Entre a cruz e a espingarda

A responsabilidade pelos assassinatos no meio rural não é apenas de quem aperta o gatilho

Por Talles Lincoln*

Emboscada, desespero e crueldade. No dia 24 de maio último, foram assassinados José Cláudio Ribeiro da Silva, mais conhecido como Zé Castanha, e Maria do Espírito Santo da Silva, no interior do estado do Pará, município de Nova Ipixuna. O casal dirigia-se ao assentamento Projeto Agroextrativista Praia Alta da Piranheira, quando fora cruelmente executado por pistoleiros. Segundo o Conselho Nacional de Populações Extrativistas, as mortes foram encomendadas por madeireiros da região.

Quem se espanta hoje com a violência nas disputas por terra provavelmente deve ter um completo desconhecimento da formação histórica brasileira. O Brasil nasce estruturalmente ligado ao massacre de seres humanos em decorrência do domínio de seu território.

Com a chegada dos colonizadores portugueses e de tantos outros europeus, ocorreu um processo gradual de tomada do território dos povos indígenas, marcado por violência e exploração, que culminou no genocídio de diversas etnias que povoavam o litoral e o interior do país. Esse processo, entretanto, não se deu sem resistência: conflitos e rebeliões foram travados entre os colonizadores europeus “civilizados” e os povos das florestas e dos sertões que aqui habitavam. A historiografia positivista tratou de chamar o conjunto dessas batalhas de “Guerra dos Bárbaros”. A problematização que devemos fazer é: quem são, afinal, os bárbaros? A barbárie da modernidade chegou banhando de sangue estas terras e, aqui, ainda, está presente diuturnamente.

A brutalidade continuou com a divisão do Brasil em capitanias e sesmarias, entregues a um número seleto e reduzido de portugueses, agora senhores do Brasil e potentes para aqui realizarem seus projetos próprios de “desenvolvimento” e exploração da terra e dos índios. Prosseguiu com o sistema de plantation e seus ciclos de monocultura que degradam a terra, com o trabalho escravo de indígenas e de africanos que, sob os grilhões da colonização mercantilista, foram trazidos e tratados como objetos pela sua origem geográfica e étnica.

A concentração de terras teve o Estado como via de legitimação e legalidade. Promulgada em 1850, a Lei de Terras estabeleceu que as terras devolutas, bem como as “que são possuídas por título de sesmaria sem preenchimento das condições legais, bem como por simples título de posse mansa e pacifica” devessem ser adquiridas exclusivamente por meio da compra, com preços completamente exorbitantes, o que impediu o acesso à terra por parte de imigrantes, trabalhadores/as livres pobres e negros/as alforriados/as. Essa lei veio posteriormente a forçar a migração dos/as negros/as libertos/as para as periferias das cidades, uma vez que na zona rural eles/as não teriam possibilidade de encontrar emprego e, muito menos, de cultivar para sua subsistência. Se a violência física não era suficiente, a violência simbólica do Direito veio para completar a discrepância da distribuição de terras e coordenar o massacre dos que ousa(ra)m resistir.

A situação fundiária brasileira é alarmante e condensa todo o problema histórico de distribuição e gerenciamento da terra. Apesar de cerca de 70% do que é consumido nas mesas dos/as brasileiros/as provir da agricultura camponesa, esta só ocupa em torno de 8% do território agricultável brasileiro; em contrapartida, 58% desse território corresponde a latifúndios, segundo dados do IBGE datados de 2006.

Todo o restante da área territorial agricultável majoritariamente se destina às monoculturas de soja e cana-de-açúcar, bem como a extensas áreas de eucaliptos e de pastagens voltados à engorda de gado bovino. Temos, portanto, uma lógica de agroexportação que toma quase todo o território agricultável brasileiro e impede o crescimento não só da agricultura familiar, responsável pela alimentação nacional, mas também do uso sustentável e consciente da terra.

A conseqüência dessa estrutura desigual e injusta de distribuição e utilização fundiária gera resistência e luta da sociedade civil. Movimentos sociais populares se organiza(ra)m no Brasil inteiro para enfrentar essa lógica instrumental e historicamente elitista de “racionalização” da terra. Esses movimentos denunciam a barbárie do “arcaísmo moderno e da modernização arcaica que funda o ‘desenvolvimento’ capitalista agrário brasileiro”, como sugere o sociólogo Florestan Fernandes (2009, p. 52-56).

Das Ultabs (Uniões de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil), das Frentes Agrárias e o Movimento de Educação da Base (MEB) e das Ligas Camponesas, coletivos que reivindicavam reforma agrária efetiva, cuja atuação nos anos 60 foi marcante na história camponesa brasileira, ao Movimento dos Trabalhadores/as Rurais Sem-Terra (MST) e todos os outros movimentos e organizações populares que compõem a Via Campesina no Brasil, houve resistência e atuação desses sujeitos políticos contra a estrutura fundiária nacional. Esses sujeitos políticos também são responsáveis pela luta por uma reforma agrária profunda que reestruture a lógica campo-cidade e oproduzir camponês no Brasil.

O MST e toda Via Campesina desenvolvem um trabalho indubitavelmente crucial na efetivação do direito humano à terra, na reivindicação da efetivação das normas constitucionais referentes às Ordens Social e Econômica, além de denunciarem as práticas de trabalho em condições análogas à escravidão, e qualquer outra prática de trabalho rural sem as condições mínimas exigidas por lei. São responsáveis também pela luta histórica na reivindicação de educação para o/no/do campo, com conquistas como o PRONERA (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária), bem como qualificação técnica e utilização agroecológica da terra pelo campesinato. Uma das principais pautas do MST hoje também se refere à eliminação do uso de agrotóxicos na agricultura brasileira.

Os movimentos sociais populares pelo direito humano à terra desenvolvem um projeto próprio, popular, de reforma agrária ampla, estrutural e agroecológica. A resistência desses movimentos, entretanto, não se faz sem sangue e ódio.

A violência no campo, decorrente das disputas variadas que ocorrem, seja entre pequenos agricultores e grandes empresas agrícolas pela demarcação das fronteiras de seus territórios, seja por, e principalmente, ações políticas dos movimentos sociais como ocupações de latifúndios, instalação de acampamentos em áreas a serem desapropriadas (por desrespeito ao direito ambiental, ao direito do trabalho e ao direito constitucional), bem como a violência nas disputas entre grandes proprietários de terra e magnatas da pecuária e comunidades indígenas e remanescentes quilombolas, tornam a questão agrária brasileira um problema social e de desrespeito aos direitos humanos – ou seja, ainda mais relevante.

Ano passado, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), ocorreram 34 assassinatos de lideranças dos movimentos ligados à luta pela terra. Só no estado do Pará foram 18 assassinatos. As ações violentas se estendem a pistolagem, ameaças, destruição de casas, roças e escolas dos/as trabalhadores/as rurais ligados aos movimentos populares.
Ainda segundo dados levantados pela CPT, em 2010 ocorreram cerca de 640 conflitos diretos envolvendo quase 50.000 famílias de camponeses. Só na Paraíba, houve: expulsão de 60 famílias, 63 casas destruídas, 20 roçados destruídos e 197 atentados envolvendo pistoleiros, sendo 32 assassinatos.
“O descaso do Poder Público e a corrupção que mina a celeridade dos processos judiciais e de investigação policial fazem com que a impunidade seja a regra em relação aos conflitos no campo”

Quanto ao trabalho escravo, a CPT registra cerca de quase 3.000 trabalhadores em condições análogas à escravidão que foram libertados no ano passado. No município de Boa Vista, interior da Paraíba, foram libertados 27 trabalhadores/as em condições análogas à escravidão, que trabalhavam na Fazenda da empresa João Arruda Mineração e Construção Ltda.

O descaso do Poder Público e a corrupção que mina a celeridade dos processos judiciais e de investigação policial fazem com que a impunidade seja a regra em relação aos conflitos no campo. O Estado brasileiro, estruturalmente ligado às elites latifundiárias e líderes do agronegócio, torna-se cúmplice dos crimes praticados contra os/as trabalhadores/as do campo que se recusam a se submeter a essa (des)ordem voltada ao lucro e ao benefício de poucos em detrimento de muitos.

A criminalização dos movimentos sociais, como o MST, a total incapacidade de o Judiciário absorver as demandas coletivas das organizações populares como lutas políticas pela efetivação de direitos, além das alianças de classe entre os políticos e as elites tornam a resistência organizada que reivindica a reforma agrária estrutural difícil, dolorosa e marcada por assassinatos, ameaças e humilhações.

As mortes de Zé Castanha e de Maria do Espírito Santo, por mais cruéis que possam parecer, não são, de maneira nenhuma, surpreendentes. O casal, assim como outros/as que ousam reivindicar por direitos e por uma vida digna, já vinha sendo ameaçado continuamente, há anos, pelos madeireiros da região, e o Poder Público, mais uma vez, se mostrou incapaz de prover proteção a defensores de direitos humanos e efetivar normas constitucionais de proteção a esses direitos.

E é nessa atmosfera de luta constante, medo, insegurança e violência que vivem os/as trabalhadores/as camponeses que plantam o que você come. Bom apetite!

*Talles é graduando em Direito pela UFPB e integrante do Núcleo de Extensão Popular NEP – Flor de Mandacaru. O autor gostaria de agradecer as professoras Maria de Fátima Rodrigues, do Departamento de Geociências da UFPB, e Ana Lia Almeida, do Departamento de Ciências Jurídicas, pela orientação, direta e indireta, na feitura deste artigo. E, principalmente, agradecer a todos/as os/as trabalhadores/as do assentamento Zumbi dos Palmares, zona rural do município de Mari, que o hospedaram e receberam tão bem nos dias 23 e 24 de julho.

http://www.jornalamargem.com.br/p/especial.html

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