Rita Potiguara: visões estereotipadas alimentam preconceito

Para a conselheira do CNE, Rita Potiguara, é necessário atualizar a figura do índio

Professora da Secretária de Educação do Ceará, conselheira da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CEB/CNE) e membro do Colegiado de Culturas Indígenas do Ministério da Cultura (MinC), Rita Gomes do Nascimento – Rita Potiguara – é indígena pertencente ao grupo Potiguara de Crateús (CE).

Formada em pedagogia, tem mestrado e doutorado em educação e desenvolve pesquisas na área de educação indígena. Integra, também, a equipe de coordenação do Curso de Licenciatura Intercultural: formação de professores indígenas, na Universidade Estadual do Ceará.

Em dezembro último, recebeu o Prêmio Direitos Humanos 2011, promovido pela Presidência da República e pela Secretaria de Direitos Humanos, na categoria Educação em Direitos Humanos.

Em entrevista ao Jornal do Professor, Rita Potiguara destaca a importância da Lei 11.645 de 2008, que tornou obrigatório o estudo da história e da cultura afrobrasileira e indígena em todas as escolas de educação básica. Ela acredita que, a partir daí, os sistemas de ensino deverão promover cursos de formação inicial e continuada para os professores, bem como oferecer suportes didáticos e pedagógicos para trabalhar esta temática.

Em sua opinião, é necessário atualizar a figura do índio, apresentado, quase sempre, como personagem do passado colonial, pois as visões estereotipadas dos índios alimentam diversas situações de preconceito. “A atualização da história e cultura indígenas pode ser trabalhada de modo transversal nas diversas áreas de conhecimento”, enfatiza.

Jornal do Professor – Qual a avaliação que a senhora faz sobre a educação indígena atual nas escolas brasileiras?

Rita Potiguara – Para responder a esta pergunta, é preciso considerar duas situações particulares. Uma diz respeito aos projetos de educação indígena experienciados pelas próprias comunidades indígenas. A outra está ligada ao tratamento da temática indígena nas escolas não indígenas.

Quanto à primeira, merece destaque os esforços dos grupos na construção de uma educação escolar diferenciada, buscando, por meio de uma perspectiva dialética e, por conseguinte, intercultural, por em diálogo os conhecimentos específicos de cada grupo e os produzidos e sistematizados pela escola.

Já no que diz respeito às escolas não indígenas, apesar da existência da Lei 11.645 de 2008 que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e cultura dos povos indígenas nos currículos escolares da educação básica, pouco efetivamente se tem avançado neste campo. É sabido que a inclusão da temática indígena nas escolas não indígenas favoreceria, dentre outras coisas, a diminuição do preconceito corrente contra os grupos indígenas e seus direitos socioculturais.

JP – Como o conteúdo de educação indígena deve ser inserido no projeto pedagógico das escolas?

RP – Uma das questões mais críticas quando se fala da temática indígena nas escolas não indígenas está ligada às visões estereotipadas dos índios que alimentam diversas situações de preconceito. Assim, se faz necessária a atualização da figura do índio nas escolas que, via de regra, é apresentado como personagem do passado colonial, quase confundido com a natureza, ora visto como o bom selvagem rousseauniano, ora percebido como o mau selvagem comedor de carne humana, sem religião e desprovido de “modos civilizados”.

A atualização da história e cultura indígenas pode ser trabalhada de modo transversal nas diversas áreas de conhecimento. Além disso, é preciso se levar em consideração, na construção dos projetos políticos pedagógicos das escolas, as ideias de interculturalidade, da construção comunitária de tais projetos e de respeito e promoção das diferenças socioculturais, princípios postos em ação pelos índios na construção de sua educação diferenciada.

JP – Como fica a questão do ensino da língua portuguesa e das línguas indígenas no contexto escolar?

RP – Mais uma vez é preciso fazer a distinção entre os contextos escolares indígenas e não indígenas, mesmo no caso em que estes últimos também contem com a presença de estudantes índios.

Nas escolas indígenas, a língua portuguesa pode figurar como a primeira ou a segunda língua, em grupos bilíngues ou multilíngues. Há ainda os casos em que o português é a única língua falada pelo grupo. Assim, a importância do seu ensino assume significados diferentes em contextos particulares.

O ensino da língua indígena nas escolas diferenciadas deve ter a mesma importância que o português, tendo em vista a sua condição de expressão privilegiada de referências identitárias. Com isso quero chamar a atenção para o fato de que as línguas indígenas não devem se limitar a formas de expressão oral, servindo também de suporte para o registro escrito de conhecimentos comunitários e escolares.

Já nas escolas não indígenas que possuam estudantes índios, o que se espera é que a comunidade escolar como um todo respeite e valorize a língua falada por estes estudantes. Além disso, dada a diversidade sociolinguística existente em nosso país, havendo atualmente mais de 180 línguas indígenas faladas, é preciso promover o conhecimento desta diversidade por meio de pesquisas nas escolas.

JP – O aluno indígena deve ter uma didática e pedagogia diferenciadas?

RP – Como tenho chamado a atenção é preciso considerar as especificidades de cada caso. Há os alunos indígenas nas escolas de suas comunidades que fazem parte de um projeto pedagógico diferenciado que trabalha as questões de interculturalidade, do bilinguismo, da diferenciação e da especificidade da história e cultura de seu grupo de pertencimento. Dentre outras questões, é por causa disso que, nas escolas indígenas, há a necessidade dos professores serem indígenas, desenvolvendo pedagogias e didáticas apropriadas aos contextos comunitários em que se situam as escolas.

Por outro lado, as escolas não indígenas, na construção de suas práticas pedagógicas e didáticas, deveriam considerar os diferentes estudantes que se fazem presentes na escola, tendo em vista as várias histórias de vida, valores, aprendizados. Vale lembrar, neste sentido, que a perspectiva homogeneizante da educação escolar tem provocado efeitos perversos na tentativa de tornar todos os estudantes iguais.

JP – Como o professor que tem apenas poucos alunos na turma deve trabalhar as questões da cultura indígena?

RP – É sabido que a questão da cultura indígena não deve ser limitada aos contextos escolares dos índios. Aí reside a importância da Lei 11.645 de 2008 que estabelece à necessidade, para todas as escolas de educação básica, independentemente de serem indígenas ou não, de se ensinar a história e cultura indígenas para não indígenas. A partir daí, os sistemas de ensino, deverão promover cursos de formação inicial e continuada para os professores, bem como oferecer suportes didáticos e pedagógicos para trabalhar esta temática, utilizando vídeos, livros, brinquedos, jogos, softwares etc.

JP – E as escolas que se dedicam integralmente a turmas indígenas?

RP – As escolas indígenas, por meio de seus projetos políticos pedagógicos, da produção de materiais didáticos específicos, do ensino das línguas indígenas e das aulas culturais, têm buscado construir metodologias compatíveis com as realidades socioculturais dos seus estudantes.

JP – Qual a formação adequada para que professores atuem na educação indígena?

RP – Mais uma vez é preciso distinguir entre os contextos escolares indígenas e não indígenas. Nas escolas indígenas, o professor, via de regra, pertencente à comunidade, antes de tudo, deve ser aceito por ela, o que implica no seu engajamento político nas questões postas pela comunidade. A sua formação, desde a implementação das primeiras escolas diferenciadas, sobretudo entre finais da década de 1980 e início de 1990, se deu em cursos de magistério indígena em nível médio. Com o crescimento da demanda por escolas e sua importância política na vida das comunidades, atendendo também as etapas finais da educação básica, esta formação vem se dando nas chamadas licenciaturas interculturais, atualmente ofertadas em mais de 20 instituições de ensino superior em todo o país.

No caso dos professores não indígenas e que atuam em escolas não indígenas, os sistemas de ensino deveriam se responsabilizar pela formação adequada destes profissionais, inserindo, nos cursos de formação, conteúdos relativos à temática indígena. Além disso, também é importante que o professor procure conhecer mais o assunto, pesquisando e se instrumentalizando para lidar com esta temática.

JP – As políticas públicas em relação à educação indígena têm avançado?

RP – Desde a Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 que a Educação Escolar Indígena vem, gradativamente, sendo reconhecida em suas especificidades e direitos particulares. Já em 1999, o Conselho Nacional de Educação emite dois documentos, o Parecer 14 e a Resolução 03, que fixam as diretrizes para o funcionamento das escolas indígenas e reconhece-lhes a condição de escolas com normas e ordenamento jurídico próprios, definindo, ainda as diretrizes curriculares do ensino intercultural e bilíngüe, com vistas à valorização plena das culturas dos povos indígenas e à afirmação e manutenção de sua diversidade étnica.

A partir destes marcos legais surgiram várias conquistas no âmbito das políticas públicas educacionais brasileiras, como a oferta dos cursos de formação de professores indígenas pelos sistemas de ensino, a construção de escolas e mais recentemente, dentre outras conquistas, a instituição dos Territórios Etnoeducacionais como um novo modelo de gestão para essa modalidade de educação.

Mas, apesar de no campo das leis e das políticas públicas haver conquistas, o ordenamento jurídico próprio das escolas indígenas nem sempre é respeitado. Uma questão na qual ainda se tem pouco avançado está ligada à diversidade linguística dos povos indígenas. O Estado brasileiro ainda não conseguiu construir uma política sociolinguística que reconheça e valorize tal diversidade. Além disso, grande parte dos professores indígenas trabalha de forma precária, pelo não reconhecimento da categoria professor indígena nos quadros do magistério público.

Tais situações não impedem, no entanto, o surgimento de experiências inovadoras entre os professores e comunidades indígenas que, por meio de práticas pedagógicas, metodologias e materiais didáticos diferenciados, trazem exemplos para o Estado e os sistemas de ensino, merecendo ser melhor conhecidas e divulgadas.

http://portaldoprofessor.mec.gov.br/noticias.html?idEdicao=76&idCategoria=8

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