Raposa Serra do Sol: audiência reabre debate sobre demarcação

Produtores que buscam reassentamento em outras áreas ocuparam galeria do plenário da Assembleia

Élissan Paula Rodrigues

Uma audiência pública para discutir a atual situação das famílias retiradas há cerca de dois anos pelo governo federal da terra indígena Raposa Serra do Sol reascendeu os debates em torno da demarcação da área em Roraima. O evento foi realizado em atendimento ao pedido de produtores que ainda não teriam sido reassentados ou indenizados pela União, feita a Comissão de Terras da Assembleia Legislativa.

O deputado Mecias de Jesus (PR), presidente da Comissão, explicou que as discussões giram em torno de uma solução para a situação vivida por produtores obrigados a deixar a área, diante das promessas do governo federal em minimizar as perdas.

Conforme as famílias que viviam na região e que estiveram na audiência, os itens do decreto do governo federal não foram cumpridos. “Sabemos o quanto será difícil fazer com que essa situação seja revista, mas foi firmado um acordo indenizatório da Funai [Fundação Nacional do Índio] com os fazendeiros e de reassentamento com o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], porém nada foi cumprido”, lembrou o deputado.

A deputada Aurelina Medeiros (PSDB) lembrou que todos os órgãos que, de alguma forma, têm relação com a celeuma foram convidados a participar dos debates, mas apenas o Incra e o Instituto de Terras de Roraima (Iteraima) compareceram. Da bancada federal de Roraima, também chamada para o evento, compareceram os deputados Paulo César Quartiero (DEM) e Francisco Araújo (PSL).

A deputada disse que a ideia da Assembleia é colocar em pauta a discussão das medidas judiciais não cumpridas pelo governo federal. “A discussão continua, as terras continuam abandonadas, o Estado sem apoio do governo federal para realocar as famílias. Chamamos todas as autoridades que estiveram aqui cumprindo o decreto para a discussão. O objetivo, que era a retirada, foi cumprido. Mas esse era um item do decreto, o restante continua, porque mesmo a transferência das glebas para o Estado de Roraima não foi cumprida até hoje”, comentou.

Quartiero informou que a Câmara Federal promove, no próximo dia 23, uma audiência pública no mesmo sentido da que foi realizada ontem pela Assembleia e que esse seria um indício da importância do tema para o país. “A situação mostra que a demarcação foi o maior erro do Brasil nos últimos anos, praticado pela Justiça e pelo governo brasileiro, um crime contra a nacionalidade”, comentou.

Ele acredita que a revisão do processo não seja impossível e disse que o Congresso Nacional poderia reverter o quadro atual. “Ao contrário, é muito fácil de ser revisto. A decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que está servindo com uma coisa definitiva pode ser revista pelo Congresso Nacional, que se fizer uma lei modificando o que foi feito, o Judiciário é obrigado a cumprir. Basta apenas ter decisão e convencer o resto do país para essa necessidade”, afirmou.

O deputado entende que o ambiente político é propício para esse posicionamento e disse que algumas autoridades, sem especificar quais, já teriam convencimento de que o ato de demarcação de forma contínua teria sido um “erro”. “Percebem que uma coisa errada muito séria foi feita em Roraima. Então isso pode ser o princípio da mudança, mas temos que construir isso. Acho que ao discutir a Raposa Serra do Sol estamos discutindo Roraima”, concluiu.

A série de reportagens da Rede Bandeirantes de Televisão, exibida em canal aberto, abriu a programação da audiência pública. Os participantes sugeriram a elaboração da Carta de Roraima, fruto do resumo das discussões, com informações sobre a situação das famílias retiradas da área indígena, para ser entregue a autoridades federais. Entretanto, a Secretaria de Comunicação da Assembleia informou que apenas hoje, dia 16, teria acesso ao texto.

Produtor ameaça voltar para Raposa Serra do Sol, caso não seja reassentado

Entre os produtores que participavam ontem da audiência pública para tratar da situação dos desintrusados da terra indígena Raposa Serra do Sol, Egídio Faitão se destacou ao afirmar que vai voltar à região, caso não seja reassentado até o próximo ano. “Eu vou partir para o tudo ou nada, de arma em punho contra os gringos e, se for preciso, contra a Polícia Federal. Existem os direitos, mas você não alcança a Justiça. Prefiro morrer em pé que viver de joelhos”, frisou.

Em entrevista à imprensa, após fazer um breve relato às autoridades presentes, Faitão disse não ter recebido nenhuma espécie de indenização até o momento. Afirmou que nem mesmo a avaliação da área onde estava situada sua fazenda, com 994 hectares, chegou a ser concluída. “Entrei no Ministério Público, requisitei a vistoria da fazenda, o órgão reiterou cinco vezes, mas a Justiça não fez a Funai cumprir”, comentou.

A situação das pessoas que foram retiradas da área, segundo o produtor, é difícil e vem se agravando. “O que tínhamos foi se deteriorando. Quem tinha gado retirou, alugou pasto e o gado foi morrendo ou sendo vendido para pagar aluguéis. Estamos aguardando as autoridades tomarem realmente uma decisão para o reassentamento. O que ganhei em 30 anos de vida, trabalho, suor e sacrifício continua lá”, disse.

Na opinião do produtor, os índios que vivem na região são “vítimas” do processo e muitos estariam, segundo ele, “morrendo de fome e de sede” em Boa Vista. “Eles sabem trabalhar, mas lá. Aqui quem tem profissão não consegue emprego, imagina quem não tem. Vai para as drogas, prostituição, desgraça, lixeira. Esse genocídio é provocado pelo governo federal, com essa política errada de querer demarcar para atender os interesses internacionais contra os nacionais”, frisou.

Estado ainda está identificando áreas para reassentamento, diz Junqueira

O Governo do Estado ainda trabalha no levantamento de dados e na identificação de possíveis áreas para o reassentamento das famílias que foram retiradas da terra indígena Raposa Serra do Sol há cerca de dois anos.

O presidente do Instituto de Terras de Roraima (Iteraima), Márcio Junqueira, afirmou que, neste meio tempo, o Estado tem trabalhado no sentido de identificar as pessoas que foram efetivamente reconhecidas pela Funai como desintrusados. “É importante dizer que o Estado é coadjuvante. Quem demarcou e fez a desintrusão foi o governo federal, apoiado pelo STF [Supremo Tribunal Federal]”, comentou.

De acordo com ele, o órgão criou duas comissões para fazer o trabalho e teria solicitado informações da Funai. “Já nos foi repassado. Portanto, estaremos trabalhando no sentido de identificar a quantidade necessária de terras”, complementou.

Junqueira disse que em reunião no primeiro semestre deste ano, com autoridades do governo federal responsáveis por solucionar a questão, ficou acertado que o Governo do Estado apresentaria um relatório em que seriam externadas as dificuldades do processo, como a questão da viabilização de recursos para infraesturutra. Segundo ele, as regiões já identificadas pelo Estado não apresentam condições de assentamento, como estradas e energia elétrica.

Questionado pela imprensa sobre os dados apresentados pelo próprio presidente, no período em que exercia o cargo de deputado federal, Márcio Junqueira disse que não dispõe da quantidade precisa de hectares. “Esses dados é que foram levantados, pois existem aqueles que o governo federal não reconhece como posseiro ou proprietário”, afirmou.

Conforme ele, o Estado tem feito o reassentamento de famílias retiradas da região nas antigas fazendas Renascer e na MacLaren. “Outras 30 famílias foram reassentadas no Truaru e parte do Murupu, e estamos identificando Vilhena. Ocorre que o problema é de uma dimensão bem maior do que se imaginava antes da demarcação e da desintrusão. Entendo que temos que construir isso no sentido de colocar o governo federal dentro da condição de assumir sua responsabilidade”, salientou.

Os depoimentos prestados durante o evento, segundo o presidente do Iteraima, devem subsidiar o relatório que será elaborado e enviado ao governo federal. “Esses depoimentos são de suma importância, pois existe a versão de quem acha que tem direito e de quem acha que o outro não tem direito. A audiência pública serve para elucidar. Pessoas continuam desassistidas e com seus direitos cerceados”, finalizou.

Questões já resolvidas continuam na pauta, aponta Titonho

 

Alguns dos relatos expostos durante a audiência pública realizada ontem pela Assembleia Legislativa, para discutir a questão em torno da Raposa Serra do Sol, externam questões já resolvidas, segundo o superintendente do Incra, Titonho Beserra. Por isso, segundo ele, a ideia é que se comece a assentar para levantar o número das pessoas que ainda não foram beneficiadas.

“Às vezes algumas pessoas que já foram beneficiadas, questões que foram resolvidas continuam na pauta de reivindicação. Os arrozeiros, nenhum, por exemplo, não foram atendidos porque atendem peculiaridades e não pode ser qualquer área. A meta é tentar abranger todos aqueles que precisam da terra”, ressaltou.

Ele apresentou dados que apontam que o Incra já assentou 72 famílias em áreas de até 500 hectares e 48 famílias em áreas de até 100 hectares, todas retiradas da Raposa Serra do Sol. Outras 19 famílias, que seriam reassentadas em áreas de até 500 hectares, aguardam a resolução de uma questão judicial envolvendo a reintegração de posse de área invadida na região do Truaru. “Têm providências para intensificar, mas para isso os órgãos, sobretudo o Iteraima, vai necessitar de uma dotação orçamentária para atender a essas necessidades. A questão financeira e orçamentária também é um ponto importante, o Executivo não pode fazer muita coisa quando não tem condições. A partir desse debate começa a tomar as devidas providências para que esse povo seja atendido”, salientou. A Folha apurou que, em torno de 280 famílias ainda aguardam a resolução desse impasse.

Titonho esclareceu que o que competia ao Instituto ligado ao governo federal foi feito e que, a partir de agora, o foco seria o atendimento de pessoas que devem permanecer em áreas de até 100 hectares, vocação do órgão por conta da reforma agrária. “O Iteraima deve cuidar do assentamento em áreas maiores. As ações estão paralisadas por conta de uma recomendação do Ministério Público, mas estamos discutindo o reinício da cedência das glebas para que assim o Estado possa completar o trabalho”, disse.

O presidente do Incra disse que o órgão não se exime da responsabilidade em torno da problemática, mas que cabe ao Estado a continuidade efetiva do processo. “Todos os órgãos continuam tendo responsabilidade. Temos um termo de cooperação técnica assinado, embora a função de fazer a regularização fundiária no Estado de Roraima seja do Iteraima, porque por lei foram cedidas todas as terras de área fundiária que ainda não são destinadas no Estado”, frisou.

http://www.folhabv.com.br/Noticia_Impressa.php?id=114247

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