Modelo que vigora no mundo globalizado expõe sistema produtivo predador, ignora direitos e gera exclusão
Por Adriano de Lavor e Katia Machado, na revista Radis nº 108 – Agosto de 2011
Quando são retratadas pela mídia ou defendidas por seus proponentes, as grandes obras — rodovias, ferrovias, portos, hidrelétricas e represas — que se sustentam no modelo de desenvolvimento em vigor no país apresentam-se desvinculadas de impactos socioambientais e à saúde que podem causar. Do mesmo modo, pouco são levados em consideração alertas e recomendações de pesquisadores, assim como protestos articulados pelos movimentos sociais.
O projeto de transposição do rio São Francisco, do Ministério da Integração Nacional expressa esse modo de lidar com os empreendimentos de grande porte. Apontado como solução para os problemas de abastecimento de água no Semiárido brasileiro, o Projeto de Integração do Rio São Francisco com Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional prevê a construção de dois canais, com 700 quilômetros de extensão, que irrigarão o Nordeste.
Desde o início das obras, em 2007, o projeto recebe críticas em relação a seu alto custo — o orçamento atual é de R$ 4,5 bilhões —, sua reduzida abrangência — 5% do território e 0,3% da população serão beneficiados com a obra — e, sobretudo, pelos interesses econômicos envolvidos. Pesquisadores e representantes de movimentos sociais alegam que a transposição afeta intensamente o ecossistema e só beneficia grandes latifundiários nordestinos.
água para poucos
Coordenador Nacional da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA), o teólogo Naidison de Quintella Baptista é uma das vozes contrárias à transposição. Ele apontou, no 7º Encontro Nacional de Articulação no Semiárido Brasileiro (Radis 94), que pesquisas da Agência Nacional de Águas (ANA) sobre mananciais de abastecimento das médias cidades comprovam que a obra é desnecessária. “Se querem falar de abastecimento, deveriam distribuir a água, que está concentrada com poucos”, afirmou.
O advogado Alexandre Ciconello, assessor de direitos humanos e políticas públicas do Instituto de Estudos Socieconômicos (Inesc) também é contra a iniciativa. Em artigo publicado no site do instituto, ele afirma que a obra atenderia, na verdade, aos interesses de grandes corporações e exportadores, vinculados a atividades econômicas concentradoras de renda como o agronegócio, a mineração e a produção de biocombustíveis.
Para ele, a transposição beneficiaria apenas projetos de irrigação de grandes proprietários rurais, “ao invés de implementar políticas alternativas para a região, já elaboradas e que beneficiariam agricultores familiares e pequenas comunidades”. Sua análise se apoia no relatório divulgado pela Anistia Internacional, em 2007, que apontava que a transposição — assim como a expansão da monocultura, a mineração e outras iniciativas tidas como projetos de desenvolvimento, aí incluída a construção de represas — estava entre as principais fontes de conflito no Brasil naquele ano.
Desmatamento ‘justificado’
O caso da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, também demonstra como, apesar de visíveis, são ignorados os impactos de uma obra de grande porte sobre a saúde e o meio ambiente. Desde 1º de junho, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) liberou licença ao consórcio Norte Energia para instalação da usina, a 40 quilômetros da cidade paraense de Altamira.
A licença autoriza o início das obras, o que implica desmatamento de 238 hectares da região do rio Xingu apenas para instalação do canteiro de obras e alojamentos, o que já foi criticado dentro e fora do país: Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) recomendou a suspensão do projeto até que o direito à consulta livre, prévia e informada dos povos indígenas sobre a obra fosse assegurada. O Ministério Público Federal do Pará também questiona a obra, por causar fortes impactos ambientais e provocar o deslocamento compulsório de comunidades tradicionais.
A licença também vai de encontro ao que recomendam 20 importantes associações científicas brasileiras, entre elas a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que enviaram carta à presidenta Dilma Rousseff, em 19/5, pedindo a suspensão do processo de licenciamento.
Em outra carta dirigida ao Palácio do Planalto, em 1º/6, mais de 350 acadêmicos, entre professores, pesquisadores e intelectuais, manifestaram-se contrários à iniciativa, expressando sérias preocupações relativas a violações de direitos humanos e descumprimento da legislação ambiental brasileira. O documento exige a suspensão da obra até que sejam cumpridas as condicionantes à realização da obra, julgadas as ações públicas e assegurado o respeito aos direitos humanos e ambientais presentes na Constituição Federal e em declarações e convenções internacionais — das quais o Brasil é signatário.
Miriam Belchior, ministra do Planejamento, Orçamento e Gestão — pasta que também abriga a Secretaria do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) — usou exatamente o desenvolvimento como justificativa da posição favorável do governo em relação a Belo Monte, mais uma vez, dando-se roupagem social a empreendimentos econômicos e, assim, diluindo o debate. “Estamos preocupados sim com as questões sociais e urbanas, da qualidade de vida urbana, mas também estamos preocupados que se garanta a construção de negócios locais que sejam capazes de levar aquela população para um patamar de desenvolvimento maior do que hoje existe lá”, declarou.
Valor de troca para a água
Para o físico Ennio Candotti, ex-presidente da SBPC e diretor do Museu da Amazônia, obras como a usina de Belo Monte só aumentam as desigualdades sociais locais. Ele considera que a questão das hidrelétricas não está bem equacionada, alertando que não se atribui valor de troca para a água. “O mercado se omite neste caso. As hidrelétricas representam uma pilhagem de recursos naturais, causam fortes impactos ambientais e sociais, sem deixar no local qualquer retribuição pelas riquezas extraídas e exportadas”, observa. “As hidroelétricas se tornam muito baratas e as fontes alternativas e limpas, mais caras”, argumenta.
“As hidrelétricas representam uma pilhagem de recursos naturais” Ennio Candotti |
O raciocínio se aplica aos projetos de 110 hidrelétricas de pequeno, médio e grande porte, nos rios de planalto que formam a bacia hidrográfica do rio Paraguai, no Pantanal. Maior zona úmida continental do planeta, considerada Patrimônio Nacional pela Constituição de 1988 e Patrimônio da Humanidade e reserva da biosfera pelas Nações Unidas, em 2000, o Pantanal corre sérios riscos ambientais, de acordo com alerta feito na 8ª Conferência Internacional de Áreas Úmidas, em Cuiabá, em 2008.
Estudos apresentados no evento comprovaram que as hidrelétricas já existentes nos rios que formam o Pantanal estão alterando o ritmo natural de inundações na planície, limitando a migração de peixes que sobem os rios para reprodução, retendo organismos aquáticos importantes para a alimentação de animais e vegetação durante a cheia e causando enorme impacto social nas comunidades ribeirinhas atingidas pelas barragens.
Dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) informam que já estão em operação na região 29 barragens, entre elas sete usinas hidrelétricas de grande porte (geração superior a 100 megawatts), 16 pequenas centrais hidrelétricas (superior a 1 e inferior a 30 megawatts) e seis centrais geradoras de hidroeletricidade (menor que 1 megawatt). A opção por hidrelétricas, ainda que comprovados os prejuízos que muitas vezes causam ao ambiente e à vida das populações, continua sendo justificada pela geração de renda.
Responsável pela arrecadação e distribuição da compensação e dos royalties pela utilização de recursos hídricos, em especial de hidrelétricas, a Aneel informa que nos primeiros seis meses de 2011 municípios, estados e a União receberam R$ 816,9 milhões pela Compensação Financeira pela Utilização de Recursos Hídricos (CFURH) e R$ 181,3 milhões em royalties (compensação financeira devida pela Usina de Itaipu), totalizando R$ 998,2 milhões até 30/6. Somente em junho de 2011, CFURH e royalties somaram R$ 172,1 milhões.
Pelas regras de distribuição, municípios ficam com 45% da arrecadação e estados, com os outros 45%. O dinheiro pode ser aplicado em programas de saúde, educação e segurança, mas não pode abater dívidas — a não ser que o credor seja a União — nem usado para o pagamento de pessoal. A União fica com os 10% restantes, distribuídos entre Agência Nacional de Águas (ANA), Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) e ministérios do Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Amazônia Legal (MMA) e Minas e Energia (MME).
Pressões econômicas e políticas
Pressões econômicas e políticas pela urgência no licenciamento de obras de grande porte, como a de Belo Monte, independentemente de se ter assegurado que não há riscos à saúde e ao meio ambiente, podem trazer sérias repercussões, como alertou em matéria publicada no site da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), em 10/02, o pesquisador Marcelo Firpo, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), integrante da Rede Brasileira de Justiça Ambiental.
“Existe uma série de grandes empreendimentos no setor hidrelétrico, siderúrgico, de mineração, de infraestrutura extremamente complexos”, diz, observando que a pressa em licenciar “passa por cima da seriedade e do aprofundamento da análise desses impactos à saúde e também outros impactos socioambientais, que também terão repercussões sobre a saúde”.
Firpo critica a Thyssen Krupp Companhia Siderúrgica do Atlântico (TKCSA), que atua em Santa Cruz, Zona Oeste do Rio de Janeiro, acusada de não cumprir acordos e provocar danos à saúde da população que reside nos arredores. Maior empreendimento da transnacional alemã Thyssen Krupp no Brasil, a TKCSA produz cerca de cinco milhões de placas de aço por ano para exportação.
A empresa, que possui a licença provisória e de instalação, mas não de operação, descumpriu acordo firmado entre o Ministério Público Estadual e o Instituto Estadual do Ambiente (Inea), que condiciona o funcionamento do segundo alto forno da siderúrgica à realização de uma auditoria. A TKCSA obteve autorização da Secretaria de Estado do Ambiente (SEA) e do governo do Estado do Rio de Janeiro para funcionar. A auditoria foi determinada depois que se detectaram problemas de poluição ambiental em Santa Cruz, em consequência da entrada em operação do primeiro alto-forno do complexo siderúrgico.
“Nos países europeus há leis que proíbem uma siderúrgica de grande porte, como a TKCSA, de instalar-se em regiões populosas, devido aos riscos de acidentes que impactam o meio ambiente e as populações residentes”, informa o pneumologista Hermano Castro, pesquisador do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh/Ensp/Fiocruz). “No Brasil, infelizmente, não há legislação sobre isso, deixando-se a população à sorte de acidentes”, critica.
Pelo menos dois acidentes ambientais já foram associados à siderúrgica. Em junho de 2011, quando a TKCSA entrou em fase experimental de funcionamento, a imprensa noticiou que a população de Santa Cruz havia sido surpreendida com uma forte carga de poeira prateada, recheada de resíduos metálicos, o que tornava o ar no entorno da empresa mais pesado.
Em dezembro do mesmo ano, outra forte chuva do mesmo material atingiu as casas da região. Na ocasião, a Fiocruz enviou ao Instituto Estadual do Ambiente (Inea) ofício solicitando informações sobre o material expelido para que pudessem analisá-lo com precisão. Apesar de executivos da siderúrgica defenderem que a poeira não causa problema à saúde, Hermano explica que o material pode apresentar elementos que irritam o aparelho respiratório ou capazes de provocar câncer.
“Mesmo que seja minimamente uma poeira de grafite, poeira inerte do ponto de vista da toxidade, como ressalta a empresa, de qualquer forma, ela é danosa à saúde. Pode causar, no mínimo, problemas respiratórios, como asma e bronquite”, explica. Para o pesquisador, é urgente uma análise conclusiva, já que só se conhece o que a empresa diz. “Antes de qualquer liberação de funcionamento, seria preciso investigar o material expelido. Se ele apresenta substâncias cancerígenas — e isso é possível —, é preciso montar um sistema de vigilância para essa população, um passo que o setor saúde só pode dar em caso de estudos mais conclusivos”, diz.
http://www.ecodebate.com.br/2011/08/05/desenvolvimento-grandes-empreendimentos-muitos-danos/