À sangue-frio

Manifestações em torno da Chacina da Candelária. Foto: Divulgação
Manifestações em torno da Chacina da Candelária. Foto: Divulgação

Raika Julie Moisés

Madrugada de 23 de julho de 1993. A educadora Yvonne Bezerra de Mello, que costumava realizar um trabalho com pessoas em situação de rua no entorno da Candelária, recebe um telefonema de uma criança pedindo socorro. Yvonne foi a primeira a chegar ao local onde dormiam cerca de 70 pessoas e oito tinham sido assassinadas há poucos minutos – seis adolescentes e dois adultos. A Chacina da Candelária acabava de acontecer. “Estava todo mundo muito assustado sem saber o que fazer. Chamei a polícia e fiquei no local até às seis da manhã, quando chegou o primeiro rabecão para remover os corpos”, conta ela.

O crime, cometido por policiais, é o segundo na seqüência de quatro chacinas que marcaram a história do Rio de Janeiro: Acarai (26/07/1990); Candelária, que completa 18 anos no sábado (23); Vigário Geral (29/08/1993) e Baixada (31/03/2005). Além de terem em comum a violação do direito à vida e a grande repercussão nacional e internacional, em todos estes massacres houve participação direta ou indireta de policiais. A maioria das vítimas era jovem, de origem pobre, morador de favela ou periferia.

Para o professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Ignácio Cano, estas semelhanças não são meras coincidências. “Fatores como local de moradia, realidade social e cor, muitas vezes, são determinantes para a violência letal, seja ela policial ou não. Os espaços populares, bem como os moradores destes locais, são as maiores vítimas”, explica.

Perfil das vítimas de homicídios

Nos três crimes ocorridos no início da década de 90, o perfil das vítimas era muito semelhante: jovens, em situação de rua ou moradores de favelas. “Passados quase 20 anos, eu não vejo nenhuma diferença entre as vítimas da Candelária e as possíveis vítimas de hoje. Eram todos pobres, oriundo de espaços onde a violência, seja ela doméstica ou local, é predominante. E que já viviam em pleno abandono: familiar, público e social”, detalha a coordenadora do Projeto Uerê, Yvonne de Melo.

A coordenadora enfatiza que, lamentavelmente, desde a década de 80 o cenário tem se mostrado muito parecido. “Desde 1980 até os dias atuais, eu já estive em 262 funerais de vítimas de homicídio. A maioria não alcançou a maioridade e os que alcançaram, eram sempre muito jovens. Fora os que estão desaparecidos e a família nunca mais teve notícias e, talvez, nunca mais terá”.

Fatores como local de moradia, realidade social e cor, muitas vezes, são determinantes para a violência letal, seja ela policial ou não. Os espaços populares, bem como os moradores destes locais, são as maiores vítimas

Segundo o Mapa da Violência 2011, em 1996, a taxa de homicídios juvenis foi de 41,7 a cada 100 mil. Hoje, com os dados correspondentes a 2008, são 52,9 vítimas. Dez mil a mais. Além disso, em 2008, morreram 103,4% mais jovens negros do que brancos. “Jovens negros e pardos, pobres e moradores de periferias são vítimas em potenciais. Faz parte da lógica excludente e preconceituosa da violência”, completa Cano.

Ele destaca que o Rio de Janeiro, em comparação com São Paulo, por exemplo, tem suas peculiaridades para definir chacina. “Em São Paulo, três ou quatro mortes já podem ser consideradas chacinas. No Rio, muitas vezes, avalia-se quem são as vítimas, o local onde elas foram assassinadas. Por exemplo, leva-se em consideração se o local era dominado por milícias ou pelo tráfico, se as vítimas tinham algum tipo de passagem policial, entre outros fatores”, finaliza.

Raízes históricas e impunidade

Para Ignácio Cano, o fim relativamente recente da ditadura, bem como a incorporação de mecanismo de Direitos Humanos, como, por exemplo, o Estatuto da Criança e Adolescente que recém completava três anos são fatores históricos que devem ser considerados. “Mesmo com o fim da ditadura e o início de um Estado Democrático, no início da década de 90 ainda acontecia uma supervalorização da ditadura por algumas camadas da sociedade. Não se podem desconsiderar estas raízes históricas que estão refletidas na truculência policial e na brutalidade das ações, bem como na impunidade – ainda se imaginava que a polícia mantinha os plenos poderes concedidos nos anos de chumbo”, destaca.

http://www.observatoriodefavelas.org.br/observatoriodefavelas/noticias/mostraNoticia.php?id_content=1072

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