Diferenças na definição de ”acusação confiável” em casos de abuso sexual

Recentemente, recebemos um telefonema de um leitor que perguntou, com relação à crise dos abusos sexuais do clero: “Quando eu leio “acusação confiável” nos jornais, o que significa isso?”. Nós demos uma olhada mais de perto nesse termo.

A reportagem é de Zoe Ryan, publicada no sítio National Catholic Reporter, 22-04-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

A frase “acusação confiável” aparece regularmente nos relatos da mídia sobre o abuso sexual de menores por parte de membros do clero. Ela geralmente indica que aqueles que fazem um julgamento inicial acreditam que a acusação contra um clérigo tem algum mérito.

Embora os especialistas entrevistados para esta reportagem tenham salientado repetidamente que uma acusação confiável não significa que o acusado é culpado, ela significa, sim, que o acusado é removido do ministério imediatamente e não tem a permissão de voltar, a menos que a acusação não possa ser fundamentada, o que pode levar anos. Enquanto isso, a reputação de um clérigo está prejudicada e, alguns diriam, nunca poderá ser totalmente restaurado.

Entretanto, não há uma definição ou padrão precisos para o que significa ser “confiavelmente acusado”, deixando a cada diocese a decisão individual do que significa “confiável”.

O termo não está na linguagem da lei da Igreja, mas ganha significado a partir de outra frase imprecisa, “aparência de verdade”, “verossimilhança”, do Cânone 1717. Uma acusação é confiável se tem uma “aparência de verdade”.

A falta de precisão na linguagem é uma das falhas exposta pelo recente relatório do grande júri da Filadélfia, que afirmou que mais de duas dezenas de sacerdotes da arquidiocese de Filadélfia que deveriam ter sido removidos do ministério permaneceram ativos.

Uma acusação confiável não rotula uma pessoa como culpada ou não. Ela simplesmente mostra que uma acusação parece ser ao menos verdadeira, disse o Pe. James Connell, sacerdote da arquidiocese de Milwaukee, que também é canonista e membro do Conselho de Revisão Diocesano.

As Normas Essenciais para Políticas Diocesanas/Eparquiais que Lidam com Alegações de Abuso Sexual de Menores por Padres ou Diáconos foram elaboradas a partir da Carta para a Proteção de Crianças e Jovens, aprovadas pelos bispos dos EUA em Dallas, em 2002, revisadas em 2005 e aprovadas pela Santa Sé em 2006. As normas destacam, dentre outras coisas, as ações da investigação preliminar.

A investigação inicial é muito rápida, disse o Pe. Michael Sullivan, canonista e sacerdote da arquidiocese de St. Paul e Minneapolis. “Ela serve para certificar que, se foi o padre que fez isso ou é provável que ele o fez, eles sejam capazes de retirá-lo no tempo mais imediato possível”.

Sullivan é membro do grupo Justiça para Sacerdotes e Diáconos, associação sem fins lucrativos que presta consultoria ao clero sobre seus direitos ao abrigo do direito canônico.

Em Milwaukee, por exemplo, os primeiros passos que a arquidiocese toma depois de uma acusação é se dirigir ao escritório da promotoria distrital local e pôr o padre de licença, disse Connell. A polícia examina a questão e determina se eles podem dar continuidade a ela ou não. A arquidiocese tem o seu próprio investigador (comumente alguém de fora, experiente, como um oficial de polícia aposentado) que inicia uma investigação preliminar.

O investigador apresenta os resultados ao Conselho de Revisão Diocesano, que então julga se a acusação parece ser pelo menos verdadeira ou não.

Connell explicou que a comissão de revisão não é um tribunal – é um grupo consultivo para ajudar o bispo a avaliar se a acusação parece ser verdadeira ou não. É semelhante a um grande júri, disse, e isso pode causar confusão.

“Um dos perigos poderia ser que os fiéis podem entender que o que o conselho de revisão está fazendo é um julgamento real, mas não é um julgamento”, disse Connell. “Então, quando o bispo diz a uma paróquia: ‘O conselho de revisão me deu a sua recomendação, vamos segui-la, pensamos que há uma aparência de verdade nisso, estamos enviando o caso para Roma’, e ele está explicando isso acerca do seu pároco, os fiéis podem compreender isso no sentido de que ele é culpado. Isso não é verdade. Não é isso o que está sendo dito”.

Se a acusação for considerada confiável, o conselho informa o bispo, e um relatório é enviado à Congregação para a Doutrina da Fé, no Vaticano.

A congregação pode autorizar o bispo a fazer um julgamento local ou pedir que o bispo reúna e envie mais informações, ou pode definir “que não há provas suficientes da execução de um crime eclesiástico”.

De modo geral, a Congregação para a Doutrina da Fé deixa o bispo escolher o que fazer, disse Sullivan.

Na maioria das vezes, a congregação aceita a recomendação do bispo e de seu conselho de revisão de que a acusação é confiável e autoriza o bispo a remover formalmente o acusado do ministério e, na maioria dos casos, a laicizar o padre.

Depende muito de como o conselho de revisão e o bispo entendam esse vago termo “acusação confiável”.

“É um termo muito solto e está baseado no que as dioceses particulares ou ordens religiosas interpretariam”, disse Sullivan.

O Pe. Michael Maginot, canonista e sacerdote da diocese de Gary, Indiana, disse que a aparência de verdade parece ser o mais mínimo dos padrões, em parte porque não há um padrão claro sobre como ele deve ser sustentado em cada diocese. Maginot também é membro da associação Justiça para Sacerdotes e Diáconos.

A imprecisão do termo levou os defensores dos sacerdotes a se queixarem, já que a elaboração da Carta de Dallas viola os devidos direitos processuais dos acusados.

No entanto, o grande júri da Filadélfia culpou a arquidiocese por ter elevado muito a barreira e por ter, dessa forma, posto em perigo as crianças. Às vezes, o que o grande júri chamava de “abuso”, a arquidiocese chamava de “questões de fronteira”.

A disparidade nas definições e na linguagem causou preocupação para Connell, enquanto ele se preparava em 2010 para se encontrar com o seu novo arcebispo, Jerome Listecki, que havia vindo de La Crosse, Wisconsin, para Milwaukee.

Connell olhou para o Conselho de Revisão de La Crosse e descobriu que, ao invés de usar a “aparência de verdade” como padrão das provas nas investigações preliminares de abuso sexual, a diocese de La Crosse estava usando a “certeza moral”, que é semelhante à noção de “acima de qualquer suspeita” do direito civil. Isso era, pensou ele, uma violação das Normas Essenciais.

Connell tinha ouvido que cerca de 60% das denúncias contra sacerdotes na diocese de La Crosse foram consideradas infundadas ou não justificadas. Mais tarde, ele ouviu Listecki usar a mesma estatística.

Connell descobriu que o Relatório Anual de 2009 publicado pelo Escritório para a Proteção da Criança e da Juventude da Conferência dos Bispos dos EUA informou que, em uma média nacional durante 2006 e 2009, os conselhos de revisão locais definiram que cerca de 10% das alegações eram infundadas, e aproximadamente 90% foram considerados confiáveis.

Connell pôs sua conclusão em uma carta aberta amplamente divulgada no ano passado. Ele escreveu: “A consequência de usar um padrão incorreto de prova poderia significar que as crianças nesta diocese estão em risco” (grifo no original).

A possibilidade de risco justifica a imediata remoção, argumentam os advogados das crianças e das vítimas.

Se qualquer acusação for feita contra um padre, ele deve ser retirado imediatamente do ministério, disse Barbara Blaine, fundadora e presidente da Rede de Sobreviventes de Abusados Praticados por Padres – SNAP. A resposta da Igreja ao longo da história tem sido frequentemente chamar vítimas de não confiáveis, disse ela.

É muito mais fácil para um adulto reparar sua reputação do que uma criança se recuperar do trauma de ter sido abusada, disse ela.

David Clohessy, diretor nacional da SNAP, disse que o padrão da “aparência de verdade” é bom, mas é a sua implementação que está faltando.

“Infelizmente, muito pouco está funcionando para as vítimas quando elas denunciam as autoridades da Igreja”, afirmou Clohessy. “É por isso que instamos as vítimas a tentar rotas seculares primeiro e ir à Igreja como o último recurso”.

“Em um sistema em que um homem tem um poder quase ilimitado, esse poder é quase destinado a ser abusado, não importa quais políticas, procedimentos e painéis de existam, no papel ou na realidade”, disse Clohessy. “Esse é o cerne do problema”.

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