O crescimento cruel do Brasil da mineração

Carlos Bittencourt, Padre Dario Bossi e Rodrigo Santos
da Democracia Viva

A economia brasileira vem passando por uma fase de expansão acentuada desde o início dos anos 2000. As taxas médias de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) entre os períodos 1995-2002 e 2003-2010 de 2,29% e 4,01%, respectivamente, demonstram essa tendência. Esse movimento possui tanto causas gerais quanto específicas, que convergem para um ponto central: a atividade extrativa mineral.

O caráter fundamentalmente export-oriented (voltado para exportação) da atual expansão econômica nacional nos obriga a lançar um olhar sobre o desenvolvimento da economia global. O crescimento chinês, que pode ser caracterizado como uma “revolução industrial”, um processo de articulação entre o setor secundário e o mercado de consumo internos, vem por suas dimensões condicionando as trajetórias ascendentes dos demais vetores de crescimento da economia global.

Um dos elementos característicos  dos chamados BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) é a importância da esfera material no processo de adição de valor à economia. Na China, essa esfera é preponderante (56,86% de todo o valor adicionado). No caso brasileiro, os segmentos materiais atingem 32,70% de todo o valor adicionado e são dependentes dos mercados importadores de commodities primárias, em especial o chinês.

A atual trajetória econômica brasileira é resultado de continuidades e inovações no âmbito interno. O crescimento atual é parcialmente fruto de estratégias prévias de integração econômica externa, em prática desde os anos 1990, via a competitividade de setores econômicos dotados de vantagens comparativas. O fim do “ciclo ideológico do desenvolvimentismo”, na definição de Ignacio Godinho Delgado, deu origem a uma dissociação crescente entre os fins das políticas macroeconômica e industrial. Uma obsessão pela estabilidade, por meio das taxas de juros e cambial, submeteu a política industrial a uma diretriz seletiva e horizontal.

No entanto, a partir de 2003, o país passou a ensaiar a retomada de estratégias industriais verticais ou setoriais, ainda que condicionadas pela hegemonia da política macroeconômica. O recente crescimento deve ser interpretado também a partir do surgimento de um novo ciclo ideológico, o do neodesenvolvimentismo, no qual admite-se a coexistência e mesmo a subordinação ao ciclo neoliberal.

Estabilidade e simplificação

A estabilidade macroeconômica permanece, portanto, como a pedra de toque do modelo econômico nacional e explica a busca obsessiva pelo equilíbrio fiscal. Na prática, a meta é a obtenção de superávits primários, com vistas à administração do serviço da dívida, em detrimento das chamadas “despesas de custeio”, em especial os gastos sociais.

Mais importante, o referido modelo centra-se no equilíbrio do balanço de pagamentos. Esse dispositivo de registro da contabilidade nacional é composto por duas contas: a de transações correntes e a capital e financeira. A primeira delas diz respeito às informações sobre comércio exterior (balança comercial),  sobre serviços, rendas e transferências unilaterais correntes. Considerando o caráter historicamente deficitário da balança de transações correntes e a busca por superávits, a balança comercial passou a ser utilizada para reduzir a pressão sobre a conta capital e financeira a partir dos anos 1980.

A pressão dos credores internacionais no início da década de 80, a chamada década perdida, constituiu o elemento-chave para a mudança de uma posição a favor do equilíbrio da balança comercial para a obsessão por superávits nominais contínuos e crescentes. Reverteu-se características do ciclo ideológico do desenvolvimentismo e deu-se impulso a uma dependência externa profunda.

Em detrimento de uma economia diversificada e integrada, centrada no dinamismo do setor secundário, observa-se um movimento de insulamento de setores econômicos e redes de produção de alta competitividade, intensivos em recursos naturais, e o quase desaparecimento de outros segumentos. O eixo desse processo de simplificação da economia nacional são as commodities primárias, sob a liderança das novas “multinacionais brasileiras”.

Reprimarização

A chamada reprimarização ou especialização reversa, tese Fernanda de Negri e Gustavo Varela, é a expressão chave da dependência externa da economia nacional. E a atividade extrativa mineral é o principal motor desse fenômeno. Em 2009, apenas a indústria extrativa mineral correspondeu a cerca de 20% (US$ 30,83 bilhões) das exportações brasileiras (US$ 152,99 bilhões). Nesse setor, é o segmento de bens primários que se destaca. A participação relativa dos minerais metálicos foi bem maior que a dos outros minerais. O minério de ferro respondeu por 70,62% da exportação de metálicos, atingindo o montante de US$ 19,60 bilhões.

A validade da tese da especialização reversa não diz respeito apenas à pauta exportadora. Apesar de recente, o processo afeta diretamente a composição do setor secundário, assim como a qualidade da sua participação no PIB. Enquanto a construção civil, a produção e a distribuição de eletricidade, gás, água, esgoto e limpeza urbana mantiveram sua participação constante entre 2000 e 2011, houve uma ascensão importante da indústria extrativa mineral, que ampliou a participação no produto nacional de 1,6% para 4,1%. Não coincidentemente, a indústria da transformação decresceu em termos relativos de 17,2% para 14,6%.

O Brasil, dessa maneira, se encontra em posição singular para explorar a demanda por commodities da revolução industrial chinesa. O país possui uma infraestrutura voltada para a ampliação de seus saldos comerciais, “construiu” um setor privado produtor de bens minerais e tem incentivado fortemente suas “multinacionais”. A convergência de dinâmicas globais e nacionais levou a uma situação favorável à reprimarização, cujo eixo é a indústria extrativa mineral, esteio da balança comercial e, indiretamente, do balanço de pagamentos e da política macroeconômica.

O símbolo maior desse processo é o minério de ferro. As commodities parecem marcar o ressurgimento da dependência da economia nacional em relação a um novo centro hegemônico. Resta saber até quando esas condições excepcionalmente favoráveis podem se manter, e, mais importante, quais serão os custos sociais e ambientais dessa estratégia.

Impactos socioambientais

Para além da discussão macroeconômica, a indústria extrativa negocia, mercantiliza, especula com um recurso natural, não renovável e finito, um bem comum da humanidade. A atividade implica num impacto territorial forte, tanto como parte da extração mineral e do processamento primário, como por conta da estrutura logística necessária para a produção e o escoamento. O ritmo crescente e insustentável de extração e o crescimento descontrolado dos investimentos em infraestrutura tornam o ciclo da mineração e siderurgia incongruente com o desenvolvimento efetivo dos territórios e das suas comunidades.

A mineração e a elaboração primária dos recursos minerais são hoje um dos principais responsáveis pelo crescimento da demanda energética do país. A Vale S.A., por exemplo, possui 9% de participação na Usina Hidrelétrica de Belo Monte, cuja construção, marco do desenvolvimento atual, afeta a biodiversidade e as comunidades indígenas da curva grande do Rio Xingu. Além disso, possui participações acionárias ou controla outras nove usinas hidrelétricas e quatro centrais hidrelétricas no Brasil, além de outros projetos no exterior. As tragédias sociais e ambientais que essas atividades e empreendimentos representam não são consideradas nos planos do Estado ou das empresas.

Na mesma proporção em que se expandem as minas, siderúrgicas, estradas de ferro e portos, aumentam as denúncias de violação de direitos humanos, de impactos ambientais e de deterioração de condições de vida. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2010 foram registrados 27 conflitos pela terra e 19 pelo acesso à água, todos envolvendo a mineração. Há também denúncias de trabalho escravo em atividades ligadas à indústria extrativa mineral. Em Parauapebas (PA), local da mais intensa exploração de minério de ferro no mundo, a grande quantidade de reclamações à Justiça do Trabalho levou à criação de uma nova vara. Em volta da mina de Carajás, muitas comunidades rurais são expulsas pela duplicação que a Vale faz do sistema ferroviário.

Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale produziu em 2012 um relatório em que sistematiza de forma consistente dados sobre os impactos socioambientais provocados pela empresa mineradora em 2010. Destacam-se, por exemplo, 11 trabalhadores mortos em acidentes, 175 mortes ou lesões graves por acidentes nas ferrovias em concessão, 726 milhões de toneladas de resíduos minerometalúrgicos gerados.

Por um debate público

Falta no Brasil hoje um debate de fato público, para além de Estado e empresas, sobre a indústria extrativa mineral. Um debate que inclua os atingidos por tais empreendimentos, pesquisadores e entidades dedicadas ao tema.

Há um silêncio induzido e preocupante sobre a proposta do novo Código da Mineração. A qualidade do debate sobre esse novo marco assemelha-se a da aprovação do código em vigência, durante a ditadura, em 1967. O Estado brasileiro parece preocupado apenas em discutir royalties e em garantir o Plano Nacional de Mineração 2030. Esse plano prevê que o Brasil passará a extrair 795 milhões de toneladas de minério de ferro em 2022 e 1,098 bilhão em 2030. O patamar atual é 460 milhões.

Não faltam atores sociais para fazer um debate público sobre o tema no Brasil. A Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale há três anos pesquisa os impactos provocados por essa mineradora em vários países do mundo, organiza resistência e faz proposições. Movimentos sociais, ambientais, sindicatos, pastorais e pesquisadores também têm se articulado no país. Exemplos de organizações são a rede Justiça nos Trilhos, na região Norte, e o Movimento Pelas Serras e Águas de Minas (MovSAM), no Sudeste. Além disso, há iniciativas que buscam monitorar essas indústrias e as políticas públicas sobre o tema.

Uma proposta que procura romper o bloqueio ao debate público é a criação do Fundo Social e Comunitário da Mineração. O objetivo seria garantir que parte da riqueza gerada com a mineração permaneça nas comunidades impactadas. O fundo deveria ser gerido pelas comunidades, para que elas possam reconstruir os seus laços de maneira independente e diversificar a economia local. Em maio último, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados discutiu a proposta em audiência pública em Brasília e definiu encaminhamentos para contribuir na sua viabilização.

Chegou a hora da participação cidadã no tema da mineração. A instituição de um novo Código da Mineração constitui uma oportunidade histórica para garantir às populações atingidas ou ameaçadas pela mineração o direito de decidir sobre o seu futuro e a gestão de seus territórios. O novo código será também ocasião para reparar os erros passados e construir um futuro mais promissor. Uma oportunidade para abandonarmos a lógica da extração máxima a custos mínimos, em que os ganhos são privados, e os prejuízos sociais e ambientais, de todos.

O crescimento cruel do Brasil da mineração

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