Automóveis: para que servem?

Por Igor Vitorino da Silva (*)

“E cada favelado é um universo em crise
Quem não quer brilhar, quem não? Mostra quem,
Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém
Quantos caras bom, no auge se afundaram por fama
E tá tirando dez de havaiana?
E quem não quer chegar de honda preto em banco de couro,
E ter a caminhada escrita em letras de ouro?
A mulher mais linda sensual e atraente,
A pele cor da noite, lisa e reluzente
Andar com quem é mais leal verdadeiro”

Racionais – Dá ponte pra cá

Não possuir carro no Brasil é um grande drama. Os longos tempos de espera nos pontos de ônibus e as viagens apertadas fazem cada brasileiro sonhar em ter seu carro próprio, mesmo que tenha que pagar longas prestações ou ficar parado horas nas longas filas de engarrafamento ou leve mais de meia hora para conseguir uma vaga no estacionamento. O negócio é comprar um carro e se endividar por 60 meses. Para isso se realizam muitas horas-extras de trabalho e sacrifícios no orçamento doméstico, e, até mesmo, compras coletivas entre duas ou três pessoas que o utilizam em sistema de rodízio. Tudo isso para escapar os percalços de uma vida sem carro numa realidade urbana construída e pensada em função do automóvel.

Na luta pela sobrevivência diária, não sobra tempo para se questionar a precariedade do transporte coletivo, vigorando a estratégia individual, diante da inoperância do poder público na formulação de políticas urbanas e de transportes, de dar um jeito para comprar um automóvel, mesmo que ele seja bem velhinho, principalmente para aquelas pessoas que percorrem longas distancias entre o local de moradia e de trabalho. O projeto de ter um automóvel é alimentado, cotidianamente, pelo medo depender de transporte público, pela experiência negativas de ter dependido dele, pelas preocupações com status social e “prazer cultivado” de tê-lo, assim como pelas estratégias de marketing que envolvem novelas, propagandas, premiações de promoções de produtos, supermercados, programas de televisão e bingos que transformam num pecado capital não possuir esse símbolo de sucesso, poder e dinheiro.

Para muitos brasileiros a aquisição do carro significa o fim de determinados constrangimentos com as piadinhas dos amigos que não gostam de dar carona, o esnobismo dos parentes “mais bem de vida”, dificuldades de sair com a namorada e do isolamento das conversas automotivas dos churrascos e mesas de bar ou as angústias com a locomoção de parentes doentes. Podem explorar todos os cantos cidade sem se preocupar com horário dos ônibus ou do metrô, escapando da imobilidade relativa de que falava o geógrafo Milton Santos, desde que tenha grana para colocar o combustível. Com a aquisição dessa mercadoria o indivíduo se transforma em gente, passa a ser visto e considerado por amigos, vizinhos e até porque não o conhecia. Hum, que carro zero hein! Ele é dono?

Quantos já não perceberam que um amigo ficou nariz em pé ou sentindo acima dos outros depois que adquiriu um automóvel? Quantos já não tiveram vergonha de chegar num casamento de táxi ou à pé? Ou não esperam os amigos mais íntimos irem embora de uma festa para irem para o ponto de ônibus para voltar para casa? Ou se sentiram incomodados de pegar carona no carro de alguém? Ou não ficaram aborrecidos quando a garota que te deu moral no baile perguntou se tinham automóvel? Quem não tinha um grupo de amigos que se reunia sempre para curtir à noite e a salvação era o carro do amigo? Esse grupo, com certeza, não estava muito preocupado como desempenho ou designer do carro, mas com a possibilidade de ir às várias festas numa noite e aproveitar mais a noitada, ou seja, viver intensamente o sentimento de liberdade, poder ir aonde quiser sem depender do transporte público (pobres que moram nas periferias) e dos pais (classes médias e elites).

Mas, logo, esse sentimento festivo de liberdade leva um balde de água fria, pois não basta ter qualquer carro, é preciso ser do ano ou luxo, além de todos os acessórios e equipamentos. Sempre há aquelas observações maldosas: Comprou um carro novo, por que não tem vidros elétricos? Minha nossa, não colocou ar-condicionado? Com o carro velho ao invés de esperar todo mundo sair da festa para pegar o taxi ou ônibus agora passasse a se preocupar aonde vai estacionar o carro sem ser visto para não ser alvo de piadinha e ter que se controlar para não cair na briga com play boys que desfilam com modelos do ano ou de luxo.

Na realidade, o automóvel mais do que servir para andar, serve para proclamar uma posição social, para a afirmação de poder, para marcar fronteiras sociais. Minha nossa, fulano é rico mesmo, viu aquele carrão dele!  Isso explica o fenômeno estranho de andar lentamente de carro pelas ruas de uma cidade. É preciso mostrar a superioridade e encher o carro de sua galera para dividir sua felicidade, pois do que adianta ter um carrão para andar sozinho e não ser visto por ninguém numa sociedade que valoriza intensamente consumo.

O horror a carro velho é tão grande que, muitas vezes, alguns motoristas ao avistarem um carro velho não estacionam ao seu lado com medo daquele motorista não ter grana para pagar os prejuízos num caso de acidente: Estaciona longe daquela carroça, amor!, diz a corona. Explica atitudes radicais que sugerem como solução ao problema ambiental a retirada imediata de toda a frota velha de carros, desconsiderando que maioria que utiliza-se dessa são os pobres, geralmente para as atividades laborais, justamente pela ausência de uma política de transporte coletivo.

Alimenta, também, esse quadro as longas discussões levadas pelas pessoas sobre os modelos de luxo, mesmo sabendo que jamais terão um, e as centenas revistas especializadas que discutem sobre veículos que estão longe do alcance do consumidor comum brasileiro.   Além das histórias machistas da noite que narram que há pessoas que mudam a cabeça da chave do carro para colocarem as de modelos da moda, buscam enganar os olhos das poderosas da festa. Sem falar na piada que diz que há meninas que ficam com pelo arrepiadinho com ronco de um motor, se for caminhonete elas ficam louquinha.

São situações que demonstram que automóvel, mais do que função para deslocar, é usado como instrumento de avaliação (e demonstração) da qualidade social dos indivíduos e grupos. Por isso logo que começam a ganhar dinheiro cantores e jogadores de futebol buscam imediatamente adquirir os modelos de luxo exclusivo e personalizados.  Por que presidente, governadores, prefeitos, ministros, senadores, deputados e funcionários públicos com direito transporte especial não usam os modelos populares? Quanto esse sacrifício cívico economizaria ao herário público?

O carro fascina e encanta, principalmente o mundo masculino, a tal ponto daqueles que não se interessarem por esse assunto serem visto como hereges ou seres esquisitos que ousam se desviar da religião automotiva. Essa mercadoria é tão celebrada que o negócio não é tê-la, mas sempre trocá-la, sempre pelos modelos mais transados e modernos. Esse desejo automatizado revela-se no clima de inveja social produzida que reina entre maioria dos brasileiros, alimentado pela pesada propaganda automobilística: “Ah, eu naquele carro”. “Fulano não sabe dirigir”. “Minha nossa, como dirige mal”. “Não sei que adianta um carrão; só anda cheio de homem”.

Para realizar esse “desejo” (ou “necessidade”) fabricado o brasileiro paga um dos carros mais carros do mundo, principalmente aqueles que são obcecados por automóvel do ano e modelos de luxo. Torna-se escravo do carnê, pagando de juros quase outro carro. As montadoras acusam os impostos e os altos salários dos trabalhadores de encarecem o produto, os economistas críticos apontam que essas empresas se organizam como oligopólio, sendo seus preços definidos independentes da sua relação com os custos de produção. O interessante é que esses custos são mantidos sobre sigilo.

Alguns economistas argumentam que o brasileiro gosta tanto carro que para trocá-lo não discutee questiona seu preço, acontecendo o que os especialistas em marketing chamam de “se paga pegou”: lança-se um preço; se o cliente aderir, mantém-se. Além disso, uma situação pouca observada pelos consumidores é que mesmo se retirando os famosos pesados quase 30 a 40% dos impostos que formam o preço do carro, os valores brasileiros continuam mais altos que na Argentina, Chile e Paraguai.

O que explicaria essas diferenças? Deve haver muito caroço nesse angu que a nossa ânsia por carro não nos permite questionar. É como a cerveja e o pão francês, quando sofre severos aumentos e continuamos a pagar; tagarelamos nos primeiros dias e depois estamos lá pagando. Por enquanto, segue um modo de vida que defendendo a comodidade e conforto intensifica os problemas urbanos e ambientais, ignora seus pesados custos de manutenção, enriquece empreiteiras, bancos e empresas automobilísticas, se afasta do debate público sobre as políticas de transporte, os incentivos fiscais e financeiros ao consumo de automóvel e o planejamento urbano  e estigmatiza o transporte público, andar a pé e bicicleta como sinais de pobreza.

Um modo de vida que transforma em ordem natural milhões de pessoas serem transportadas espremidas, piores condições que os animais que seguem para o abate, num ônibus ou metrô num horário de pico, e milhões de pessoas em longos engarrafamentos, geralmente somente sem caronas. Se continuarmos na velocidade de aquisição de automóveis onde eles andarão?   Quanto de ruas e estradas serão necessárias? Ficam aí as dúvidas e indagações.

Recomendo a leitura do livro:

LUDD, Ned (org.). Apocalipse motorizado: a tirania do automóvel em um planeta poluído. 2. ed. rev. São Paulo : Conrad Editora do Brasil, 2005. Disponível em: < http://www.ecolnews.com.br/apocalipse_motorizado_tirania_do_automovel.htm>

* Historiador e Professor de História do Campus Nova Andradina/IFMS.

 

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