João Paulo
Ele foi batizado como Edinaldo, se tornou Naldo, que era mais simples e verdadeiro (como ele), e acabou sendo Naldinho para os que tiveram a sorte de conviver com ele. Nasceu no Maranhão, viveu até a juventude no Pará, trabalhou em Minas, estudou em São Paulo. O mundo para ele era uma casa e todas as pessoas faziam parte de sua família. Era tão alegre e inteligente que deixava todo mundo confuso: não se submetia às tiranias da seriedade, mas era capaz de análises de argúcia impressionante. Tudo começava e terminava no afeto. Ele era todo coração.
Naldo morreu na semana passada, aos 37 anos, em Rio Branco, no Acre, onde era professor da rede pública e militante de vários movimentos sociais. No dia 1º, cerca de 50 pessoas se reuniram no salão paroquial da Igreja São José, no Centro de Belo Horizonte, para lembrar o amigo e cantar para ele as canções que ele gostava de ouvir. Eram pessoas de vários campos da militância popular, pessoas ligadas à Igreja, ao movimento de mulheres, aos sem-terra, aos partidos políticos de esquerda, à associação de catadores de material reciclável, entre outros. Companheiros de luta. Naldo foi, com toda a alegria que emanava, um companheiro e um lutador.
No centro da roda dos amigos que se reuniram para seu quarup afetivo, alguns poucos objetos dispostos com cuidado, como oferendas, sintetizavam a trajetória de Naldo: uma Bíblia, um enfeite feito de penas de aves da floresta, um volume de Grande sertão: veredas, algumas contas, um pequeno instrumento de percussão, uma rede, flores. Estavam ali, como matéria, algumas das balizas de um homem justo e bom. Mas o melhor dele foi surgindo à medida que as pessoas foram destacando, cada uma a seu jeito, do que era feito de verdade Naldinho.
Vivemos um tempo de tanto egoísmo que um homem como Naldo se torna uma referência. Nos vários lugares onde esteve, como profissional, religioso, militante, estudante e cidadão, ele sempre trazia uma entrega tão determinada à causa dos oprimidos que parecia que essa era uma vocação simples, uma escolha dada pelas circunstâncias de sua vida de menino pobre, numa região miserável e violenta pela ação dos maus homens. Não é toda a verdade: lutar em tantas frentes não é apenas resultado de inclinação ou destino, mas de vontade e inteligência devotadas a valores humanos que nos transcendem.
Quando os companheiros e companheiras de Naldinho, naquele começo de noite de lua cheia, começaram a lembrar do amigo, foram surgindo palavras que não são comuns no dia a dia: intensidade, solidariedade, bom combate, alegria, sabedoria, coerência, entrega. Além das qualidades, que são muitas e reais, cada um, de sua janela do mundo, tinha sempre a lembrar do companheiro uma atitude pública e outra íntima. Todos partilharam com ele passeatas, reuniões políticas, ocupações – a face política; e todos tinham uma história de afeto e solidariedade para contar – a dimensão fraterna.
Comunidade
Naldo, em Belo Horizonte, trabalhou na Cáritas, uma organização ligada à Igreja Católica, sempre com a capacidade incomum de transformar todos em parceiros. Mesmo na divergência, ele criava o espírito de comunidade, de onde brotava a possibilidade das discordâncias e sínteses. Sem medo do conflito, tinha convicções fortes o bastante para se abrir ao diálogo e à disputa. Que fizesse isso deixando o ambiente mais feliz e as pessoas melhores, é uma arte que vai com ele e nos deixa mais pobres.
A militância social e política levou Naldo a buscar aprofundamento em seus estudos. Fez o mestrado em Educação na Universidade de São Paulo, escolhendo como tema de pesquisa a própria atuação das organizações católicas a que pertencia. Interessava a ele que a teoria iluminasse a prática e o preparasse para novos desafios. Tinha como plano voltar para o Pará, um estado marcado a sangue pelos conflitos de terra, e se dedicar ao seu povo. Durante o tempo em que estudou na USP fez muitos amigos e ampliou sua capacidade de criar comunhão com o outro. Não tinha medo da cidade voraz, nem constrangimento em frequentar ambientes intelectuais. Sua capacidade intelectual não era menor que sua afirmação de cidadão.
A defesa de seu mestrado, na vetusta universidade paulista, foi uma festa. Quem imagina a formalidade da arguição, feita de muita erudição e julgamento afetado, na maior universidade do país, iria estranhar o ambiente de celebração que se tornou a “solenidade”. Estavam todos lá: os funcionários, os trabalhadores da cantina e da moradia estudantil, colegas de vários cursos, amigos de fora da universidade. Sem perder o rigor do trabalho, Naldo começou a devolver o que foi investido nele já no rito de saída da universidade: pagou com leveza e força moral os anos de estudo.
Depois de um período em Brasília, ele decidiu que era a hora de voltar para o Norte. Descobriu no Acre outras dimensões da sabedoria da floresta, inclusive as místicas, estava muito feliz em dar aulas, mantinha uma impressionante ciranda de afeto pelas redes sociais. Conversava com todos, ia dos assuntos íntimos às análises de conjuntura, se preocupava com as lutas sociais de BH, era solidário com todos. Maduro, mas sem perder a saudável faceirice, ia definindo seus caminhos de volta para casa. Até a mais radical de todas as voltas.
Amor e humor
Convivi muito pouco com Naldinho, mas sempre percebi que era um homem diferente, capaz de usar as armas mais frágeis para vencer os grandes inimigos. Nele a palavra militante tinha uma força própria, já que não se separava de sua vida. Era desses que respiram política para fazer frente a qualquer tipo de injustiça.
No entanto, nada mais distante dele que o estilo ranzinza, a certeza raivosa, o confronto de cenho franzido. Ele sabia lutar e era forte, mas dotado de um humor e dialética que fazia de sua presença um convite a rever convicções e comportamentos. Naldo queria um mundo bom para todos e, para isso, combatia de forma feliz. A utopia não era a meta, era travessia; a revolução seria dada já no jeito de seguir o caminho desde os primeiros passos.
Neste momento de saudade, parece que se vão recompondo nos amigos algumas certezas: a justiça das causas pelas quais ele se bateu, a força moral dos homens que combatem o tempo todo, a percepção de que não estamos sós e que a luta, sempre, continua. Naldo foi a boa companhia de muitos e ensinou que sem os outros tudo perde o sentido. Escolheu a trincheira mais severa, não desejou dinheiro ou poder, foi o melhor amigo que se pode querer para as horas boas e para as difíceis. Ele dava a todos a certeza de que a fraternidade é possível, nesta vida.
As 50 pessoas que se reuniram no salão da igreja, para cantar para ele e deixar chover suas lembranças com algumas lágrimas e muitos sorrisos, tinham à frente uma malha, dois livros, algumas pedras, penas e flores. Não precisavam de mais nada. Levavam Naldinho na alma. A tarefa agora é fazer florir o mundo.
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Enviada por José Carlos.