra pagar os estudos dela.”
Deu também para ajudar o próximo. Jirlaine diz que seus negócios estão devagar agora porque acaba de adotar uma criança, filha de uma moradora de rua que perambula pela região da Luz entre uma e outra pedra de crack. Após o parto, a moça colocou a filha para adoção – e, com ela, Jirlaine aumentou sua família. Os cuidados que exige um recém-nascido impediram que a lojinha continuasse funcionando. “Estou de licença-maternidade”, brinca. Mas, ainda que esporadicamente, os negócios continuam. “O pessoal sabe que eu vendo e sobe lá em casa.”
Rogério, o confeiteiro, não adotou ninguém nem casou, mas também melhorou de vida depois que conseguiu uma vaga na ocupação. Antes, se desdobrava em pudins para pagar os R$ 800 mensais que lhe cobravam por uma quitinete na rua São Caetano. Agora, pagando a contribuição coletiva de R$ 80 para atender às necessidades do prédio, sobraram uns trocos – e esse dinheiro se transformou em mais um fogão industrial, com forno e tudo, que aumentou sua capacidade de assar pudins e atender mais clientes.
Atualmente, Rogério comercializa entre 20 e 25 formas por dia. Por isso, gasta dezenas de litros de leite e três botijões de gás por mês – e a temperatura de seu quartinho vai às alturas quando a produção está a todo vapor. É tudo muito apertado, muito precário. “Mas gosto do que faço, e as pessoas gostam do meu pudim”, orgulha-se. “Se eu parar esse serviço aqui, vou deixar o pessoal sem sobremesa.” A satisfação da clientela é o estímulo que precisa pra seguir em frente contra o calor de seu apartamento e contra a especulação imobiliária que, sim, o transformou em sem-teto, mas não lhe tirou o doce da vida.
http://www.latitudesul.org/2012/06/18/empresarios-sem-teto-movimentam-ocupacao-em-sao-paulo/