Leitores atentos de Oswald de Andrade lembram que o Manifesto Antropófago (1928) distingue a alta da baixa antropofagia. A alta antropofagia recobre, por metáfora, o pioneirismo da reflexão sobre a cultura no Brasil e o avanço iminente da nossa arte de vanguarda, contanto que as raízes indígenas sejam preservadas com alegria e assumidas sem preconceito etnocêntrico. Datado de 374, o Manifesto Antropófago não se inscreve no calendário gregoriano nem no eclesiástico. A história do Brasil começa no ano em que o bispo Sardinha é deglutido pelos índios caetés. O bom humor induz a ironia; é corrosivo e demolidor. Ainda abusando da metáfora, o manifesto reza que a baixa antropofagia está “aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados”. Oswald alerta: “É contra ela que estamos agindo”.
A distinção inicial se desdobra. A baixa antropofagia tomou os brasileiros por objeto, transformando-nos em povo culto e cristianizado. A alta nos elevará à condição de sujeito da história nacional, capaz de atualizar a pujança recalcada de povo primitivo e selvagem. Distinções e preferência visam a limpar o porvir brasileiro do entulho civilizatório com que a Europa nos distinguiu durante a colonização. Leiam-se estes dois aforismos tomados do manifesto. “Nunca fomos catequizados. Fizemos foi carnaval.” “O carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça.”
O sentido das distinções possibilita que não se julgue como pecado cristão o canibalismo, prática comum entre os guerreiros tupinambás. A transgressão sanguinária suplementa a regra do convívio pacífico. É o espírito do ritual religioso. Em tempos de guerra, o tupinambá converte o inimigo em alimento. Manifesta a superioridade diante do adversário e se apropria da sua astúcia e força. (mais…)