Municípios omissos e tragédias urbanas, por Dalmo Dallari*

A omissão dos municípios no cumprimento das obrigações que lhes são atribuídas pela Constituição está na raiz de conflitos sociais graves, como o despejo forçado das famílias moradoras do Pinheirinho, bairro do município de São José dos Campos, no stado de São Paulo, a expulsão violenta dos moradores de rua da região da cracolândia, na capital paulista,  e também as violências de muitas espécies que marcaram a história das favelas do Rio de Janeiro. Em todos esses casos existe um ponto em comum, que é a omissão das autoridades municipais no desempenho de sua atribuição constitucional relativa à ocupação e ao uso do espaço urbano. Essa responsabilidade dos municípios é tradicional no Brasil, estando implícita no conceito de autonomia municipal, que foi uma importante inovação no federalismo introduzida pela primeira Constituição republicana brasileira, de 1891. Como foi evidenciado com acuidade pelo eminente jurista Miguel Reale, diferentemente do modelo estadunidense, que desde a origem e até hoje só se refere a dois níveis de poder, o nacional e o estadual,  o federalismo brasileiro criou um tripé, composto pela União, pelos estados e pelos municípios.

Isso foi muito bem definido na  atual Constituição brasileira, em cujo artigo 1° já se dispõe que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos estados e municípios e do Distrito Federal, havendo um capítulo dedicado especialmente à definição dos aspectos fundamentais da organização dos municípios. E no artigo 30 há uma enumeração minuciosa e precisa das competências do município, que são um conjunto de poderes e responsabilidades. Ali se encontra, clara e objetivamente fixada, a seguinte atribuição municipal: «VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano». O município tem competência para a elaboração de sua própria Lei Orgânica e para fixar regras básicas para ocupação e uso de seu território, mas a esse poder corresponde a obrigação constitucional de exercer vigilância e coibir a ocupação e o uso que não estejam em.conformidade com as exigências legais.

Dessa competência, que implica poder e responsabilidade, decorre que o município está constitucionalmente obrigado a manter vigilância permanente sobre a ocupação e o uso do solo dentro de seus limites, impedindo edificações ou instalações residenciais de qualquer espécie, inclusive tendas e acampamentos, que não atendam às exigências legais. Ora, no caso do Pinheirinho, que é um exemplo muito expressivo pelas graves consequências sociais decorrentes da omisão, ali residem mais de 1.700 famílias, sendo mais do que óbvio que essa ocupação, em desacordo com as formalidades legais, foi crescendo gradativamente, sem que as autoridades municipais responsáveis tomassem qualquer iniciativa para coibi-la. E agora, provavelmente porque existe interesse econômico em sua utilização rentável, as autoridades policiais estaduais foram mobilizadas para a promoção imediata e, se necessário, violenta, de sua desocupação, expulsando as famílias que ali se instalaram e até agora viveram pacificamente, sem que nenhum agente público do município tomasse qualquer providência para preveni-los da ilegalidade da fixação do grande número de residências naquela área sem atender às exigências da legislação municipal.

Evidentemente, a prolongada omissão do município contribuiu para a convicção de que não havia ilegalidade e estimulou a ampliação da ocupação. Assim, pois, o município é responsável pelas violências e pelos prejuízos que os moradores do Pinheirinho estão sofrendo. Por isso, a par da responsabilização das autoridades municipais pela omissão, que configura descumprimento de seus deveres legais, cabe também a cobrança de indenização pelos danos e perdas dos moradores, que certamente não teriam fixado ali a residência de suas famílias se, logo após a instalação no local, tivessem sido advertidos da ilegalidade da ocupação. Sob esse aspecto o caso do Pinheirinho poderá ser exemplar, pois uma condenação das autoridades e do erário municipal servirá de advertência para que os municípios desempenhem as atribuições de sua competência, cumprindo suas obrigações constitucionais, deixando assim de contribuir, por sua omissão, para a criação de aglomerações urbanas ilegais, que podem ser fontes de prejuízos de pessoas honestas e humildes, além de ser, essa omissão, a primeira causa das violências contra essas pessoas e sua famílias.

*Dalmo de Abreu Dallari é jurista.

http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2012/01/26/municipios-omissos-e-tragedias-urbanas/

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