A reportagem é de Giuliano Battiston, publicada no jornal Il Manifesto, 20-06-2010. A tradução é de Alessandra Gusatto.
Como se pode conciliar o nosso universalismo moral, que implica a paridade de estado moral de todos os seres humanos, com a tolerância e a docilidade pela pobreza global e o crescimento das desigualdades? E por que acabamos por adotar uma dupla moral, “impondo à ordem econômica global vínculos morais mais fracos respeito a qualquer ordem econômica nacional”? É em torno destas interrogações sobre a problemática assimetria de juízos que aplicamos no âmbito nacional e global, que o filósofo alemão Thomas Pogge, aluno crítico de John Ralws, articulou Pobreza mundial e direitos humanos. Responsabilidade e reformas internacionais, recém lançado pela Laterza (ed. Luigi Caranti, tradução de Daniele Botti, ca. 55 Euros, pg. 400).
Um texto, já amplamente discutido a nível internacional, movido por duas convicções fundamentais: de um lado que cada esquema institucional é injusto quando pressupostamente produz violações de direitos humanos que poderiam ser evitadas, do outro lado, que a atual ordem econômica mundial, estruturada de acordo com os interesses dos países ricos a alto consumo é extremamente injusta. Para modificar e “para aproximar a nossa ordem internacional aos nossos valores morais”, diz Thomas Pogge (que encontramos em Roma, na sede da Laterza), bastariam reformas constitucionais internacionais, modestas e realizáveis. Como na vez da criação de uma nova patente para os medicamentos essenciais, que autorizam ao titular da patente a ser financiado por fundos púplicos proporcionais aos efeitos da invenção sobre o Global Burden Disease (www.healthimpactfund.org), o peso global das doenças. Pois “aquilo que parece um projeto essêntrico e utópico será um modelo daquilo que a justiça exige”.
“A pobreza grave – escreve no seu livro – não é nenhuma novidade. “Novidade é o tamanho das desigualdades no mundo“, porque “enquanto a pobreza e a desnutrição são mais ou menos constantes, as desigualdades, e consequentemente evitar a pobreza piorou…”. Eis a entrevista.
É necessário explicar por que acha que a ordem mundial atual e as instituições que a regem estejam causando o crescimento das desigualdades?
Um dos principais fatores de crescimento das desigualdades está nas tendências da globalização que está fazendo com que os instrumentos e lugares de decisão estejam passando do nível nacional ao nível supranacional, onde o processo de decisão é impermeável aos interesses dos cidadãos normais, e pode ser influenciado somente por uma quantidade restrita de atores e agências, entre as quais os governos fortes e as grandes empresas. Trata-se de uma lógica que se autoalimenta, porque os ricos e os potentes se beneficiam das regras que de certo modo foram escritas por eles mesmos, se tornando sempre mais, enquanto que os pobres, ignorados e excluídos das discussões sobre as regras globais, vão sendo sempre mais marginalizados, acabando por não serem beneficiados pelo crescimento econômico. As estatísticas sobre a recente evolução das desigualdades nos dizem que 5% da população mundial tem a sua disposição uma porção de riqueza cada vez maior, cerca da metade do rendimento mundial, enquanto que a metade mais pobre detem menos do que 3%. Uma enorme discrepância que aumenta pois a minoria mais potente tem o controle oligárquico sobre as regras globais, mas também porque os dados efetivos não são muito conhecidos: a maior parte das pessoas tem medo de saber como estão mesmo as coisas, pois concluiriam que deve-se agir. Preferem, do contrário, evitar a controversia entre os próprios interesses materiais e os próprios deveres morais.
O senhor contesta não somente a idéia de que a ordem mundial atual não esteja causando a pobreza, mas também promove a tese confortante segundo a qual, nós cidadãos e governo das sociedades ricas, não somos responsáveis. Porque pensa que seja importante distinguir entre o dever positivo (ajudar aqueles que estão mal ou pior do que nós) e o dever negativo (não danificar indevidamente os outros com a nossa conduta)?
Se nos convencermos que a pobreza é uma questão de dever positivo, o dever de ajudar aqueles que necessitam, facilmente nos acontentaremos com aquilo que fizemos, até porque se torna complicado estabelecer aquilo que devemos e podemos fazer. Muito mais difícil é do contrário satisfazer o dever negativo, que brota do conhecimento de sermos nós a danificar os pobres, pois ganhamos com as regras globais injustas para enriquecermos as suas custas. Não estamos simplesmente ajudando pouco: mantendo as instituições globais injustas, desenhadas para nosso benefício, estamos mantendo um enorme déficit de direitos humanos nos países pobres. Temos portanto a responsabilidade, e somos parte do problema. Mas exatamente por isso poderemos nos tornar parte da solução. Os cidadãos dos países ricos deveriam sentir a responsabilidade por serem membros de países razoavelmente potentes. A Itália, por exemplo, tem um papel importante na União Europeia, que por sua vez é um dos atores econômicos mundiais mais influentes, capaz de moldar as regras globais. Os cidadãos italianos são responsáveis pela conduta do seu governo, e se deixam o governo agir de certa forma, são responsáveis. Depois de tudo, são eles que controlam o governo e tem a opção de escolher outro.
Entre os objetivos de seu trabalho há a formulação de um critério fundamental de justiça de base, que seja moralmente plausível e internacionalmente aceitável, e que funções como “núcleo universal de todos os critérios de justiça”, com o qual avaliar como as instituições tratam as pessoas. Por que defende que tal critério poderia ser “melhor formulado na linguagem dos direitos humanos”?
Gostemos ou não, nas discussões internacionais relacionadas a paz e a justiça nenhum outro código ou linguagem é assim tão reconhecido como válido e legítimo. Por si só, porém, tal linguagem não soluciona a dúvida relativa a qual sejam os direitos humanos efetivos e, sobretudo, a que deveres correspondem. Muitos falam de direitos, sem responsabilidade e deveres, são totalmente inúteis. Peguemos o direito a comida: na África metade da população não usufrui deste direito. Se não prestarmos atenção a responsabilidade, não podemos nos limitar a dizer que se trata de uma coisa errada. Por isso, estou a procura de instrumentos para apontar responsabilidades exatas que possam ser construidas sobre a base de um amplo consenso que existe sobre os direitos humanos: todas as regras, a nível global e nacional, deveriam ser definidas de modo tal que cada déficit ou desprezo dos direitos humanos, que viesse a ocorrer devido a definição de tais regras, deva ser evitado o mais possível. Em outros termos, se existem leis onde se possa prever que não satisfarão alguns direitos humanos, e se existem formulações alternativas a estas, então devemos adotar estas últimas. Neste caso, também manter leis, das quais alternativas sabemos poder reduzir o nível de comprimento dos direitos humanos constitui uma violação dos direitos humanos.
No pensamento e na realidade política contemporânea, escreve, é central “a idéia do Estado territorial autônomo, como modalidade de organização política dominante”. De acordo com este modelo caracterizado por uma soberania concentrada verticalmente em um só plano, o senhor propoe uma gradual reforma das instituições globais que leve a uma dispersão vertical da soberania. Por que devemos desejar este processo de unificação e decentralização, que reforce a união política além da autoridade estatal?
Uma primeira razão está relacionada a segurança: em um mundo no qual os Estados estão em competição, e temem que outros estados se tornem mais fortes militarmente e economicamente, o sistema é altamente instável, e implica a tendência de debilitar os outros, e em alguns casos de atacá-los por primeiro. Ainda, vivemos em um sistema no qual existem muitas externalidades negativas relacionadas a primeira: a tecnologia progride, e com ela crescem também os danos ambientais, que não mais repercutem somente nas suas fronteiras nacionais. Há necessidade, portanto, de organizar as nossas sociedades levando em consideração estas externalidades negativas, transformando os processos de decisão mais inclusivos. Uma necessidade evidente no caso da poluição, mas também importante em muitos outros setores, onde a colaboração e a criação de bens comuns assegurariam uma vida melhor e mais segura. A terceira razão é que cada unidade política corre o risco de ser “raptada” por qualquer elite, seja essa um grupo militar ou um círculo econômico.
A injustiça que viria a acontecer poderia ser facilmente evitada onde existem esquemas hierárquicos em mais níveis, constituido por unidades completamente organizadas que resistem as imposições destas elites, e que em linha geral são capazes de se controlarem, de denunciar respectivos abusos, de levá-los públicos. Por outro lado, as tendências de unificação e decentralização já estão ocorrendo, também se muitas vezes ocorram de forma errada, levando por exemplo a instituições de nível global opacas, privas de legitimidade democrática, fechadas e assim por diante. A tendência de dividir o poder no alto já está presente. Mas também há a tendência de dividí-lo na parte inferior. Duas tendências que, hoje, se ligam estreitamente: se os Estados nação se tornam mais fracos, e se quem os controla tem menos poder, é porque boa parte do poder passou para outro lugar, ficando assim ainda mais fácil consentir autonomias locais. No âmbito da União Europeia, por exemplo, não é assim relevante que a Bélgica continue sendo um Estado único ou se divida, enquanto em um sistema no qual o poder esteja concentrado em nível de Estado, a diferença seja enorme. Creio que hoje, a tarefa não seja tanto aquela de acelerar esta “decentralização de segunda ordem”, mas sim fazer com que os novos poderes supranacionais estejam abertos ao juízo público, e que estejam basados em processos democráticos.
Uma trajetória de estudos na linha de Kant e Rawls
Nascido em Hamburgo em 1953, Thomas Pogge se formou em Sociologia na sua cidade natal, para depois se mudar para Harvard, onde fez o seu doutorado com John Rawls. Já professor de Ciências Políticas na Columbia University, hoje ensina Filosofia e Relações Exteriores em Yale, além de ser o diretor do Center for the Study of the Mind na Universidade de Oslo. Autor de livros dedicados a Kant e John Ralws, entre os quais vale relembrar “Kant, Ralws and Global Justice” (tema de seu doutorado), “Realizing Ralws” (Cornell University Press, 1989) e “John Ralws” (C. H. Beck Verlag, 1994), chamou a atenção no debate internacional com a publicação, em 2002, da primeira edição inglesa de “Probeza mundial e direitos humanos. Responsabilidade e reformas internacionais” (lançado na Itália pela editora Laterza nos primeiros meses deste ano), ao qual deu seqüência em 2010 com “Politics as Usual: What Lies behind the Pro-Poor Rhetoric” (Polity Press).
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=33956