Para a antropóloga Lucia Helena Rangel, as mulheres e mães indígenas têm dois desafios: tomar consciência do papel bonito que tem a mãe na valorização da cultura e criar os filhos sem vergonha de serem índios
A cena de mães indígenas entrelaçadas a seus filhos nos primeiros anos de vida é uma das imagens mais emblemáticas para descrever o significado da maternidade. “Mãe e criança quase se fundem em um mesmo corpo”, descreve a antropóloga Lucia Helena Rangel e, nesta relação, o bebê tem livre acesso ao aleitamento, estabelecendo vínculos eternos. Segundo a pesquisadora, “a mãe cumpre um papel-chave na formação dos vínculos sociais e de pertencimento a família e a um povo” e esse é um dos motivos que garante à maternidade um papel central.
Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, a professora da PUC-SP explica que a maternidade é vivenciada com intensidade entre os indígenas porque, para eles, homem e mulher desempenham funções sociais diferentes na comunidade, que se completam. Nesta divisão de tarefas, cabe à mãe a responsabilidade de educar os filhos para a vida adulta.
Lucia Helena dedica suas pesquisas à compreensão da vida e a estrutura social das comunidades indígenas e conta que a relação estabelecida entre mães e filhos é simples e tem muito a ensinar às mães da sociedade ocidental moderna. “Não estou dizendo que a mãe indígena faça mais que as outras mães, mas, às vezes, as mães da nossa sociedade se esquecem da importância desse papel e começam a achar que ter filho, criá-lo e ficar com ele é pouca coisa, porque a sociedade tende a achar esse um papel menor”.
Lucia Helena Rangel é doutora em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP com a tese Os Jamamadi e as armadilhas do tempo histórico. Atualmente é professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Também é assessora do Conselho Indigenista Missionário – CIMI Regional Amazônia Ocidental e do CIMI Nacional. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como percebe a maternidade nas diferentes culturas?
Lucia Helena Vilhena Rangel – Em todas as sociedades humanas, desde sempre, o papel da mulher é fundamental, pois sua função é dar a vida. A maternidade não é só uma responsabilidade, mas uma característica biológica que foi dada à mulher. É ela quem gesta, pari e amamenta. Em todas as sociedades humanas essa característica da mulher é fundamental para compreender os contextos sociais históricos, culturais. Não haverá sociedade em que a maternidade não esteja no centro da vida social.
IHU On-Line – Qual é a importância e o papel da figura materna nas comunidades indígenas? Que funções ela desempenha na sociedade?
Lucia Helena Vilhena Rangel – Na sociedade indígena dos povos que vivem no território brasileiro há um padrão social em que a divisão sexual do trabalho é central na produção, da vida social e das relações familiares. Essa divisão sexual do trabalho dá ao homem um papel e à mulher, outro, os quais se complementam. O homem caça, constrói casas, lidera as expedições pela floresta, ou seja, as tarefas masculinas são viris, ligadas à virilidade. Além disso, o homem tem o papel de guerreiro, como um emblema social. A mulher, por outro lado, tem a tarefa de ser mãe; a reprodução social e a continuidade da sociedade dependem dela.
Nas sociedades indígenas, a mulher trabalha muito, faz colheita, limpeza de roçado, cata lenha, coleta frutos e, sobretudo, cozinha. O cozinhar também é uma tarefa fundamental na vida social. O homem caça e a mulher cozinha a caça. Essa divisão de trabalho é fundamental e complementar.
A maternidade não significa apenas ter um filho e cuidar dele. Do ponto de vista social, a maternidade é fundamental. Nas sociedades indígenas, a criança fica praticamente grudada à mãe durante os dois primeiros anos de vida. A mulher coloca a criança na tipoia e o bebê tem acesso ao seio o tempo inteiro. Quando ela faz suas necessidades fisiológicas, a criança vai junto. Além disso, ela cozinha agachada, virada de lado para o bebê mamar. Enfim, o filho tem livre acesso ao aleitamento, mama quando quer e não de três em três horas. Os pediatras, inclusive, estão recomendando a mamada livre porque isso é fundamental. A criança não pode ser interditada. A mãe e a criança quase se fundem em um mesmo corpo.
Experiência
Quando minha filha tinha dois anos, fui a uma aldeia em Rondônia, e a deixei com o pai e os avôs. Ao chegar na comunidade, vi aquela mulherada com as crianças grudadas e pensei: “Sou uma péssima mãe, ainda não é hora de largar a criança – claro que eu sabia que era assim, mas nunca estive com a sensibilidade voltada para isso”. As crianças indígenas têm contato com o pai, os avôs, tios, mas a imagem do livre acesso à mãe é muito forte. Quando a criança está maior, ela é carregada na tipoia nas costas. Filho e mãe são a mesma coisa.
A mulher tem um papel social fundamental na primeira infância porque toda a transmissão da cultura se faz através da mãe e ela tem plena consciência desta função. Ela fala a língua do povo dela com o bebê e por isso uma criança indígena não fala português antes dos quatro anos de idade. A mãe cumpre um papel-chave na formação dos vínculos sociais e de pertencimento a família e a um povo. Não estou dizendo que a mãe indígena faça mais que as outras mães, mas, às vezes, as mães da nossa sociedade se esquecem da importância desse papel e começam a achar que ter filho, criá-lo e ficar com ele é pouca coisa porque a sociedade tende a achar esse um papel menor. Mas não o é. Pelo contrário, é um papel grande em todas as sociedades. Quando vemos crianças com transtornos psíquicos e de comportamento social, esquecemos que ela não teve mãe ou teve uma mãe que desvalorizou seu papel. A mãe indígena é importante para nos mostrar essa simplicidade; não há um questionamento, por exemplo, em relação ao marido que está no boteco e ao fato de ela ter a responsabilidade de ficar em casa cuidando do neném. Para eles, os papeis de homem e mulheres são bem divididos. Para nós, não. Porque a divisão do trabalho não é por sexo; é uma divisão técnica e hoje em dia a mulher também atua em profissões que eram desempenhadas apenas por homens.
IHU On-Line – Parece que as mulheres da sociedade urbana prezam pela autonomia no sentido de disponibilizar tempo para se dedicarem não somente aos filhos, mas a outras atividades que julgam importantes como estudar, praticar um esporte. É diferente essa necessidade para as mulheres indígenas?
Lucia Helena Vilhena Rangel – Isso acontece em função da divisão sexual do trabalho na sociedade, e não em função da dedicação total aos filhos. Alguém precisa fazer alguma coisa, e alguém precisa fazer outra. Hoje em dia, as mulheres indígenas também querem trabalhar para ganhar dinheiro porque é impossível viver sem ele. A economia monetária tomou conta de todas as comunidades e grupos sociais. Mas essas mulheres são pouco compreendidas: quando elas vão para a cidade vender o artesanato que fizeram, carregam os filhos juntos porque assim tem de ser. Mas quando nós olhamos para elas nos centros das cidades, dizemos que estão explorando os filhos e os deixando na rua. Não é nada disso: elas não estão explorando as crianças. A rua para elas têm outro sentido. Para nós, a rua é o lugar dos pobres, lugar de passagem, de perigo e de cometer ilícitos. Nós, ocidentais urbanos modernos, deixamos de usufruir da rua e ficamos com esse preconceito. Para as mulheres indígenas, a rua é um local de trabalho.
As famílias indígenas não abriram mão da educação, da socialização das crianças, mas nós abrimos. Colocamos os filhos muito cedo na escola e vamos trabalhar. Não estou nos recriminando, porque também fiz isso. Mas, no nosso modelo social, é mais importante ganhar dinheiro e, por isso, fazemos essas coisas.
IHU On-Line – Hoje algumas mulheres indígenas estão ingressando nas universidades, cursando mestrado. Como vê a inserção delas na sociedade brasileira urbanizada e o que muda nas suas culturas a partir desse contato direto com o saber do homem urbanizado? E como essas duas culturas se relacionam?
Lucia Helena Vilhena Rangel – Na cultura indígena não muda nada. Como toda cultura é dinâmica e os processos sociais fazem nós nos movimentarmos em direções históricas, a cultura deles não muda. Essa opção de trabalhar e ganhar dinheiro aponta para um caminho educacional: se a pessoa fizer toda a escolaridade, poderá ir para a universidade e ter uma profissão. É isso que as mulheres indígenas, como todos os estudantes, querem. As mulheres, na nossa sociedade, têm, no estudo, um elemento importante porque é mais aceitável que ela não trabalhe para estudar do que o homem.
Para as comunidades indígenas, isso é muito importante porque elas têm o menor índice de escolaridade – algo em torno de três anos –, quando a média nacional é entre cinco e seis anos de escolaridade. O Brasil é um país em que o índice de estudo é baixo para toda a população, porque a média deveria ser nove anos de estudo. Então, ingressar na universidade é uma grande conquista para eles no sentido de mostrar para a sociedade que eles não são menos do que nós, que podem estudar.
A cultura muda não por causa de um ou outro fator, mas em função de necessidades históricas, sejam elas impositivas pelos processos de dominação ou por atualizações tecnológicas. Se as culturas não se modificassem frente aos ativos históricos, estaríamos estagnados no período paleolítico. Hoje estamos na era do cyber, da cybercultura. Os índios estão também na cybercultura, mas continuam preservando as suas peculiaridades como o idioma, os rituais. O que significa a educação escolar dentro da comunidade? Como a comunidade lida com ela? Essa é uma questão pouco estudada.
IHU On-Line – Quais são os maiores desafios de uma mulher indígena que estuda, trabalha, é mãe e tem mais tarefas a desenvolver nos dias de hoje?
Lucia Helena Vilhena Rangel – Não posso falar por elas, porque elas é que sabem quais são seus maiores desafios. Dando um palpite, penso que o desafio da mulher indígena é tomar consciência de fato desse papel bonito que tem a mãe na valorização da sua cultura, dos seus referenciais e não criarem seus filhos com vergonha de ser índio.
IHU On-Line – O que a senhora aprendeu sobre maternidade convivendo com as mulheres indígenas?
Lucia Helena Vilhena Rangel – Aprendi bastante e isso me desorganizou muito também porque eu criei minha filha sempre oscilando entre o estabelecimento do limite, que é uma exigência psíquica e pedagógica da nossa sociedade, porque limite para nós é também amor e ausência total de limites, que é a educação indígena. Em compensação, para eles, o limite se dá quando as crianças completam 12 anos e têm de virar adultos. É uma mudança abrupta. A nossa sociedade não impõe esse limite social porque ela não sabe quando alguém vai virar adulto; não tem emprego para todo mundo, por exemplo. Então, as famílias abastadas ficam sustentando os filhos. Seria muito feio chegar para o mundo e dizer que o meu filhinho de 30 anos continua vivendo em casa. Mas nós fizemos isso em função das condições e colocamos outros tipos de limites para declarar o nosso amor: não faça isso, não mexe naquilo, etc.
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