Por Julianna Malerba, em Brasil em 5
Está prestes a ser votado na Câmara Federal um novo código mineral para o país. O projeto foi enviado ao Congresso pelo Executivo em 2013 e, desde então, a comissão parlamentar responsável pela análise da proposta já elaborou três relatórios substitutivos ao projeto de lei. A cada nova versão tem se ampliado o caráter liberalizante da proposta à custa de direitos sociais e ambientais, atendendo notadamente aos interesses de quem financiou a campanha do relator e de boa parte dos parlamentares que integram a referida comissão.
Foram restringidas, por exemplo, as condições que o governo propunha para outorga de título e simplificados os regimes de concessão, diminuindo a capacidade do Estado em definir quais minerais e áreas devem ser prioritariamente explorados/as. Também foram incluídos artigos que ampliam as garantias de acesso à terra e água às mineradoras, a exemplo do art. 46, que afirma seu direito à utilização das águas necessárias para as operações da concessão, e do art. 51, que atribui à Agência Nacional de Mineração (que deverá ser criada pela nova lei) a prerrogativa de desapropriar imóveis em prol das atividades minerárias.
Mas a clara intenção de impor a mineração e sua importância acima de outras atividades socioprodutivas se expressa, sobremaneira, em outros artigos que visam neutralizar os efeitos de leis e políticas que, ao garantir direitos, criam restrições à atividade mineral.
É o caso do artigo 119, que estabelece a necessidade de anuência da Agência Nacional de Mineração para a criação de qualquer atividade que cause impedimento à mineração (o que seguramente incluirá a criação de áreas destinadas à tutela de interesses, tais como unidades de conservação, terras indígenas, territórios quilombolas). E também do artigo 136, que permite a exploração de recursos naturais nas unidades de conservação de uso sustentável. Embora algumas unidades de conservação de uso sustentável permitam esse tipo de atividade, nas Reservas Extrativistas (RESEX) e nas Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), que abrigam populações extrativistas, essa atividade atualmente não é permitida.
A inclusão desses artigos evidencia justamente que o novo código se inscreve em um processo em curso de ataque a direitos que hoje estão na mira dos setores conservadores que hegemonizam o Congresso. Refiro-me especialmente aos direitos à terra e território que povos e comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas, ribeirinhos e diversos grupos camponeses que mantêm práticas coletivas de uso da terra e de seus recursos) conquistaram frente ao processo de desterritorialização e invisibilidade a que foram historicamente submetidos. Para assegurar tais direitos foram criados instrumentos de regularização fundiária e de conservação ambiental – a exemplo das RESEX e das RDS – que garantem a posse coletiva das terras, protegendo-as da alienação e, em alguns casos, de atividades intensivas no uso da água e do solo (a exemplo da mineração em larga escala), como no caso dessas unidades de conservação.
As terras comunitárias, como já mencionei em artigo anterior, representam, em algumas regiões, as áreas mais extensas de biodiversidade e os grupos que nelas vivem são reconhecidamente – segundo a própria lei que lhes assegura a permanência – responsáveis historicamente pela conservação desses ecossistemas. Uma vez que a Constituição estabelece que as jazidas e demais recursos minerais constituem propriedade distinta do solo e pertencem à União, o reconhecimento de direitos territoriais a esses grupos pode, em alguns casos, não ser suficiente para impedir que o seu subsolo seja concedido. Mas o reconhecimento da especificidade de suas territorialidades pelas próprias leis que lhes asseguram direito a terra é, no plano político e argumentativo, um instrumento poderoso para contestar a imposição da mineração sobre seus projetos socioculturais e produtivos. Consequentemente, também contribui para colocar em debate qual a centralidade deve ter na economia brasileira uma atividade marcada pela exportação primária de recursos naturais, pela baixíssima arrecadação de impostos e tributos (vide nota técnica recentemente publicada pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos) e por impactos socioambientais expressivos. Isso explica porque o ataque a esses direitos é central em uma proposta de lei tão liberalizante.