Na Favela Real Parque, onde se instalaram nos anos 1950, pancararus conservam tradições espirituais; em aldeia de Parelheiros, crianças guaranis colhem frutas no pé
Assim como migrantes nordestinos, os pancararus começaram a chegar da zona do sertão do São Francisco, em Pernambuco, em meados da década de 1950, em busca de emprego. Eles foram chamados para cortar árvores em loteamentos do bairro do Morumbi, na zona sul, e depois ajudaram nas obras da construção do estádio do São Paulo.
Instalaram-se nos terrenos vizinhos, descampados que viraram a Favela Real Parque, hoje em processo de urbanização. Estima-se que existam pelo menos mais de 3 mil pancararus na capital, o que os tornaria uma das etnias mais numerosas da cidade. “Depois do incêndio na favela (ocorrido em setembro do ano passado), muitos se dispersaram. Eram mil e hoje são cerca de 200. Estão vivendo de aluguel em outros bairros ou voltaram para a aldeia”, diz o pancararu Ubirajara Ângelo de Souza, de 47 anos, que chegou à Real Parque aos 20 anos. Seu pai trabalhou nas obras do estádio do Morumbi.
Na favela ainda existem lideranças espirituais que rezam nas casas dos indígenas locais e usam ervas medicinais para cura. Também há grupos de canto e dança que utilizam trajes tradicionais em festas indígenas na capital. Para se adaptar às transformações na cidade, os pancararus precisaram aprender a conviver nos últimos anos com as lideranças do tráfico local. “É cada um de um lado. Eu os respeito e eles nos respeitam”, diz Ubirajara, que assim que vender sua casa deve voltar para a aldeia onde nasceu, em Pernambuco.
A melhoria de renda nos Estados do Norte e do Nordeste, por sinal, pode estar levando muitos indígenas a retornar às suas aldeias. Dados do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontaram redução entre aqueles que se declaram indígenas na Grande São Paulo e na capital. Há dez anos, 33 mil pessoas diziam ser indígenas na metrópole. Atualmente, são 21 mil.
No ano que vem, o IBGE vai divulgar os números da primeira pesquisa em que os indígenas declararam aos recenseadores suas etnias. O levantamento mais completo na capital havia sido feito no ano passado pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e apontou a existência de 22 etnias na metrópole paulista. “Ainda é preciso olhar os números do censo com cautela. Pode estar de fato havendo uma onda migratória, porque os indígenas se mudam com grande frequência. Mas só os resultados detalhados no ano que vem vão permitir sabermos com mais clareza o que está ocorrendo”, afirma a antropóloga Lúcia Helena Rangel, da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).
Mesmo em uma das maiores cidades do mundo, a vida dos índios paulistanos pode ser bem parecida à de indígenas de tribos no interior do País. Na aldeia Tenondê Porã, em Parelheiros, vivem cerca de 1,2 mil guaranis, a 70 quilômetros da Praça da Sé. São basicamente oito grandes famílias, com filhos, netos, bisnetos, genros e noras, que compartilham casas de tijolos, construídas pelo Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano de São Paulo (CDHU), seguindo as orientações dos próprios indígenas.
Pratica-se basicamente a agricultura de subsistência, que fornece o alimento cotidiano. Há bananeiras, pés de goiaba, mexerica, goiaba, laranja e manga, que as crianças colhem no pé. A renda vem basicamente do artesanato indígena, vendido para lojinhas da capital.
O cacique, líder local, trava atualmente uma briga para ampliar os perímetros das terras guaranis. Cinco pajés servem como guias espirituais, dando conselhos e rezando em uma casa sagrada. Os pajés também batizam as crianças da aldeia com nomes em guarani, dependendo das características de cada uma. “Vivemos em família, por isso nunca um deixa faltar nada ao outro em nossa comunidade”, afirma o coordenador educacional indígena da aldeia, Adriano Veríssimo, que em guarani se chama Tenonde Porã, nome que significa “belo futuro”.
A vida fora das aldeias pode ser mais difícil. O terena Elton José, de 32 anos, veio para Mogi das Cruzes há dez anos, depois de nascer em uma aldeia em Mato Grosso do Sul onde caçava com lanças e morava em ocas de palha. Acabou seus estudos na Grande São Paulo e hoje trabalha com tecnologia da informação, prestando serviço a grandes empresas. Ele admite que na Grande São Paulo teve acesso a um tipo de conforto que jamais teria se tivesse permanecido em sua aldeia, mas sente falta do que deixou para trás e quer voltar. “Há conforto, mas não há qualidade de vida. Sinto falta do mato. Em São Paulo, você vegeta se não tem dinheiro. O contato familiar é sempre difícil e a relação com os parentes é algo que prezamos muito”, diz.
Elton conta, no entanto, que só passou a realmente valorizar a cultura indígena depois de deixar a sua aldeia.
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