O Estado brasileiro está ameaçando o equilíbrio da vida dos povos indígenas na Amazônia, com o planejamento e o licenciamento desvairado de hidrelétricas. Os projetos que estão sendo licenciados, a toque de caixa, nos rios Tapajós, Teles Pires e Juruena, pela localização e impactos, chegam às raias da imoralidade.
Telma Monteiro
Empresas barrageiras, públicas e privadas, mantidas por um esquema de coronelismo do século XXI, que constroem grandes e pequenas barragens, estão exigindo mais celeridade no processo de licenciamento ambiental das hidrelétricas. Querem garantir rapidamente a total exploração do potencial da Amazônia, antes que as alternativas verdadeiramente limpas ocupem o mercado.
Já não há mais como aceitar a construção de hidrelétricas que desalojam, ameaçam povos indígenas e destroem a biodiversidade. A sociedade está cara a cara com os problemas sociais e ambientais, nas obras das usinas do Madeira e Belo Monte, agora expostos sem o filtro dos falsos programas de compensação e mitigação.
O inventário do Teles Pires
Os estudos de inventário do rio Teles Pires concluíram pela viabilidade de seis UHEs – cinco delas no rio Teles Pires e uma no rio Apiacás – num total de 3.697 MW de potência instalada e 1.961 MW médios.
Em 2009 a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) divulgou a Avaliação Ambiental Integrada (AAI) do rio Teles Pires e as Diretrizes da Bacia Hidrográfica do Rio Teles Pires, sub-bacia do Tapajós, para finalizar os estudos ambientais no âmbito dos estudos de viabilidade do Complexo Teles Pires. A AAI, no entanto, não serviu para que os projetos hidrelétricos planejados para o rio Teles Pires e seu afluente, rio Apiacás, fossem objeto de licenciamento integrado.
O Ministério Público Federal do Pará também apontou a ilegalidade no licenciamento isolado da UHE Teles Pires; além disso, o Tribunal de Contas da União (TCU) considerou, em relatório, que os estudos ambientais da UHE Teles Pires não são aceitáveis e não atendem à legislação. Nos dois casos os ministérios públicos pediram liminares para parar os processos. As ações tramitam na justiça e apesar de receberem sentença favorável dos juízes de primeira instância, que concederam as liminares para suspender os licenciamentos, o governo federal conseguiu reverter as decisões.
No rio Teles Pires está prevista, também, a construção de três eclusas para tornar navegável o trecho que vai do município de Sinop, em MT, até a confluência com o rio Juruena, onde começa o rio Tapajós, no PA. Os “obstáculos” naturais do trecho encachoeirado das Sete Quedas teriam que ser removidos, fato omitido no EIA. A Avaliação Ambiental Integrada (AAI) não considerou os impactos cumulativos e sinérgicos decorrentes da construção das eclusas.
A navegação no trecho encachoeirado das Sete Quedas só é possível com outra usina a montante (rio acima) e um reservatório que alcance a barragem da UHE Teles Pires: a hidrelétrica São Manoel (já em processo de licenciamento) em local que está cerca de 40 quilômetros a jusante (rio abaixo) da barragem da UHE Teles Pires.
Os Munduruku e Kayabi
Os Munduruku vivem no ambiente da floresta e nas áreas de savana da Amazônia, chamadas de “campos do Tapajós”, no vale do rio Tapajós. Sua cultura é ancestral, com aldeias circulares e praças centrais. As atividades de subsistência dos Munduruku são ritualísticas: agricultura, caça, pesca e coleta. As terras ocupadas pelos Munduruku estão seriamente ameaçadas pelas hidrelétricas e pela construção simultânea de eclusas para transformar o Tapajós e o Teles Pires em rios totalmente navegáveis.
Desde a segunda metade do século XIX, a Bacia do Tapajós e a sub-bacia do Teles Pires vêm sofrendo pressões que começaram com a expansão da exploração da borracha. O geógrafo inglês Chandless observou, em 1861, a presença de seringueiros na embocadura do rio Teles Pires com o Juruena, onde começa o rio Tapajós. Já na década de 1920 um grupo indígena Kayabi desceu o rio Teles Pires em direção ao Alto Tapajós e se fixou na região do Cururuzinho, onde hoje está a Terra Indígena Kayabi.
O Vale do Tapajós foi ocupado historicamente pelos Munduruku que lá permanecem até hoje e a região ficou conhecida no século XIX como Mundurukania. Os primeiros contatos com os Munduruku são de 1768. No século XVIII eles enveredaram por regiões entre os rios Tapajós e Madeira, alcançaram os rios Xingu e Tocantins até chegar ao limite leste da Floresta Amazônica.[1]
Os Munduruku se espalham pelo sudoeste do estado do Pará – calha e afluentes do rio Tapajós, nos municípios de Santarém e em Itaituba e Jacareacanga, onde está a Terra Indígena Munduruku. São 6.935 indígenas em 101 aldeias (dados de 2007, colhidos na Funasa de Itaituba), no leste do Pará – rio Canumã, em Nova Olinda, e próximo à Transamazônica, em Borba. Os Munduruku estão preocupados, hoje, em garantir sua sobrevivência, preservar sua cultura e manter a integridade de seu território.
Atualmente as principais ameaças ao povo Munduruku são as pressões impostas pela atividade garimpeira de ouro e pelos planos do governo de construir hidrrelétricas. Em 2009, os Munduruku enviaram uma carta de protesto ao Presidente da República em que manifestaram sua preocupação com a construção do Complexo Tapajós.[2] Os Munduruku têm uma relação muito estreita com os rios Teles Pires e Tapajós.
Outra Terra Indígena, a Kayabi, onde convivem três etnias – Kayabi, Apiacá e Munduruku, se estende pelos municípios de Jacareacanga, no Pará, e Apiacás, em Mato Grosso. Ela é contígua à Terra Indígena Munduruku; são separadas, em parte, no sentido longitudinal, por um longo trecho de cachoeiras, corredeiras, saltos e ilhas do rio Teles Pires. A Terra Indígena (TI) Kayabi acompanha o rio Teles Pires ao longo de 280 quilômetros.
A Funai aprovou uma ampliação da TI Kaybi em 1999, porém uma Comissão Pró-Hidrovia Teles Pires-Tapajós, do Rotary Internacional de Alta Floresta (MT) e o exército brasileiro conseguiram fazer oposição. Em 2002, depois de confirmada a demarcação da TI, novas ações interpostas por fazendeiros e acatadas pela Justiça Federal suspenderam a demarcação.
A regularização fundiária – títulos de propriedade dados pelo estado – ainda é o principal obstáculo para finalizar o processo de demarcação da Terra Indígena Kayabi. Conflitos e concessões de liminares têm pautado essa história, embora o território conste dos mapas oficiais da Funai.
Além das usinas do rio Teles Pires, os estudos ambientais de outras hidrelétricas no rio Tapajós já estão sendo elaborados. O município de Jacareacanga é considerado uma “cidade” indígena com 60% de seu território cercados pelas terras dos Saí Cinza, Mundurucânia, Kayabi e Munduruku. A Terra Indígena Munduruku é a maior e ocupa 12% da bacia do Tapajós.
Os direitos desrespeitados
Os direitos dos povos indígenas são garantidos no artigo 231 da Constituição Federal do Brasil que confere a eles a posse permanente e o uso exclusivo de suas terras. A falta de demarcação das terras indígenas favorece a invasão, cria conflitos e coloca em risco sua cultura. A terra homologada resguarda a moradia, a sobrevivencia e os locais sagrados.
O governo federal determinou a construção das UHEs no Teles Pires e no Tapajós sem respeitar e ouvir as comunidades e sem consulta prévia, livre e informada dos povos indígenas que serão afetados. A consulta prévia, livre e informada assegurada pela Constituição Federal e, é um procedimento que deve vir antes do estudo de inventário, quando a decisão ainda não foi tomada.
A convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, da qual o Brasil é signatário, estabelece, como conceitos básicos, a consulta e a participação dos povos indígenas interessados e o direito desses povos de decidir sobre suas próprias prioridades de desenvolvimento.
As decisões políticas do governo brasileiro desconsideram a Convenção 169 ao impor a construção de aproveitamentos hidrelétricos em Terras Indígenas. As vidas, crenças, instituições, valores espirituais e a própria essência do indivíduo serão irremediavelmente afetados. Mitigação, aí, é um eufemismo para a destruição.
Três hidrelétricas ameaçam indígenas no rio Teles Pires (Parte I)
http://telmadmonteiro.blogspot.com/2011/08/hidreletricas-ameacam-indigenas.html