Devastação das bacias do Cerrado impacta a vida de 88,6 milhões de pessoas

Série de reportagens A morte no berço das águas mostra como a devastação do Cerrado provoca impactos irreversíveis nas bacias hidrográficas irrigadas pelo bioma

Vinícius Sassine

Com quase 20 mil nascentes, o Cerrado irriga seis das 12 regiões hidrográficas brasileiras e tem papel decisivo no abastecimento do Pantanal, situado na Bacia do Paraguai, e da Amazônia, na Bacia Amazônica. O bioma funciona como uma caixa d’água para 1,5 mil cidades de 11 estados, do Paraná ao Piauí, incluindo o Distrito Federal. Mas a fonte seca de forma dramática. Há provas suficientes da morte no berço das águas.

A maior savana da América do Sul, que ocupa um quarto do território brasileiro, foi o bioma desmatado com mais velocidade nos últimos 30 anos. Reduziu-se à metade para abrigar plantações de soja e, mais recentemente, de cana-de-açúcar. Levantamentos inéditos e com precisão científica nas nascentes comprovam a consequência da devastação: o fornecimento de água dentro e fora dos limites do Cerrado já sofre impactos irreversíveis, num processo de degradação localizado exatamente em pontos estratégicos para a existência e a qualidade dos recursos hídricos.

O retrato da morte do Cerrado é mais dramático quando se sabe que, desse reservatório, dependem regiões ocupadas por 88,6 milhões de brasileiros e lugares com grande quantidade de água, como a região amazônica. Para a Bacia São Francisco, onde está parte do Nordeste brasileiro, o Cerrado contribui com 94% da água que flui na superfície de rios e córregos. A água do Brasil Central chega aos estados que estão no litoral de Norte e Nordeste.

Um estudo do Ministério do Meio Ambiente (MMA), obtido pelo Correio com exclusividade, faz relação direta entre a devastação do bioma e as áreas de maior drenagem, aquelas com grande concentração de nascentes. Com base no levantamento feito pela Agência Nacional de Águas (ANA), o bioma foi dividido em 679 bacias de drenagem, situadas numa área de 3,5 mil km². Daquelas que drenam o Cerrado e outros biomas, 62,1% têm índice de desmatamento que impacta no abastecimento de água. As nascentes são assoreadas e deixam de aflorar por causa do rebaixamento do lençol freático. Morrem antes de encorpar e abastecer os corpos hídricos das bacias brasileiras.

Minas e São Paulo são os estados com maiores concentrações de nascentes. E são os lugares com os piores índices de desmatamento nas áreas de grande drenagem, assim como Mato Grosso do Sul e Goiás. O levantamento elaborado pelo Departamento de Políticas para o Combate ao Desmatamento do MMA relacionou 60 municípios com “risco muito alto” de impactos hidrológicos, ou seja, regiões de nascentes que perdem a função de abastecedoras por causa da devastação sem freio ou fiscalização. São os casos, por exemplo, das cidades de Pirajuba (MG) e Batatais (SP). Ricos em nascentes, os dois municípios têm um índice de desmatamento superior a 93%. Em Inocência (MS), que também aparece no documento do MMA, o desmatamento chegou a 85%.

“Essas áreas desmatadas são estratégicas para a manutenção do ciclo de unidades hidrológicas maiores”, aponta o engenheiro florestal Ralph Trancoso, responsável por elaborar o documento do MMA. A partir de amplo levantamento, que inclui pesquisas e visitas a áreas impactadas, o Correio reuniu provas sobre mortes de nascentes e de importantes cursos d’água do Cerrado. O resultado é publicado numa série de reportagens, a partir de hoje.

Poucos estudos analisam a relação entre desmatamento e qualidade dos recursos hídricos. Há levantamentos isolados, produzidos para regiões específicas. A ANA, por exemplo, mantém 89 estações sedimentométricas nos rios do Cerrado. Essas estações medem a quantidade de sedimentos nos cursos d’água, provenientes de processos de erosão. Pelas medições das estações, porém, é difícil correlacionar desmatamento e sedimentação.

A pedido do Correio, uma equipe da ANA e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa Cerrados) analisou os dados de sedimentação nas cidades que mais desmataram o Cerrado nos últimos oito anos. Concluiu que em Formosa do Rio Preto, no Oeste da Bahia, a quantidade de sedimentos no Rio Preto mais do que dobrou a partir de 2002 — chegou a triplicar em algumas medições.

O oeste baiano é o espaço por onde avança a fronteira agrícola em curso no país, principalmente a cultura da soja. Formosa do Rio Preto está sucessivamente no topo da lista de desmatamento do Cerrado nos últimos anos. Foram 2,2 mil km² devastados, somente na cidade, entre 2002 e 2009. As estações detectaram também índice elevado de erosões em rios da Bacia Tocantins-Araguaia. Uma região de chapada em Formosa do Rio Preto concentra nascentes dos Rios do Sono e Preto, que desaguam no Rio Grande, ainda na Bahia. É esse o principal afluente do lado esquerdo do São Francisco. A soja avança pela chapada.

Distrito Federal

A sensação dos trabalhadores mais antigos da Estação Ecológica de Águas Emendadas, no Distrito Federal, é de que a vereda existente no local está se deslocando. Trata-se de um encolhimento. Há dezenas de nascentes na estação. A expansão imobiliária em Planaltina, grudada à reserva, os novos loteamentos e o avanço da soja impactam no tamanho da vereda, de seis quilômetros de extensão. Num determinado ponto, apenas uma estrada separa a estação das plantações de soja e milho.

Um fenômeno raro ocorre em Águas Emendadas: duas grandes bacias nascem ali. Dois córregos afloram da vereda, em direções opostas. O que corre para o norte encontra o Rio Maranhão e abastece o Rio Tocantins, da Bacia Tocantins-Araguaia. O córrego que segue para o sul forma rios que vão desaguar no Rio Paraná, da Bacia do Paraná. A ocorrência desse fenômeno depende da conservação da área de proteção ambiental (APA) da Lagoa Formosa, na parte norte de Águas Emendadas.

A lagoa não conta mais com proteção natural: está cercada por plantações de soja, chácaras, clubes e empreendimentos imobiliários. O volume de água diminuiu nos últimos anos. O Correio flagrou uma plantação de eucalipto praticamente às margens da lagoa, bem ao lado de um clube recreativo. Um homem aplicava os defensivos agrícolas na plantação.

Em outra margem, um “empresário do Lago Sul”, em Brasília, constrói um haras a 150m da lagoa. No local é possível ver postes inundados pelo curso d’água. A margem na área do haras foi aterrada e concretada para a instalação de muretas, que servem de suporte para a entrada de jet skis na lagoa. Os próprios funcionários contam que o Ibama já questionou a concretagem da margem. “Meu patrão teve de ir ao Ibama em Brasília para resolver”, diz um dos trabalhadores do local.

http://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2011/04/25/interna_nacional,223508/devastacao-das-bacias-do-cerrado-impacta-a-vida-de-88-6-milhoes-de-pessoas.shtml

Preservação das áreas de nascentes têm de ter prioridade, diz pesquisador

Vinícius Sassine

“Uma região de nascentes não aguenta desaforo.” A afirmação do pesquisador Jorge Enoch Furquim, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa Cerrados), ressalta a vulnerabilidade de áreas que funcionam como drenos e que, por essa peculiaridade, deveriam ter prioridade nas políticas oficiais de preservação. “Há pivôs em áreas de nascentes na Bacia do Rio Preto, por exemplo. Às vezes, o pivô é o melhor método, mas o problema está em concentrar demais, sem avaliar a capacidade hídrica.”

Um estudo de Jorge Enoch e de outros pesquisadores da Embrapa Cerrados quantificou os pivôs centrais existentes no Cerrado. Os estados de Minas Gerais, Goiás e Bahia concentram 75% dos pivôs em funcionamento no bioma. Imagens de satélite mostram uma concentração desses instrumentos de irrigação em áreas de nascentes de rios. “Por causa de conflitos no uso da água, a produção agrícola precisa ser interrompida em determinados momentos”, diz Jorge Enoch.

A Fazenda Yanoama, na Bacia do Rio Preto, no Distrito Federal, deixou de produzir feijão no ano passado por causa da falta d’água durante o período de seca. Cinco pivôs centrais, conectados ao Rio Cariru, garantem a irrigação das plantações. Nascentes que abastecem o Cariru são encontradas na fazenda, que produz soja, milho e feijão. “Na seca, quando a gente vê que a água não vai dar, a gente deixa de plantar em determinada área de pivô”, afirma o técnico agrícola Cleomar Batista da Silva, 27 anos. “Se a água está pouca, é feito um acordo para segurar o uso.”

Na fazenda de Ricardo Torres, a irrigação mecânica ocorre três vezes por semana, principalmente de maio a setembro — período de seca no DF. “É um equipamento muito viável, que permite plantar o ano inteiro. Só não tem água para todo mundo. Quem tem pivôs em áreas acima da minha encontra muito pouca água.” Ricardo quer fazer, agora, uma barragem no Rio Cariru para ampliar a captação de água, a exemplo do que já fazem outros proprietários rurais da região.

ESTADO DE MINAS
http://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2011/04/25/interna_nacional,223495/preservacao-das-areas-de-nascentes-tem-de-ter-prioridade-diz-pesquisador.shtml

 

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