Ao impor sigilo sobre políticas públicas essenciais, governo paulista pretende impedir sociedade de avaliar o que não vê. Lógica é idêntica à adotada pelos governos pós-1964
Por Flávio Siqueira Jr – Outras Palavras
Concebia na década de 1970, uma das teorias de análise de políticas públicas mostra que as soluções encontradas pelos tomadores de decisão não necessariamente guardam relação com o problema apresentado. Esse modelo teórico foi chamado de “garbage can” ou lata de lixo, pois mostra que as soluções não implementadas são jogadas no lixo; mas tempos depois, diante de novos problemas, os tomadores de decisão reviram a lata de lixo para encontrar aquela proposta pronta e aplicá-la ao novo problema. Ou seja, haverá sempre uma solução pronta esperando a oportunidade de ser usada.
No estudo das políticas públicas existem outras teorias que tentam compreender como um problema entra na agenda de prioridades de um governo e como são formuladas e implementadas políticas que resolvem esses problemas. Porém, diante da sistemática decretação de sigilo de informações por parte dos governantes, no qual vem se destacando o governo do estado de São Paulo, é possível imaginar como os teóricos teriam trabalho para analisar o processo decisório desse tipo de governo.
Outro ponto curioso é que a decretação de sigilo de informações é fundamentada na Lei nº 12.527 de 2011, que traz, curiosamente, a ideia de que a publicidade é a regra e o sigilo, a exceção. Essa lei foi muito festejada por contribuir para o rompimento dos laços que ainda temos com os tempos sombrios da ditadura. Porém, a decretação de sigilo de questões essenciais para a sociedade é a água no chope de quem acha que lei modifica cultura.
Como justificar que informações de assuntos-chave como como violência policial, distribuição de recursos hídricos e sistema prisional possam ser classificadas como sigilosas por 25, 50 ou 100 anos?
A cada 3 horas uma pessoa é morta pela polícia no Brasil. Além disso, 358 policiais foram mortos em serviço somente no ano de 2014. Somente nos primeiros meses de 2015, a PM paulista matou 500 pessoas. Sua brutalidade também é clara em manifestações populares, através de dispersões violentas, agressão e intimidação de manifestantes, prisões arbitrárias, investidas contra imprensa e o uso abusivo de armas menos letais.
A população de São Paulo sofre com a maior crise hídrica da história e, apesar dela estar prevista há mais de dez anos, não foram adotadas políticas efetivas para evitar a falta de água. A Sabesp, empresa que deve gerir os recursos hídricos do estado, tem ações na bolsa de Nova Iorque, faturamento anual na casa dos R$ 10 bilhões, lucro líquido em torno de R$ 2 bilhões e distribui anualmente R$ 500 milhões a seus acionistas. Esse sucesso de mercado não refletiu no serviço prestado à população. Exigiu que o então candidato à reeleição ao governo de São Paulo dissesse que não faltaria água, ainda que ela já estivesse faltando.
No último ano, São Paulo foi o único estado que não forneceu dados para o levantamento nacional de informações penitenciárias promovido pelo Departamento Penitenciário Nacional, além de sistematicamente proibir o ingresso de jornalistas, pesquisadores e entidades que possam denunciar as graves violações de direito que ocorrem dentro do cárcere. De quebra, São Paulo é – disparado – o estado com mais pessoas dentro de prisões, o que impulsiona o aumento do nível de encarceramento no país e contribui substancialmente para que o Brasil ocupe a 4º posição entre os países que mais encarceram no mundo.
Como a sociedade pode discutir e participar da construção de políticas públicas que buscam solucionar esses problemas estruturais sem ter sequer informação sobre eles? Quanto a polícia militar gasta em gás lacrimogêneo para reprimir estudantes? Como é priorizada a distribuição de água em face da escassez? O que acontece dentro das prisões?
A disponibilidade de informações é o primeiro passo para o exercício do controle popular da coisa pública e expressão direta da democracia. Quando um governante impõe o sigilo como política pública, adota a premissa de que não há como a sociedade se preocupar com aquilo que não pode ver. Essa premissa era um dos pilares de sustentação do regime militar e essa forma de fazer política supostamente foi jogada no lixo em 1985.
Pena que essa lata de lixo ainda esteja à disposição e que essas soluções não sejam biodegradáveis.