Com o tema dos agrotóxicos, MST quer voltar a atrair a atenção do Brasil

Gilmar Mauro, que faz parte da coordenação nacional do Movimento dos Sem Terra e é apontado como um dos principais pensadores da organização, conversou com a reportagem do Estado (de São Paulo) durante cerca de uma hora sobre os problemas que organização enfrenta atualmente – da dificuldade de mobilização de pessoas na periferia das cidades ao avanço do agronegócio, que disputa as mesmas terras reivindicadas pelo movimento.

MST, criado em 1979, com uma pequena estrutura e empurrado pela Igreja Católica, hoje mobiliza cerca de 100 mil famílias e acampamentos e outras 300 mil em assentamentos. Possui uma estrutura que se espalhada por quase mil municípios em todas as regiões do País.

No momento, a maior preocupação de seus líderes é promover um grande debate nacional sobre a estrutura agrária do País, procurando sensibilizar a sociedade a partir do tema dos agrotóxicos.

A entrevista é de Roldão Arruda e publicada pelo sitio do jornal O Estado de S. Paulo, 27-03-2011. Eis a entrevista.

A que atribui a redução dos acampamentos? Isso está ligado ao mercado de trabalho?

Sim. A realidade socioeconômica do País mudou. Houve um processo acentuado de geração de empregos nos últimos oito anos. A construção civil está bombando, mobilizando trabalhadores que costumo chamar, brincando, de primos pobres da cidade. O cara da construção é o ex-camponês, que, do ponto de vista da educação formal, está situado num grau menor que o da maior parte da sociedade, e que, até algum tempo atrás, era o mais interessado na volta ao campo, na reforma agrária. Pensava nisso como uma forma de sobrevivência.

Na sua avaliação, esse quadro é conjuntural ou veio para ficar?

Não sei até onde dura isso, porque economia é processo, ascenso e crise. O capitalismo ainda não saiu do período de crise internacional e é provável que o avanço brasileiro encontre limites uma hora dessa. Mas ainda tem potencial para crescer, na construção civil, na agricultura, tem muita terra para ser explorada, potencial em várias áreas que vão sustentar o crescimento econômico por algum tempo no Brasil. Isso vai influenciar as condições de trabalho e de emprego.

O Bolsa Família também dificulta a mobilização de pessoas para a ocupação de terras?

Muitas famílias encontram no programa um complemento de renda e a possibilidade de ir sobrevivendo voltar para a terra e sem ver a reforma agrária uma alternativa.

Essas mudanças representam o esvaziamento da bandeira da reforma?

Não. Esse é o terceiro e mais importante aspecto da questão sobre a qual estamos falando. A reforma agrária precisa de fato ser ressignificada, com um debate político amplo que envolva toda a sociedade. Se continuarmos com essa lógica de exportação de commodities, com o uso intensivo de agrotóxicos, em menos de 50 anos teremos contaminado todos nossos rios, lagos, terra. É o que desejamos? Queremos consumir alimentos contaminados? Se a sociedade responder sim, então não há espaço para reforma. Se disser não, precisamos rever o modelo agrícola atual.

Essa lógica à qual você se refere é a que garante saldos na balança comercial.

Evidentemente. A agricultura cumpre esse papel há muito tempo. No entanto, estamos exaurindo nossos recursos naturais e contaminando a água. Esse não é um debate dos sem-terra, mas da sociedade. Foi por isso que Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) puxou a Campanha da Fraternidade deste ano para o tema da contaminação do solo e da água. No segundo semestre nós queremos fazer em São Paulo um grande seminário para discutir a questão do agrotóxico e a reforma agrária.

O pequeno agricultor também usa agrotóxico.

Usa. Por isso falamos em mudança de modelo. Não estamos dizendo que somos os bonzinhos e bonitinhos da história. É preciso mudar toda a formação cultural. Todos os quadros técnicos que saem hoje das universidades foram formados dentro do pacote da chamada revolução verde: vão sempre recomendar o uso de veneno para a solução de qualquer problema. Dias atrás, durante uma reunião com o ministro Gilberto Carvalho (Secretaria Geral) eu disse a ele que precisamos mudar a formação universitária, criar quadros com mentalidade diferente. Se o Estado não pensar nisso, se Embrapa não mudar a direção da pesquisa tecnológica, se não fizermos esse debate político e de conscientização na sociedade, estamos fritos. As empresas vão continuar ganhando muito dinheiro e destruindo tudo.

Essa ênfase na questão ambiental não pode levar o MST a ser confundido com uma ONG? Isso não o distancia da perspectiva política?

Mas isso é altamente político. Porque implica uma mudança ampla, até na estrutura do poder. A lógica do capital nunca vai permitir isso, porque é a lógica do lucro, de produzir para ganhar e ganhar e ganhar… Quando a indústria automobilística vende dois milhões de carros, ela começa a pensar em vender dez milhões, em convencer cada pessoa a ter dois carros. É a lógica do sistema

Começamos a falar em mudança do sistema.

Sim. Mudança do sistema. Mudança da lógica. Até porque, se não mudarmos num curto espaço de tempo, teremos muitos problemas. Olhe as consequências que estamos assistindo ao nosso redor, as tragédias.

Não acha que poderia ser uma mudança dentro do capitalismo? O chamado capitalismo responsável proposto pela Marina Silva?

Não acredito. O capitalismo não resolve nosso problema, porque a essência dele é o lucro, a concorrência brutal, a exploração da força de trabalho e dos recursos da natureza. Se o capitalista pensa em mais lucro, a classe trabalhadora pensa em vender a força de trabalho pelo preço maior para comprar mais coisas também. Subjetivamente pensamos da mesma forma.

Essa forma de pensar a questão agrária de forma mais ampla surgiu agora?

Já no seu surgimento o MST tinha a visão de que para realizar a reforma agrária no Brasil seria preciso conjugar a luta pela terra com outras lutas na sociedade. A realização da reforma dependia de mudanças na estrutura de poder no País – porque se trata uma medida estrutural e estruturante contundente, destinada a alterar uma situação histórica secular.

A ação do MST nunca esteve restrita à luta pela terra?

A conquista de um assentamento é uma conquista parcial. É preciso desenvolver processos organizativos que avancem além da luta pela terra. A conquista de um lote não significa a resolução do problema da família, porque ela ainda necessita de crédito, casa, infraestrutura, estímulo. Por outro lado, a organização que agrega assentados e acampados precisa crescer, adquirir força, capacidade para levar adiante a proposta da reforma. É por isso que os assentamentos continuam vinculados ao MST. É por isso que investimos tanto na educação.

Vocês tem insistido muito na formação de professores, advogados, agrônomos economistas, entre outros profissionais, que sejam ligados ao movimento.

Para mudar uma sociedade, educação e cultura são fundamentais. Desde o início do MST nós investimos na  juventude, na formação de quadros e de lideranças.

Não correm o risco de adentrarem os grandes debates políticos e se esquecerem de suas bases?

Uma organização só existe para responder a determinadas necessidades de suas bases. Por isso o MST vai continuar fazendo mobilizações para atender assentados e acampados. Evidentemente, porém, não basta responder às necessidades mais prementes. É preciso fazer desse processo de luta um processo de politização.

Vão debater os agrotóxicos e ao mesmo tempo continuar mobilizando gente para ocupações de terra?

Sim. Queremos chamar a atenção da sociedade para o debate sobre o uso dos nossos recursos naturais e cuidar da base. Tem gente querendo terra? Ir para a luta? Então vamos organizar, fazer ocupação, mas sem a ilusão, insisto, de que essas ocupações vão resolver o problema da reforma agrária.

O número de famílias assentadas e ligadas ao movimento tende a aumentar cada vez mais, o que significa mais trabalho para vocês.

Temos hoje, em bases do MST, mais de 300 mil famílias. A maioria vive de forma precária, o que significa que precisamos lutar para sejam instaladas agroindústrias nos assentamentos, para agregar valor aos produtos e aumentar a renda. Precisamos avançar na área de habitação, de infraestrutura, mudar a lógica de produção. A meta para o próximo período é procurar vincular os assentamentos às comunidades, às cidades onde estão instalados, buscando uma interação e o debate sobre o tipo de produção que se deseja ali. Queremos politizar esse tema e construir alianças na perspectiva do poder popular.Temos assentamentos espalhados por mais de mil municípios.

A presidente Dilma Rousseff não tem falado em novos assentamentos. A ênfase agora parece ser na melhoria dos que já existem.

Isso está de acordo com o que pensamos. Temos assentamentos precários em todo o Brasil. Não se trata de um problema das famílias, mas da falta de investimento. O governo contabiliza como beneficiárias da reforma agrária pessoas que são jogadas em cima de uma terra pobre, exaurida, e em locais sem infraestrutura. A primeira tarefa seria recuperar o solo. O investimento nos assentamentos não implica, porém, em deixar de fazer desapropriações. São cem mil famílias acampadas. Algumas com cinco, sete, treze anos de acampamento.

Além do Bolsa Família, da elevação dos níveis de emprego, o MST também enfrenta o avanço do capitalismo no campo. Os investimentos ficam maiores, assim como a cobrança, da parte dos empresários, de segurança jurídica.

Isso é levado em conta, sem dúvida. Por que os estrangeiros estão comprando aqui? Porque temos terra boa, sol e água em abundância. Um pé de pinus demora quinze anos para chegar ao ponto de corte nos Países Baixos. Na Bahia o problema está resolvido em seis ou sete anos. O retorno do investimento é muito alto. As mesmas áreas que disputávamos para a reforma agrária estão sendo disputadas pelo agronegócio e o grande capital. Desde o congresso que realizamos em 2007 sabemos que a nossa grande disputa é com o agronegócio e o grande capital. Estamos perdendo. Eles avançam sobretudo com o apoio do governo que garante quase todas as obras de infraestrutura que necessitam.

Com tanto assentado, tanta negociação com o governo, investimento em escolas, o MST não corre o risco de ficar cada vez mais institucionalizado, petrificado?

A messe é grande e os operários são poucos. Sempre ocorre um processo de institucionalização em qualquer organização social. Mesmo que você não seja institucionalizado formalmente, o processo é meio natural. O importante é não perder o foco na base. Se um dia o MST perder de vista a questão da terra, então passa a ser ONG.

O MST não poderia virar um partido?

Não faria sentido. Temos aliados no PT , PSOL, PMDB, PDT, PSB, PC do B, PCB e outros. Nosso movimento é de luta pela reforma agrária e ele não pode perder essa característica. A transformação do MST num partido seria um erro e a nossa derrota.

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=41819

 

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