Tania Pacheco* e Cris Faustino**
No dia 1 de dezembro, o jornal O Povo, de Fortaleza, noticiava que o Procurador Raimundo Macêdo, da 6ª Câmara em Brasília, havia acatado representação do Ministério Público Federal contra um acordo firmado entre o Governo do Ceará e alguns indígenas, que representariam o povo Anacé. Pela negociação, os Anacé cederiam parte de suas terras, em processo de demarcação, para a construção da Refinaria Premium II, que integraria o Complexo do Pecém. O Procurador foi contundente na sua decisão: terras indígenas pertencem à União, e nem os Anacé, nem qualquer cidadão têm legitimidade para negociá-las.
O terceiro dia do II Seminário Brasileiro contra o Racismo Ambiental foi realizado, em 2009, em terra Anacé. Convivemos com eles, comemos da sua comida, visitamos seus espaços tradicionais. Paralelamente, tivemos também a possibilidade de ver, meio à parte das falas e debates realizados a céu aberto, mas sob a proteção das árvores sagradas para os índios, um grupo que nos olhava desconfiado. Haviam sido convencidos de que, melhor do que defender a demarcação, era vender suas terras e ir buscar, talvez, o “progresso” das cidades. É bem possível que alguns deles tenham sido os “representantes” da comunidade na assinatura do pseudo acordo…
Se os Anacé estão até segunda ordem protegidos pela sabedoria e senso de justiça do Procurador Raimundo Macêdo, o mesmo não pode ser dito a respeito de outros povos e comunidades tradicionais que, Brasil afora, estão sendo submetidos às mais diversas pressões, da mentira à ameaça ou, mesmo, à morte, para que abandonem suas terras e cedam seus territórios ancestrais para a luxúria do capital. Um dos mais belos recantos do mesmo estado, o Ceará, está sendo ameaçado, neste final de Governo Lula, de perder o que conseguiu após 30 anos de luta: a criação da Resex da Prainha do Canto Verde, no município de Beberibe.
A RESEX ameaçada pelas aventuras da especulação imobiliária foi criada por Lula em 5 de junho do ano passado. Enquanto a Associação dos Moradores da Prainha do Canto Verde comemorava a decretação da Reserva e dava os encaminhamos necessários para a sua consolidação – como a mobilização para da participação comunitária e a criação coletiva do Conselho Deliberativo -, e aguardava o Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU) que regulamentaria a posse da comunidade, uma tramoia era construída. Possuidor de uma casa na região, um empresário cearense, proprietário de uma rede de ensino (a Farias Brito), se cercava de rábulas bem pagos e provocava um processo de divisão na comunidade. Recorria a mentiras, como o discurso absurdo de que a RESEX significaria uma perda para a comunidade, e estabelecia práticas assistencialistas, com promessas de um posto de saúde (que é um direito da comunidade e um dever do Estado), doação de ambulância e distribuição de cestas básicas.
Segundo o Sr. Tales de Sá Cavalcante, com a Reserva os pescadores da Prainha estariam sendo esbulhados. Suas casas seriam tomadas, e eles deixariam de ser “proprietários”, perdendo tudo o que tinham, inclusive a possibilidade de acrescentar um cômodo ao imóvel ou construir ao lado uma casinha para um filho ou uma filha que eventualmente se casasse. Essa falácia foi aceita por parte da comunidade, e, após alguns meses da decretação da RESEX, era criada uma segunda Associação, apelidada de “Independente da Prainha do Canto Verde e Adjacências (AIMPCVA)”. O cargo de “Procurador” da nova “entidade” seria ocupado, curiosamente, por Paulo Lamarão, principal advogado do Sr. Tales!
Além de incitar os conflitos entre os moradores, o empresário utilizou de outras artimanhas já bastante conhecidas pelos defensores dos direitos coletivos, como a impetração de processos judiciários que questionavam a RESEX, a contratação de estudiosos inescrupulosos e a produção de matérias jornalísticas pagas, que a deslegitimavam. A própria academia se dividia. Enquanto o Professor Jeovah Meireles, da Universidade Federal do Ceará, fazia um diagnóstico emitindo parecer favorável à criação da Reserva e à vocação extrativista da comunidade, outros tinham atitudes opostas. Um estudo realizado pelo Professor Fábio Perdigão, da Universidade Estadual do Ceará (acusado pelo movimento ambientalista de emitir pareceres técnicos contrários aos interesses das comunidades tradicionais e em favor de empresas), concluía, a despeito de todos os pareceres, estudos e diagnósticos já realizados sobre a Prainha, que a comunidade não tinha vocação extrativista! Enquanto isso, matéria de capa na revista Poder Local afirmava que o empresário Tales de Sá “encapou a luta dos nativos” contra a RESEX, numa postura claramente tendenciosa e pseudo informativa.
O que o Sr. Tales de Sá Cavalcante não informava à comunidade, em meio às mentiras que proferia, era o fato de estar reivindicando judicialmente 315 hectares – o que corresponderia a mais da metade dos 581 hectares de terrenos de Marinha atribuídos à Resex – como de sua propriedade privada. Sua alegação remonta a uma série de irregularidades, que fazem parte da história de lutas dos moradores e moradoras da comunidade, que se autoidentificam como “Prainheiros”.
No início na década de 1970, o Sr. Antônio Sales Magalhães reivindicou para si 796 hectares das terras da comunidade, que na verdade sempre foram terras de Marinha. Em 1985, mesmo sem ter qualquer direito a ela, a área foi parcial e irregularmente vendida por ele para o Sr. Henrique Jorge, da imobiliária Henrique Jorge S.A., que pretendia construir na região condomínios e resorts turísticos. Com o apoio do Centro de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos (CDPDH), da arquidiocese de Fortaleza, a comunidade iniciou uma disputa judicial que se arrastou por 21 anos. Após percorrer todas as instâncias jurídicas, em 2006 o processo chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que julgou a favor da comunidade, decretando que as terras da Prainha pertenciam à União e desqualificando os documentos apresentados pelo Sr. Antonio Sales. A decisão parece ter sido ignorada pelo empresário Tales de Sá Cavalcante, que alega ter comprado mais da metade das terras da RESEX da Prainha exatamente do Sr. Antonio Sales Magalhães, o mesmo que perdeu o processo no STJ.
Antes mesmo da decisão do Tribunal, porém, a comunidade buscou uma estratégia que garantisse o território para si e para suas famílias. Em 2001, com o apoio do Ibama, solicitou ao Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais (CNPT) a abertura de um processo para criação da Reserva Extrativista. Como a questão da posse das terras ainda tramitava na justiça, naquele momento não foi possível incluir a parte continental do território da comunidade. Ela foi incluída, entretanto, assim que o STJ deu ganho de causa à comunidade. E isso aconteceu bem antes das comemorações do Dia Mundial do Meio Ambiente de 2009, o 5 de junho em que o Presidente Lula assinou a criação da RESEX.. Entretanto, o fato de a solicitação de inclusão da parte terrestre ter sido feita após a assinatura do documento inicial está sendo usada pelos rábulas contratados pelo Sr. Tales como alegação de fraude e de ilegitimidade do decreto Presidencial.
Como se isso não bastasse, o Sr. Tales vem ainda buscando intimidar quem apoia a comunidade da Prainha, chegando a tentar usar instituições públicas idôneas, como o Ministério Público Federal (MPF), para alcançar seus propósitos. Utilizando a “Associação Independente” por ele criada, cujo Procurador (vale lembrar) é seu advogado chefe no caso, entrou com uma representação no MPF contra as entidades, órgãos e pessoas que trabalham em prol da criação e implantação da RESEX.
Ironicamente, embora tenha como autora a “Associação Independente”, o texto da representação tem argumentos explicitamente fundados numa visão racista e discriminatória da comunidade. Na página 8, por exemplo, o advogado/Procurador alega que a comunidade não pode decidir sobre a RESEX, pois: “A população local é quase analfabeta, são ignorantes, são ‘índios’”! Quem sabe estava fazendo uma crítica às pessoas que se deixaram envolver pelas mentiras suas e de seu patrão!
Aqui cabe um parênteses. Lamentavelmente, o Sr. Tales e seu advogado/Procurador não são uma exceção nas práticas de Racismo Ambiental que caracterizam as ações de apropriação dos territórios pelos mais diversos grupos e projetos econômicos. Para o capital, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, como os Prainheiros do Canto Verde, não são dignos de decidir sobre suas vidas e de usufruir dos bens ambientais. Na lógica racista do mercado, as diversidades socioculturais dos povos e populações tradicionais são desqualificadas, enquanto os bens ambientais são encarados como meros instrumentos para a geração de lucro e concentração de riqueza e poder.
Para a comunidade do Canto Verde a questão se agravou, entretanto, nestas últimas semanas de mandato de Lula. Chamados para assinar o documento de regularização da posse – o CCDRU -, em Brasília, terça-feira última, os representantes da comunidade da Prainha do Canto Verde descobriram, na hora, que o documento restringia a Resex à parte marítima, deixando todo o território liberado para a sanha do Sr. Tales e outros como ele. Dignamente, recusaram-se a assiná-lo e, ante seus protestos, tiveram a promessa do Instituto Chico Mendes de que o documento seria revisto nos próximos dias.
Na defesa dos direitos humanos e combate ao racismo e às injustiças ambientais, entendemos que o pensamento e a atitude do procurador Raimundo Macêdo se aplica de forma perfeita à RESEX da Prainha do Canto Verde. E não só a ela, mas a tantos outros casos de conflitos, nos quais as vítimas da degradação socioambiental, desprovidas de informações e muitas vezes movidas por necessidades resultantes de ausências históricas, caem nas armadilhas do capital e vulnerabilizam seus próprios coletivos.
Esperamos, pois, que o Ministério do Meio Ambiente leve urgente o Contrato reformulado, garantindo as terras e as águas da comunidade para seu bem e usufruto comum, para que o Presidente da República o assine. E não termine seu mandato com a nódoa dessa injustiça contra a Prainha do Canto Verde e seus moradores.
* integrante do GT Combate ao Racismo Ambiental
** integrante da Coordenação Colegiada do GT Combate ao Racismo Ambiental
Não é de se estranhar as artimanhas daqueles que detêm o poder e que desejam a todo custo explorar e submeter o povo. Fiquei muito indignada com o artigo e desejo que a comunidade se fortaleça e mantenha a unidade no sentido de garantir seu espaço. Acredito que é importante que haja mais divulgação do conflito atual para que setores progressistas da sociedade possam apoiar e repudiar as práticas denunciadas no artigo.
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Inacreditável a ganancia e a imoralidade de pessoas como o Sr.(senhor?) Tales de Sá.Como uma pessoa de tal laia pode ter um colégio que se propõe a EDUCAR PARA O FUTURO, com os seus outdoors apregoando educação de qualidade?
Se fôssemos realemnete um povo politicamente esclarecido tirar[áimos nosoos filhos de tal colégio e picharíamos os seu muros contra sua atitude vergonhosa para com os povos indígenas.