Dívida “impagável” e água imprópria marcam resgates

Em Acrelândia (AC), oito pessoas que tinham de consumir água armazenada em embalagem de agrotóxico foram libertadas. Empregador cobrava mais do que prometeu pagar a outras seis vítimas encontradas em Ariquemes (RO)

Por Bianca Pyl

Consumo de água que estava armazenada em embalagem de agrotóxicos, em um ponto, e cobrança ilegal de “dívidas” de até R$ 13 mil, em outro. Em duas operações realizadas na Região Norte do país, 14 pessoas foram libertadas de condições de trabalho escravo contemporâneo.

Uma inpeção foi realizada em Acrelândia (AC), que fica a 160 km da capital Rio Branco (AC), na área de fronteira com o Amazonas. Oito empregados estavam sendo submetidos a condições degradantes na Fazenda Três Barras. Eles bebiam água armazenada em embalagens de agrotóxicos e estavam sem receber salários há um mês. Para completar, os mantiimentos disponíveis para a alimentação dos trabalhadores estava acabando.

Trabalhadores estavam alojados em barracos
de lona extremamente precários (Foto: MPT)

As vítimas foram contratadas para aplicar agrotóxicos na área e depois extrair madeira para a confecção de porteiras e estacas.

De acordo com a procuradora do trabalho Renata Nunes Fonseca, que acompanhou a inspeção no Acre, a propriedade fiscalizada é de grande porte e tem até espaço reservado para o pouso de helicópteros.

Os trabalhadores, contudo, enfrentavam uma realidade bem diferente: dormiam em barracas de lona montadas em clareiras abertas no meio da mata. Não havia instalações sanitárias e o mato era usado como banheiro.

“A maioria das pessoas estava desde outubro nessa situação completamente degradante”, contou a procuradora. Não havia local adequado para as refeições, que eram feitas em fogão de lenha improvisado.

Os libertados são oriundos da capital Rio Branco (AC) e de Nova Califórnia (AC). Foram aliciados com a expectativa de recebimento de R$ 35 por dia, que não vinham sendo pagos regularmente,

“Como eram os próprios trabalhadores que compravam a comida, eles não tinham como fazer isso sem receber salários. Quando chegamos, havia apenas um resto de farinha, um pouco de macarrão e carne de sol”, descreveu Renata. A fiscalização apreendeu um caderno com anotações de dívidas dos trabalhadores referentes à compra de ferramentas.

O dono da Fazenda Três Barras, que mora no Estado de São Paulo, será intimado a comparecer na sede da Procuradoria do Trabalho em Rio Branco para uma audiência. O fazendeiro poderá firmar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). A operação terminou em 7 de julho.

Libertado em Rondônia relatou à fiscalização que vem sendo explorado há 20 anos (Foto: MPT)

Outros seis trabalhadores foram flagrados em condições análogas à escravidão na Fazenda São João, em Ariquemes (RO). Uma das vítimas relatou à comitiva composta por membros do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Ministério Público do Trabalho (MPT), Polícia Federal (PF) e Polícia Rodoviária Federal (PRF) que saiu de Minas Gerais e vivia em situação semelhante, sendo explorado criminosamente em diversas fazendas, há mais de 20 anos. Os únicos bens que possuía: o chinelo de dedo e a roupa do corpo.

A dívida ilegal que o empregador cobrava das vítimas batia em R$ 13 mil. Pelo serviço, os empregados receberiam supostamente R$ 2 mil para cada quilômetro de cerca construído. Ao iniciar o trabalho, contudo, o empregador informou que rodos receberiam apenas R$ 500. O valor seria divido por equipe, composta por três trabalhadores cada. Uma parte do grupo estava no local desde janeiro e nunca havia recebido salário, de acordo com Tiago Ranieri de Oliveira, procurador do trabalho que participou da ação. Outros três empregados estavam há somente 23 dias na fazenda de pecuária.

O empregador anotava em cadernos todos os gastos com alimentação, ferramentas de trabalho e equipamento de proteção individual (EPI) para depois cobrar dos empregados. Uma dos grupos – que construiu cerca de 19 km de cerca – devia ao empregador R$ 13 mil e tinha o saldo a receber de R$ 8,5 mil. “Fica clara a servidão por dívida nesse caso. Não havia coerção com armas, mas o que os impedia de deixar o trabalho eram as dívidas inventadas pelo empregador”, explicou Tiago.

Dívidas ilegais eram cobradas de vítimas; água consumida era utilizada por animais (Foto:MPT)

Além da servidão por dívida, foi constatada a condição degradante dos alojamentos – que eram barracos (de lona no meio do pasto) construídos pelas próprias vítimas. A água consumida vinha de um riacho. A mesma fonte de água também era utilizada para o banho. O mesmo riacho estava sendo usado pelos animais criados na fazenda.

Após a fiscalização, o migrante de Minas foi levado para um hotel. O empregador, por seu turno, foi autuado pelo MTE e assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o MPT. A título de dano moral, o responsável deverá pagar R$ 50 mil, que serão destinados à qualificação profissional de mão de obra da região (em programas para os próximos dois anos), por meio do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar).

“A melhor forma de romper com o ciclo da escravidão é qualificar as vítimas”, opinou o procurador Tiago. A iniciativa levada a cabo por ele faz parte do projeto O Resgate da Cidadania, lançado este ano pela Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete) do MPT.

O procurador informou ainda que foi aberto também um procedimento administrativo contra um frigorífico que compra da Fazenda São João. E complementou: “O objetivo é a responsabilização estruturante. Temos que atuar na cadeia produtiva dos que utilizam o trabalho escravo”.

http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1914

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