O Cimi Regional Rondônia presta homenagem à indígena Justina, do povo Miguelem, e solidariedade a todos seus familiares e amigos. Justina faleceu no último sábado, dia 2 de julho, no Hospital de Base Doutor Ari Pinheiro, em Porto Velho. Ela tinha 62 anos, 13 filhos, e vivia em Guajará-Mirim. Sua história se confunde com a história de seu povo, que expulso de sua terra, no rio São Miguel, vive em permanente e incansável luta pela demarcação de seu território tradicional.
Leia texto abaixo:
Pequena mensagem para a família da Justina
Aos filhos e às filhas da Justina,
Valda (Jucilete), Lúcia (Jucimar), Francisca, Mada, Renilda, José, Reinaldo, Rerivão, Bira (Amarildo) e Roseli, Dejanil, Reilsa, Maikon e Beatriz;
Aos netos e bisnetos,
Aos irmãos e às irmãs: Elias, Ambrosina, Dolores, Nezinha (Delmira), Jusnaldo e Tanadi;
A todos os demais familiares sobrinhos e sobrinhas, primos e primas e amigos da família;
Neste momento de dor, os seus amigos do Cimi estão partilhando a sua tristeza e ao mesmo tempo a ESPERANÇA que uma grande LUZ envolva a JUSTINA. Temos fé que agora ela está descansando no colo de Deus-Pai, um Pai amoroso que sempre sonhou para os seus filhos e filhas uma vida digna na terra, e que prometeu aos pobres e humildes o Reino dos Ceús, um “banquete”, sem lágrimas nem sofrimento, onde os injustiçados serão consolados e os últimos, os primeiros.
Justina foi uma “guerreira” humilde e determinada que lutou contra a doença da mesma forma que enfrentou a vida: com coragem e esperança.
Os dias em que a Justina foi internada pela última vez em Guajará-Mirim (final de abril), dois meses antes de falecer e na véspera de ser transferida para Porto Velho, coincidiram com a visita em Guajará-Mirim da equipe do GT da terra Miguelem. Nesta ocasião, vieram também seus irmãos Tanadi de Porto Murtinho e Elias de Ariquemes. Assim, ao redor da Justina encontraram-se filhos e filhas, netos e netas, irmãos e irmãs, sobrinhos e sobrinhas que a visitavam. Foi um encontro providencial e emocionalmente muito forte, onde Justina, com o seu sofrimento e o restante de energia e alegria que tinha, conseguiu unir os membros de sua família e se despedir.
História de luta e dedicação
A história da Justina faz parte da história de luta e de sofrimento do povo Miguelem. Povo que até 100 anos atrás ocupava toda a gião do baixo e médio rio São Miguel, em Rondônia, e que com a exploração dos seringais, foi quase que totalmente dizimado pelas doenças, ficando uma parte remanescente encurralada para as antigas malocas de Limoeiro e do baixo rio Manoel Corrêa. Em 1984, com a criação da Reserva Biológica Guaporé, os Miguelem foram expulsos da margem esquerda do rio São Miguel pelo Ibama, ficando a mercê da própria sorte.
Fora de sua terra, Justina derramou o seu sangue e o seu suor para sustentar os seus 13 filhos. Foi morar num sítio da colônia Sidney Giron -Linha 28, no município de Nova Mamoré, até o dia em que um filho veio a desaparecer. Com o desaparecimento do filho, ela foi então para Guajará-Mirim, carregando essa dor pelo resto de sua vida. Para colocar feijão na panela, teve que se revirar. Ela confeccionava vassouras de cipó e torrava farinha d’água que vendia na feira.
A cada ano que passava, por causa do desmatamento, o cipó era mais difícil de encontrar. Justina, apesar de reumatismos nos joelhos e de dores nas costas, percorria dezenas de quilômetros de bicicleta, entrava nos brejos com água até a cintura, tirava o cipó e na volta, carregava os feixes pesados. Também ia até a casa da filha Jucimar, no “Lago das Garças”, numa distância de 50 km, e fazia a farinha d’água que trazia de volta na garupa da bicicleta.
A casa de Justina era o retrato de uma aldeia indígena, cheia de vida, e aconchegante, com a sombra de um tapari, frutíferas, animais de criação, feixes de cipó e as cascas esparramadas no quintal. A gente costumava encontrá-la em companhia de filhos, netos ou amigos, muitas das vezes fazendo vassoura. Ela nos acolhia com um sorriso meigo, um abraço gostoso e costumava falar uma brincadeira. Pedia para sentarmos perto dela e oferecia um cafezinho.
Foi nesta casa que Justina cuidou do tio Firmino, ancião Miguelem, expulso também da maloca de Limoeiro e que foi informante para o dicionário da língua miguelem. Firmino foi o primeiro Miguelem a ser atendido e registrado pela Funai. Em 1997, quando Firmino faleceu, o administrador do orgão indigenista marcou presença na casa de Justina, local do velório.
Portanto, a Funai conhecia bem a Justina e devia ter atendido a mesma quando muitas vezes solicitava a identificação indígena e a aposentadoria. Entretanto, durante anos a Fundação se negou a dar-lhe a carteira indígena, o que dificultou o atendimento pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Negou-lhe ainda a declaração exigida pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) para se aposentar. Inúmeras denúncias foram encaminhadas ao Ministério Público Federal (MPF) a partir de 2005. Finalmente, com a pressão do MPF, em 2010, a Funai emitiu essa declaração. Por sua vez, o INSS colocou empecilhos vários, o que levou o MPF a mover um processo em favor da aposentadoria de Justina. Justina nunca chegou a receber o benefício da aposentadoria, pois a Justiça é demorada, mas a doença e a morte lijeiras.
O que aconteceu com Justina é resultado do preconceito, da ignorância, da ideologia que prega o desenvolvimento a qualquer custo e da omissão de funcionários de orgãos públicos de Guajará-Mirim que, descaradamente, deixam de cumprir as leis vigentes no atendimento aos indígenas, e de modo especial aos que moram fora da terra demarcada (que muitos, aliás, não têm e gostariam de ter). A impunidade ao encontro desses funcionários acaba por ser um incentivo a persistir no erro.
Última visita
Em 27 de abril, fizemos uma visita para Justina sem saber que seria a última na casa dela. Ela tinha a aparência de alguém muito doente. Entretanto, nos dizia que retornava de uma consulta de controle em Porto Velho, onde o médico afirmou que ela estava bem. Ela estava indignada com a Funasa, porque dias antes tinha levado seu neto de apenas um ano de idade até a Casa de Saúde Indígena (Casai) para ser consultado, mas não conseguiu. No local, a enfermeira chefe exigiu que ela fosse até a Funai solicitar uma declaração de que a criança era indígena. Justina apresentou a certidão de nascimento da criança, sendo que o pai – filho dela – possuía a carteira indígena e que a mãe era Macurap. Mesmo assim, a enfermeira não liberou a consulta sem a declaração. Justina saiu da Casai sem atendimento e sem perspectivas de a quem recorrer.
Fica então, mais uma vez, a pergunta: Até quando haverá atitudes discriminatórias dificultando o atendimento e fazendo os indígenas de palhaços correndo para lá e para cá, dependendo da boa vontade ou da má fé dos funcionários?
Dois dias depois, Justina precisou ser internada e em seguida transferida para Porto Velho, onde permaneceu internada por dois meses, acompanhada constantemente por uma filha, até sua última hora. Antes de falecer falou com a filha Jucimar: ‘dá o meu abraço para o Gil e fala para ele que reze por mim!’. “Justina, o seu abraço é um presente que nunca esquecerei e estou rezando por você, com você, todos os dias”.
Justina sonhava em voltar para a sua terra no rio São Miguel. Ela participava dos encontros dos indígenas de Guajará-Mirim e das assembleias de seu povo em Porto Murtinho, município de São Francisco do Guaporé, onde ainda mora boa parte de sua família. Ela sempre reivindicava a demarcação da terra de seus antepassados, terra onde nasceu, se criou e criou sua família até o dia em que foi expulsa.
Um pré grupo de trabalho foi realizado pela Funai há alguns anos, mas foi somente no final do ano passado que o GT foi criado, dez anos após o primeiro documento e oito anos após a primeira Assembléia do Povo Miguelem. Por conta da demora, muitos familiares de Justina partiram antes de poder voltar: o pai Sebastião, o tio Marcirilo e o primo João. Agora, também Justina partiu para junto do Pai sem que pudesse retornar a sua terra.
Pedimos a Justina, que agora se encontra junto a Deus e aos seus antepassados, que mantenha acesa a chama da esperança para que os Miguelem permaneçam unidos e perseverantes na busca de seus direitos, que durante tanto tempo lhes foram negados, pois no futuro haverão mais conquistas.
O carinho de Justina para com todos, sua alegria, seu amor e a dedicação de mãe e avó, o sorriso e o calor de seu abraço, e sua teimosa resistência permanecem vivos no meio de nós.
Justina, obrigado por sua vida!
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