Sidnei vê o ônibus escolar deixar sua filha Vaneia, de 9 anos, no outro lado da BR-463. Vai ao seu encontro, pois sabe do perigo que é atravessar a pista onde os veículos transitam em alta velocidade (filme acima). Uma pancada de um ônibus arremessa o corpo de Sidnei, de 26 anos, pai de quatro filhos, a uns 300 metros. Em seguida outro ônibus passa em cima do corpo, deixando-o estraçalhado no chão. Nenhum dos veículos para. Tudo isso sob o olhar desesperado de Vanéia, a quem o pai estava indo buscar.
Essa será mais uma morte, entre as dezenas de Guarani, relatadas no relatório de violência anual, elaborado e divulgado pelo Cimi. Essa é mais uma morte que ficará impune. Apenas mais uma morte guarani, um Guarani há menos na contabilidade do agronegócio e de políticos regionais.
Vaneia não conseguiu dormir naquela noite. No dia seguinte, diante dos familiares e aliados não cansava de repetir: “Meu pai não é tatu peba e nem cachorro para ser esmagado assim na estrada. Queremos justiça. Se não tiver justiça, nós crianças vamos morrer uma por uma, aqui nessa estrada”.
Era início da noite do dia 28 de junho. Damiana, mãe de Sidnei, que há mais de uma década luta pelo seu tekohá Apica’y, ao qual já retornaram várias vezes, sendo sempre expulsos para a beira da estrada, está inconformada. Pede justiça. Já perderam vários membros da comunidade, seja pelas balas dos pistoleiros, atropelamentos ou envenenamento pelos agrotóxicos.
Os acampamentos indígenas e os atropelamentos
Conforme a Funai, existem mais de 20 acampamentos indígenas na região do cone sul do Mato Grosso do Sul. Vivem em permanente perigo, sobressaltos, frio, calor sob as precárias lonas pretas, ao lado das movimentadas rodovias. Querem viver em paz em seus tekohá. Já esperam e lutam há décadas. Encaminharam centenas de documentos e denúncias a instituições nacionais e internacionais. Perderam inúmeros membros de suas comunidades. Porém não esmorecem. Choram e lembram seus mortos enquanto reúnem diariamente forças para continuar vivendo e sonhando com suas terras, onde possa viver em paz e com dignidade.
Um dos exemplos dessa luta é a comunidade de Laranjeira Nhanderu, próximo ao rio Brilhante. Expulsos de sua terra, ficaram à beira da BR-163 por quase dois anos. Ali três pessoas morreram atropeladas, além de inúmeros animais esmagados no asfalto. Retornaram há poucos meses há seus tekohá, pois não queriam continuar vendo seus filhos morrendo atropelados, ou morrendo em função das precárias situações de sobrevivência. Aguardam agora urgentes medidas da Funai para concluir a identificação e demarcação de suas terras.
Esse é o sentimento e desejo de todos os acampados. Damiana e sua comunidade do Apika’y esperam poder enterrar seu filho junto aos demais membros de sua família, no seu tekohá.
Há menos de dois meses, Sidnei nos mostrava a precária situação de sobrevivência, quando praticamente estavam ficando sem água. Ele fora pessoalmente ao Ministério Público denunciar essa situação.
Mais que solidariedade
O Conselho Continental da Nação Guarani, reunido em Assuncion, Paraguai, foi informado da morte de Sidnei e imediatamente fez uma moção de repúdio contra as violências e mortes a que estão submetidos os Kaiowá Guarani. Ao salientar que essa situação lamentável tem como causa principal o não reconhecimento das terras e territórios de seu povo, concluem a nota exigindo: “Queremos dizer aos distintos governos que este Conselho Continental da Nação Guarani não permitirá que esses nossos irmãos continuem morrendo e tendo seus direitos desrespeitados. Exigimos do governo esclarecimentos e que os responsáveis sejam punidos” (Assuncion, 29/06/11).
O que a comunidade de Apika’y, como a dos demais acampamentos exigem são ações concretas para se reverter esse quadro lamentável, que, conforme mostra o relatório de violência divulgado ontem pelo Cimi, o Mato Grosso do Sul continua sendo o campeão de violência contra os povos indígenas e negação dos direitos às suas terras.
Onde enterrar Sidnei
Noite de dia 30. O corpo de Sidnei continua no IML. A comunidade decidiu que ele deverá ser enterrado no local em que estão sepultados outros membros do grupo, próximo à mata ciliar de um pequeno córrego, no tekohá Apika´’y. Esta região está sendo utilizada pela usina de etanol São Fernando. A empresa mantém vigias na entrada para evitar o sepultamento ali. A comunidade solicitou autorização à Funai e ao Ministério Público. Porém, a Funai informou que houve a negativa do juiz em fazer o sepultamento naquele local. Conforme Damiana, em fevereiro deste ano a empresa arrancou os ossos da anciã Alzira Milita, sua tia, que ali estava sepultada.
Rogério, irmão do Guarani-Kaiowá morto, traduz o sentimento dos familiares: “Pode o corpo do meu irmão esperar o tempo que for. Vamos enterrar ele na terra, pela qual ele lutou e morreu. Ele morreu na luta pelo nosso tekohá Apika’y, e lá ele vai ser enterrado”. Depois lembrou de várias lideranças que morreram na luta pela terra e nela foram enterradas, como é o caso de Marcos Veron, na Terra Indígena Takuara. Continuam confiantes de que terão seu pedido atendido pela justiça.
Até o dia 1º. de julho não havia nenhuma decisão sobre a liberação do corpo.
Dourados, MS, 1º de julho de 2011.
Egon Heck
http://www.cimi.org.br/?system=news&action=read&id=5661&eid=352
Eu, brasileira, gostaria de saber onde se encontra a prática e a efetivação de leis neste país, nós povos de Comunidades Tradicionais afro descendentes e povos indígenas não suportamos mais a falta de descaso em torno dos nossos direitos e acessos, onde estão os Direitos Humanos deste país ? Porque para nós há lentidão para soluções ? O que teremos que fazer ? Iniciar um movimento onde se faz justiça com o próprio punho? A justiça e os acessos não é de igualdade para todos?
Não dá mais para aceitar situações como essas estejam acontecendo. Temos no RS várias situações desse tipo. A FUNAI, órgão indigenista que deveria ressolver essas situações, estão preocupados mais com a reestruturação de sua instituiçõa, enquanto os indios continuam morrendo.