Na avaliação de Raul do Valle, o novo texto do Código Florestal, aprovado na semana passada pelo Senado, irá gerar insegurança jurídica em vários aspectos. Caso a nova lei seja sancionada pela presidente Dilma Rousseff, explica, os proprietários poderão alegar que suas terras foram desmatadas antes de 2008, quando não havia fiscalização. “Isso abrirá uma imensa disputa, com gente alegando, sem nenhuma outra prova, que a área já havia sido totalmente desmatada em 1934, quando não havia reserva legal. Além disso, como foi introduzida a data mágica de 2008 como corte temporal, que legitima desmatamentos ocorridos anteriormente, haverá uma grande disputa para provar o que estava ou não desmatado nessa época, e em nem todos os locais há imagens de satélites disponíveis com resolução adequada para fazer a prova definitiva”, esclarece Raul do Valle em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
Nas últimas semanas, o advogado acompanhou de perto as negociações e as possíveis propostas de alteração da legislação e é enfático em sua avaliação: “O debate no Senado foi mais plural, mas o resultado já estava pré-determinado. Infelizmente, ao longo de todo o processo, o nome da ciência foi usado apenas para justificar equivocadamente os retrocessos”. Para Raul do Valle, o novo texto é “confuso”, permite o desmatamento e, se comparado à legislação atual, “é nitidamente um retrocesso”. “Grande parte das áreas ilegalmente desmatadas deixarão de ser recompostas, todo o esforço de fiscalização feito nos últimos anos será jogado no lixo com a anulação das multas aplicadas, e algumas áreas ambientalmente importantes, como as várzeas amazônicas, deixarão de ter proteção”, garante.
Raul do Valle é advogado especialista em meio ambiente. Atua como assessor jurídico do Instituto Socioambiental – ISA, onde também é coordenador do Programa de Política e Direito. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais foram as principais mudanças no texto do novo código florestal aprovado pelo Senado?
Raul do Valle – Temos duas bases de referência. Se compararmos com o texto que veio da Câmara dos Deputados que, além da anistia ampla e irrestrita, simplesmente acabava com a proteção a qualquer área ambientalmente sensível (matas ciliares, topos de morro, encostas etc.), o projeto aprovado pelo Senado é melhor, pois mantém a proteção para boa parte dessas áreas, assim como mantém – em tese – a reserva legal. Mas se compararmos com a legislação atual, ele é nitidamente um retrocesso. Grande parte das áreas ilegalmente desmatadas deixará de ser recomposta, todo o esforço de fiscalização feito nos últimos anos será jogado no lixo com a anulação das multas aplicadas, e algumas áreas ambientalmente importantes, como as várzeas amazônicas, deixarão de ter proteção. Além disso, o monitoramento da aplicação da lei será muito mais complexo do que hoje, já que passaremos a ter duas categorias de proprietários: os que ocupam áreas desmatadas ilegalmente até 2008, e que terão compromisso menor com a conservação ambiental (não tem reserva legal e deixa apenas 15 metros de mata ciliar), e os que, por haver respeitado a legislação da época, terão um compromisso maior com a conservação (tem obrigatoriamente a reserva legal e deixa 30 metros de mata ciliar), sem, no entanto, receber nada em troca por isso.
IHU On-Line – Como avalia a nova decisão de que, em lugar de pagar multas pelas áreas degradadas, os proprietários terão o direito de restaurar as áreas?
Raul do Valle – Essa possibilidade já existe pela legislação atual e, portanto, nesse aspecto, não há nenhuma novidade. A novidade – ruim – é que, diferentemente do que ocorre hoje, grande parte dos proprietários não terão que restaurar área nenhuma. Ou seja, não haverá troca nenhuma. Simplesmente não recupera nada e não paga nada das multas aplicadas.
Por exemplo: uma propriedade de 150 hectares em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, que hoje já está dividida, no Registro de Imóveis, em duas matrículas, uma de 80 e outra de 70 hectares. Essa fazenda não tem nada de reserva legal (foi totalmente desmatada até 1986, sendo que desde 1934 era obrigatório mantê-la) e tem apenas alguns trechos de mata ciliar preservados em seus arroios, sendo que, nos que estão conservados, a faixa preservada é de apenas metade da largura que deveria ter. Como nenhuma das duas matrículas tem mais de quatro módulos fiscais (cada módulo é de 22 hectares), não terá que haver recuperação de reserva legal. Nos arroios onde há 15 metros de mata ciliar, mesmo sendo inferior ao estipulado na lei (30 metros), tampouco deverá haver recuperação. Apenas nos locais onde não há nenhuma mata ciliar deve haver alguma recuperação, de no máximo 15 metros. Portanto, grande parte das áreas desmatadas não deverá ser recuperada e, mesmo assim, todas as multas eventualmente aplicadas serão suspensas.
IHU On-Line – Que avaliação o senhor faz do debate que aconteceu no Senado? Foram considerados os relatórios científicos?
Raul do Valle – Definitivamente não. O debate no Senado foi mais plural, mas o resultado já estava pré-determinado. Infelizmente, ao longo de todo o processo, o nome da ciência foi usado apenas para justificar equivocadamente os retrocessos. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC foi taxativa ao dizer que não se poderia diminuir a proteção aos pequenos rios, não se deveria desobrigar a recuperação da reserva legal, pois ela tem papel fundamental na reconexão de fragmentos de vegetação nativa. Apesar disso, as nascentes e rios estão menos protegidos, e, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea, mais de 90% das propriedades não terão que recuperar nada de reserva legal.
IHU On-Line – O senhor continua defendendo a ideia de que as florestas brasileiras serão menos protegidas hoje do que eram em 1934?
Raul do Valle – Que o de 1934 não, mas que o de 1965 sim. Foi inventada a figura da “área rural consolidada”, que nada mais é do que a legalização de desmatamentos irregulares em áreas que deveriam ser protegidas. A lei atual, de 1965, é simples: se tem que preservar, tem que preservar. Se está desmatado, tem que recuperar. Agora não; o caso irá depender de quando ocorreu a irregularidade. Algumas poucas áreas terão que ser recuperadas, outras não. É confuso. Além disso, em muitas regiões do país não haverá sequer 30 metros de mata ciliar preservada e reserva legal instituída, pelo simples fato de que a onda de desmatamento irregular passou por lá antes de 2008, quando ninguém cobrava o cumprimento da lei. A lei de 1965 previa as “áreas de preservação permanente”, e a de 2011 prevê as “áreas de degradação permanente”.
IHU On-Line – O novo texto do Código Florestal gera insegurança jurídica? Em que aspectos?
Raul do Valle – Em muitos aspectos. Por exemplo, o texto diz que áreas de reserva legal que foram convertidas quando a lei previa um percentual menor que o atual não precisam ser recuperadas. Ocorre que ele prevê que isso possa ser comprovado com simples alegações do proprietário, “relatos históricos”. Isso abrirá uma imensa disputa, com gente alegando, sem nenhuma outra prova, que a área já havia sido totalmente desmatada em 1934, quando não havia reserva legal. Além disso, como foi introduzida a data mágica de 2008 como corte temporal, que legitima desmatamentos ocorridos anteriormente, haverá uma grande disputa para provar o que estava ou não desmatado nessa época, e em nem todos os locais há imagens de satélites disponíveis com resolução adequada para fazer a prova definitiva. A implementação da lei será bastante complexa.
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/504975-codigo-florestal-a-implementacao-da-lei-sera-bastante-complexa-entrevista-especial-com-raul-do-vale