Os morcegos saem voando desorientados, trocando seus aprazíveis descansos por barulhos e estampidos no ar. São interrompidos em seus sossegos diurno no quarto contiguo que ocupam na mansão rural em decadência. Algumas das pessoas que matavam aquele dia a curiosidade acompanham a saideira dos vivíparos também quase em aças. A cena de susto é recíproca. Porém, talvez, o mais assustador para quem não imagina com que surpresas vai se deparar num roteiro improvisado pela ex-fazenda Eldorado é o canil que faz parte da estrutura do palácio abandonado. A ex-morada de ferozes cães poderia ser facilmente comparada em custo com o que hoje possui a chamada “a nova classe media”, ou com os modelos erguidos para “minha casa, minha vida”. Ela tem refugio para seis esplêndidos guardiões de raça…e dos grandes! A coisa é mesmo estar ai e do restante a imaginação se encarrega sem esforço. O cenário não convida precisamente para tramas de romance. O vento recolhe do passado matilha de famintos e roda de pistoleiros.
O “encantamento” da Fazenda Eldorado é muito forte. Sua fama transcende os limites da pequena Sidrolândia. Esta comarca ostenta hoje o título de município com maior numero de assentamentos no Mato Grosso do Sul e talvez do Brasil. Fica 60 km de Campo Grande. Da cidade de Sidrolândia, 26 km de terra batida e pedregulhos levam ao coração da ex-fazenda. Em 2008 foi cenário da maior parte da produção do filme “Cabeça à prêmio”, longa metragem que conta historias de pistolagem, traição, e fazendeiros vinculados a negócios de trafico de droga na região de fronteira do Brasil com o Paraguai. A ex-fazenda foi escolhida dentre mais de 50 fazendas visitadas pela equipe de produção do filme. “As vezes a sede era bonita, mas o local não combinava, as vezes o local era bonito mas a sede não era o que precisávamos. Quando conhecemos a Eldorado não tivemos dúvidas. Ela era ideal para as gravações”, dizia naquele tempo o ator Marco Ricca, quem estreava como diretor. Os padrões de Eldorado, ainda avistada em sua atual condição de antigo império rural abandonado é de arrepiar. Um verdadeiro monumento à arrogância. Ai tudo é premeditadamente ostentoso. Até seu gigantesco e maravilhoso lago artificial. Os muros gravados com símbolos da fazenda e os ferros artisticamente trabalhados alem de servir como bunker de proteção aos salões e jardins interiores luxentos da mansão, repelem a consciência pela sua própria natureza advinda da linhagem oligárquica e latifundiária. O velho “mangueiro” real conserva uma passarela pendurante que servia de observatório para o “rei do gado”. Porém, Eldorado, nos seus anos dourados tinha além do palácio rural e a cidadela que albergava aos funcionários da fazenda, 28,6 mil hectares em volta da sede.As que antes eram trilhas exclusivas que conduziam ao frenesi dos negócios do gado, hoje movimentam nos seus trechos a milhares de agricultores familiares.
Simplicidade e ação profética
Uma flor de maracujá desabrocha baixo o sol. Na folhagem de planta pousa um enxame de abelhas. Milagre da natureza como este se repetem nos quintais dos vários assentamentos no que hoje está dividida a ex-fazenda. A luta das famílias camponesas com suas diversas organizações gera vida e alimentos em aproximadamente 2.300 lotes. Os pomares vão enchendo. Esforços e trabalhos individuais e coletivos brotam do chão colorindo as esperanças dos trabalhadores rurais. Apóio sempre é preciso. O que existe de parte do Estado não é suficiente para segurar todo o mundo acima da terra tempo integral. Penosamente muitos camponeses e muitas camponesas, por falta de alternativas, saem do assentamento para buscar garantir o seu sustento fora dele. Dos gigantes do etanol, sanguessugas da terra, da água e do homem, também a microrregião se orgulha na mídia e nos discursos. Um setor que parece sempre estar torcendo para que as experiências camponesas não dêem certas, pois, assim ele pode dispor com mais facilidade do exercito de homem e mulheres necessitados de vender sua força de trabalho para sobreviver. Uma das organizações que apoiou a luta pela terra nesta região do Estado é a Comissão Pastoral da Terra. A CPT/MS agora busca incentivos para o agricultor permanecer nela. A entidade busca continuar sua ação profética junto às famílias dos assentamentos da ex-fazenda Eldorado. Geração de renda, auto-estima, resgate da cultura camponesa, viver bem do que produze a terra, melhorar as experiências boas, contribuir na organização e elevação da consciência dos agricultores, apresentar alternativas na organização da propriedade e ao uso de produtos químicos nos quintais, são temas e desafios que no meio da simplicidade os agentes da CPT/MS vêm conversando com muitas famílias desses assentamentos.
Baru, mangaba, jatobá, guaivira, macaúba, marolo, cambará, são algumas das árvores nativas que seguem em pé nos assentamentos da ex-fazenda. Eles vão despertando na fala da irmã Lucinda Moretti, coordenadora da CPT/MS, frases de amor à terra e a natureza. Ela e outros agentes da entidade vão interagindo em busca de novos sonhos com os agricultores familiares da ex-fazenda Eldorado. “Olha o gavião subindo com uma comidinha! olha o tucano! olha as araras!”, são as frases de admiração que voltam com o despertar do ambiente rural camponês, que oferece alimentos e proteção à natureza. A partilha daquele dia deu para conhecer, por exemplo, seu Gasparin. Ele migrou do Paraná, ganhou a terra e com os pés firmes no chão espalha seus conhecimentos empíricos no seu quintal bem produtivo. “O que for de produção de renda eu mexo”, partilha animadamente e muito feliz. Atitudes como essa, ainda em meio de muitas necessidades, abundam nessa terra de centos de famílias; realidade que contrasta com a ex-unidade privada da mega-sede de uma família só. Mais contente ainda fica o agricultor familiar Carlos Alberto Gasparin quando o pessoal da CPT descobriu com ele que no seu sitio têm ervas que podem combater alguns bichos que atacam seu pomar e evitar a compra e o uso de agroquímicos. Ele foi pegar uma do fundo do quintal. Era mesmo o remédio que precisava. Sua animação e simplicidade contagia e faz acreditar ainda mais que outro tipo de agricultura e outra relação com a terra são possíveis e que vale a pena lutar por esses paradigmas.
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