Bolsa Verde: Algumas reflexões e questões

O documento abaixo foi formulado por Amigos da Terra Brasil sob a forma de três perguntas, todas tendo como ponto de partida o Programa Bolsa Verde. As respostas, entretanto, propõem muitas outras questões e reflexões, envolvendo diretamente as políticas para o campo e para as comunidades que nele (ainda) vivem. Como denuncia o texto, “Um aspecto perverso, e que a Bolsa Verde corre o risco de corroborar, é que no país do agronegócio e das monoculturas mais agressivas haja uma campanha de convencer extrativistas, indígenas, ribeirinhos, quilombolas, pequenos agricultores e camponeses que eles são os responsáveis pelo desmatamento”. Vale lê-lo e dialogar com ele. TP.

1 – Como você vê iniciativas como o Bolsa Verde? É válido ou apenas mais uma bolsa?

Partilhamos da crítica que a sociedade civil e movimentos vem fazendo à oferta de ‘bolsas’ como carro chefe das ações do governo. Embora administrativamente através destas medidas se consiga colocar o recurso diretamente nas mãos dos beneficiados, a ‘bolsa’ é um instrumento paliativo que não enfrenta o problema na raiz e não altera as estruturas geradoras da desigualdade e da concentração da riqueza, nem propõe e estimula outras dinâmicas econômicas. As bolsas são efetivas na medida que  funcionam muito bem para alterar condições imediatas de sobrevivência e servem como instrumento compensatório para justificar a reprodução de um modelo econômico orientado para os lucros do mercado, ou ainda, como pode ser a Bolsa Verde, para a criação e ampliação dos mercados como explico adiante.  Na prática, o maior risco das políticas sociais através de ‘bolsas’ é a despolitização das questões o que torna cada vez mais complexa a discussão política e a organização da luta por mudanças estruturais e de longo prazo. Um ponto crucial para a discussão é sobre como a perpetuação destas benesses do governo junto às famílias assistidas serve para referendar, e eximir da crítica, a orientação geral do país para as políticas de aceleração do crescimento, considerando apenas ‘externalidades’ seus impactos brutais sobre o despojo das populações, dos territórios e dos recursos naturais e bens comuns.

Sobre isto, a sociedade civil vem se colocando de forma contundente, com uma crítica cada vez mais mais elaborada, questionando o que parece ser um padrão deste modelo de desenvolvimento hegemônico que gera cada vez mais atingidos e afetados, impactando as populações rurais, camponeses, pequenos agricultores, indígenas, ribeirinhos, quilombolas e comunidades tradicionais, e especialmente as mulheres. Este foi um dos pontos do documento político final do encontro nacional de “Diálogos e Convergências” que ocorreu em Salvador no final de setembro deste ano e que contou com mais de 300 participantes, representando diversas redes e articulações nacionais, de Agroecologia, Saúde e Justiça Ambiental, Soberania Alimentar, Economia Solidária e Feminismo:

“(…) o crescimento econômico pela via da exportação de commodities, esse padrão gera efeitos perversos que se alastram em cadeia sobre a nossa sociedade. No mundo rural, a expressão mais visível da implantação dessa lógica econômica é a expropriação das populações de seus meios e modos de vida, acentuando os níveis de degradação ambiental, da pobreza e da dependência desse importante segmento da sociedade à políticas sociais compensatórias. ” (Carta de Salvador) [i]

A efetividade gerencial na distribuição de ‘bolsas’ não pode servir para arregimentar inocentes úteis ou partícipes deste modelo desenvolvimentista e da ideologia produtivista e do crescimento a qualquer custo com o qual discordamos.

Falando especificamente do Bolsa Verde, este integra o programa ‘Brasil sem Miséria’, com a proposta de pagamentos de R$ 300 reais a cada três meses (R$ 100 reais por mês), para as famílias que vivem em assentamentos da reforma agrária diferenciados (com foco no extrativismo), áreas de florestas nacionais, reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentável, e deverá atender populações de extrema pobreza (renda per capita inferior a R$ 70) cujo trabalho, segundo o governo, implica  na ‘proteção de serviços ambientais’, ou seja, que estas famílias beneficiadas façam uso sustentável da floresta, por meio da exploração do látex, das castanhas, de óleos vegetais, do açaí ou até da madeira, segundo critérios fixados por planos de manejo. Além disso, as famílias já tem que estar cadastradas no Bolsa Família para receber o Bolsa Verde, pois o valor adicional é transferido por meio do cartão do Bolsa Família. O programa foi anunciado oficialmente pela presidenta Dilma no final de setembro, em Manaus, e se destina inicialmente a 3,5 mil famílias extrativistas da região norte, com a meta de alcançar 18 mil famílias até o fim de 2011 e chegar até 72 mil famílias até o final de 2014.

O Bolsa Verde traz outro nível de complexidade, inserido em uma debate recente e ainda pouco discutido da perspectiva crítica. O Bolsa Verde chega para estas populações com uma finalidade específica, de através de uma busca ‘ativa’ deste contingente (já que vivem em regiões de difícil acesso e por muitas vezes isoladas) e de incluí-los através de uma renda extra ao do Bolsa Família, reconhecendo e ‘valorando os serviços ambientais’ prestados por estas populações, por isso o governo apresenta como ‘geração de renda com preservação ambiental’.

Atualmente 16,2 milhões de brasileiros estariam vivendo em situação de extrema pobreza; na região norte do país, alvo do Bolsa Verde, 2,65 milhões de pessoas vivem em pobreza extrema e 56% desta população habita na zona rural e são definidas ‘miseráveis’ em função da sua (in)capacidade de consumo (e não pela possibilidade de subsistir no território, com caça, pesca, coleta, cultivos e roçados, ervas medicinais e outros produtos da floresta).

O Bolsa Verde de certa forma referenda o discurso que coloca as populações mais vulneráveis e dependentes da floresta como as principais responsáveis pelo desmatamento e degradação em função de suas práticas de caça, pesca e cultivo  ‘predatórios’, o que não é verdade. É preciso muito cuidado com este discurso de que são os pequenos e pobres que destroem, e que a pobreza é degradadora do meio ambiente. Pelo contrário! O que vemos é a celebrada pujança do agronegócio exportador construída sobre o desmatamento massivo, reiterados crimes ambientais e desrespeito total às leis em vigor. Não é por acaso que assistimos agora a força do agronegócio para mudar o Código Florestal, anistiar quem desmatou ilegalmente, além de reduzir a reserva legal, as áreas de preservação permanente e criar maneiras de seguir expandindo a fronteira agrícola,  as monoculturas e a contaminação por agrotóxicos.

Outro ponto preocupante quanto ao Bolsa Verde é que ele é inspirado no Bolsa Floresta, um programa desenvolvido pela Fundação Amazonas Sustentável (FAS) que tem o direito de exploração dos serviços ambientais das unidades de conservação estaduais no estado do Amazonas em parceria com a iniciativa privada (Governo do Estado, Banco Bradesco e Coca Cola) e tem desenvolvido o programa de pagamento para as famílias que vivem nestas áreas. Este programa é mundialmente conhecido como sendo a maior experiência de REDD (redução de emissões do desmatamento e degradação, um mecanismo em negociação na Convenção do Clima) do mundo, ou seja, pagando diretamente às famílias pelo ‘desmatamento evitado’. Porém, há várias críticas sobre este modelo e as consequências de sua implementação[ii] sobre a soberania das populações que já viviam nas unidades de conservação e as restrições impostas pelo projeto para sua integração às cadeias produtivas sustentáveis, às quais foi incluído recentemente, o petróleo[iii]. Qual é a sustentabilidade e a coerência desta proposta? Exploração de petróleo na Amazônia, sustentável?

O governo brasileiro, através do Ministério do Meio Ambiente parece estar disposto a consolidar este novo paradigma, que inclusive já foi referido pela Ministra Izabella Teixeira na ocasião do Bolsa Floresta como sendo um avanço das políticas socioambientais, depois de mais de três décadas da lei que estruturou uma política nacional de meio ambiente no Brasil, as políticas ambientais de “segunda geração” seriam esta modalidade PPP, Parceria-Público-Privado? Neste caso o Estado entra primeiro para criar as condições para o mercado e depois vira regulador, se isentando de fazer política ambiental e colocando o ônus e a responsabilidade junto com as empresas poluidoras. Também há grande e crescente interesse sobre o mercado de bens e serviços ambientais: produtos florestais (incluindo manejo sustentável de madeira), visitação pública e “aluguel” do estoque anual de carbono não emitido.

Segundo o estudo “Contribuição das Unidades de Conservação para a Economia Nacional”, realizado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a Embaixada Britânica e a Cooperação Internacional Alemã (GIZ), as unidades de conservação (UCs) brasileiras têm potencial de retorno financeiro de quase R$ 6 bilhões ao ano. Estes valores podem chegar a 10 bilhões até 2016 se forem feitos os investimentos necessários na estrutura das áreas nacionais, estaduais e municipais de proteção da biodiversidade.  As áreas às quais se destina o Bolsa Verde são portanto muito estratégicas economicamente e já se vislumbra colocá-las nos mercados ambientais que estão sendo criados. E como ficam as populações que lá residem? Até que ponto terão seu modo de vida e soberanias garantidos? Até quando o Bolsa Verde será garantido com recurso público e quando poderá ter-se encarregado de criar áreas para serem entregues à exploração PPP para compensar danos de empresas que atuam na região? São perguntas que acredito serem fundamentais para trazer para o debate público.

Temos uma crítica que compartilhamos com várias outras organizações e movimentos sociais do Brasil e de outros países sobre o tema dos ‘serviços ambientais’. Apesar de no Brasil se estar construindo um marco nacional sobre o pagamento por serviços ambientais, e vários estados da federação já possuírem leis e projetos pilotos, é urgente um debate muito aprofundado e informado sobre esta ‘solução’ para a conservação e que depende de uma veloz financeirização dos ‘ativos’ ambientais e da possibilidade de negociar estes papéis verdes na Bolsa. Por isso os que defendem a proposta de ‘reforma’ e flexibilização do Código Florestal, que agora está no Senado, têm pautado com tanta ênfase os pagamentos por serviços ambientais, os mecanismos de incentivo econômico. Há muitos interesses em jogo e muito potencial de especulação também. O que não vemos é um compromisso real com a transformação de paradigma, além da maquiagem verde costumeira.

2 – Dá para esperar resultados positivos com programas de conservação que estão ancorados em programa de combate à pobreza, como o Bolsa Verde?

Não concordamos com este discurso de que são as populações tradicionais, com seus modos de vida que incluem a caça, a pesca, o roçado de subsistência, a coleta, como sendo os responsáveis pelo desmatamento e a degradação, como se a ‘pobreza’ fosse a responsável pela destruição dos bens naturais. É justamente o oposto; são as populações mais marginalizadas e precarizadas as que mais dependem dos recursos naturais para viabilizar tudo: alimentação, moradia, saúde, modo de vida. E garantir a biodiversiade é garantir o conhecimento tradicional que elas possuem sobre esta biodiversidade, assim como os sistemas culturais de manejo e livre uso destes ecossistemas. Há um interesse de pintar um quadro – falso – que referenda justamente o contrário, que seriam estas populações, em função da sua ‘pobreza’, que estariam degradando o ambiente.

Um aspecto perverso, e que a Bolsa Verde corre o risco de corroborar, é que no país do agronegócio e das monoculturas mais agressivas haja uma campanha de convencer extrativistas, indígenas, ribeirinhos, quilombolas, pequenos agricultores e camponeses que eles são responsáveis pelo desmatamento e que suas ações no território devem passar por restrição e controle através de planos de manejo e vigilância satelital, além da conversão de modos tradicionais para práticas mais ‘sustentáveis’.

Uma das práticas tradicionais intensamente criminalizada é a coivara, a roça e queima para a agricultura de subsistência. Sem mecanização e usando a força de trabalho local esta é forma da agricultura da qual dependem várias populações. Contraditoriamente, se proíbe o fogo utilizado no manejo tradicional em pequena escala, e por outro lado se incentiva, e premia, os que promovem plantio direto com mecanização e pacote agroquímico.

3 – Qual seriam as alternativas interessantes a programas como o Bolsa Verde?

Alternativas ao Bolsa Verde são as alternativas reais, estruturantes e de longo prazo, como a Soberania Alimentar, alicerçadas não em programas de ‘bolsas’ deste ou daquele governo – e que por isso não têm garantia de continuidade – mas sim em políticas públicas de efetivação dos direitos já conquistados e consolidados na Constituição Federal (alimentação, moradia, saúde, educação etc) e nas medidas que viabilizam estes direitos na prática, tais como a reforma agrária, o apoio integral do Estado à produção de alimentos saudáveis e agroecológicos (e o financiamento e assistência para a transição do sistema convencional para o agroecológico) como uma necessidade também de saúde pública, a criação de sistemas de armazenamento, distribuição e comércio solidário etc.

Neste sentido o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) e o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), com cotas de compra da produção da agricultura familiar, é um bom exemplo e pode ser incentivado e expandido e incluir as particularidades da produção na região Norte do país, à qual se destina hoje o Bolsa Verde. Por exemplo, a colheita da castanha em Reservas e Assentamentos Extrativistas poderia ser toda comprada pelo governo federal e colocada na merenda escolar da rede pública, oferecendo uma proteína de alto nível, com custo mínimo de beneficiamento e livre de agroquímicos e transgênicos. Ao invés disso, vemos a castanha do Brasil como um produto de luxo, acessível para poucos e em sua maioria exportada. Da mesma forma o açaí e polpas de frutas poderiam ser processados e incluídos na alimentação escolar. Assim também buscar os melhores usos para os óleos vegetais, o látex nativo (que também poderia ser comprado e industrializado para a rede pública de saúde para a fabricação de preservativos, luvas cirúrgicas etc).

A Amazônia e seus povos têm sido historicamente espoliados para o suprimento de recursos naturais fundamentais em sucessivos ciclos de acumulação, que tiveram início com a drogas do sertão, a borracha, a mineração, a madeira, o gado etc, e a promessa da redenção pelo mercado nunca se concretizou. Agora o território amazônico se apresenta como a grande fronteira energética para o Brasil, a ser integrada definitiva e sistematicamente através de mega barragens, hidrovias e infraestruturas.

A alternativa para a conservação da Amazônia não é o mercado, é sim a defesa intransigente da integridade dos seus povos, de seus territórios e da oposição à mercantilização da natureza. Vale a pena ler a Carta do Acre, documento assinado por mais de 30 organizações da sociedade civil local, nacional e internacional que foram conhecer de perto o ‘Governo da Floresta’[iv], onde puderam constatar e debater in loco as contradições das políticas de desenvolvimento sustentável e os novos mecanismos da economia verde e mercantilização da natureza, como os serviços ambientais, que vêm sendo propagandeados em nome da conservação da Amazônia. Como Amigos da Terra Brasil assinamos a Carta do Acre e acreditamos que é fundamental que este debate crítico se amplie e que, mais além da fachada de marketing verde, a sociedade enfrente o debate sobre o modelo de sociedade, de campo e de cidade, que queremos.

[i] http://dialogoseconvergencias.org/noticias/carta-politica-do-encontro-nacional-de-dialogos-e-convergencias

[ii] Ver depoimento sobre o projeto em: http://amigosdaterrabrasil.wordpress.com/2011/08/31/redd-e-fas-no-amazonas/ e também na edição de outubro da revista Contra Corrente, edição especial sobre a Cri$e Climática da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais:
http://issuu.com/guilhermeresende/docs/contracorrente3/1?AID=10752329&PID=3662453&SID=skim725X194450Xb53a5a8089673b16b420c843312b388a

[iii] Em junho de 2011 a FAS selou um acordo com a empresa petroleira HRT que detém a concessão de exploração de 21 blocos de petróleo no Rio Solimões. Através de doações para expansão do Bolsa Floresta a empresa irá comercializar um “barril verde”.
http://www.hrt.com.br/hrt/web/conteudo_pti.asp?idioma=0&tipo=31908&conta=45&id=133668
http://www.fas-amazonas.org/pt/secao/parceiros/parceiros-institucionais/hrt

[iv] http://blogdaamazonia.blog.terra.com.br/2011/10/11/carta-de-30-entidades-critica-governo-da-floresta-por-mercantilizacao-da-natureza/

Enviada por Fernando Campos Costa.

Comments (1)

  1. São extremamente pertinentes as reflexões propostas no texto. Evidencia bem as demandas que temos para construir mudanças estruturais no Brasil. Quanto a isso destaco, que o povo precisa acreditar mais em sua capacidade propositiva e de fazer as coisas acontecerem no local onde vivem, até que por força de suas articulações as mudanças criadas no seio das comunidades possam ir sendo transformadas em políticas públicas. Um coisa é certa, nenhuma mudança estrutural no Brasil, de recondução dos destinos de desenvolvimento socioeconômico será conduzida pela estado brasileiro naturalmente. O estado tem lado, e o seu lado historicamente é o do capital, o dos donos do poder. Então temos que não esperar nada da suja política partidária feita no Brasil, e nós mesmos irmos criando as estratégias que melhor se adaptam às condições ecológicas e culturais de cada região deste país e irmos introduzindo-as na estrutura de elaboração de políticas públicas estatal, ja que este ainda hoje a validação de políticas é feita apenas pelo estado. Ao meu ver a Economia Solidária e a Agroecologia tem criado as ferramentas nesta direção. É preciso aumentar a escala.

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