Sob o governo Dilma, a Funai foi reduzida e levada à informalidade, a demarcação de terras indígenas é a menor desde a redemocratização e o Congresso e STF impõem retrocessos aos direitos indígenas
por Marcelo Pellegrini — CartaCapital
Mais de 1500 lideranças indígenas de todo o Brasil ocuparam as ruas e a agenda do Poder em Brasília, entre os dias 13 e 16 de abril. Pintados com urucum e empunhando arcos e chocalhos, os índios organizaram protestos pacíficos e pressionaram por encontros com as principais autoridades brasileiras, como o vice-presidente, Michel Temer, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
A mobilização impressiona por seu tamanho e organização. Desde a redemocratização, os 817 mil índios brasileiros não têm um representante no Congresso. O último parlamentar indígena foi o deputado federal Mário Juruna, eleito em 1983. Sem representação, os índios não possuem poder institucional para contrapor os interesses da bancada de parlamentares ruralistas, grupo que disputa, na Justiça ou nas armas, terras que os índios reclamam para si.
Na última eleição, a bancada ruralista cresceu e já conta comcerca de 250 deputados e 16 senadores, segundo a estimativa da Frente Parlamentar da Agropecuária. Com a eleição do Congresso mais conservador desde a redemocratização e o aprofundamento da crise econômica, os direitos indígenas têm sofrido graves ameaças de retrocesso. Na Câmara Federal, deputados reativaram a Comissão Especial que estuda aProposta de Emenda Constitucional (PEC) 215. Se aprovada, a proposta retirará a exclusividade do Executivo em decidir sobre as demarcações e compartilhará esse poder também com o Congresso. Capitaneada pela bancada ruralista, a PEC 215 é interpretada por lideranças indígenas como um artifício para emperrar a já lenta demarcação de terras indígenas.
Atualmente, existem 230 terras indígenas em processo de reconhecimento oficial pelo Estado, segundo dados do Instituto Socioambiental. Embora, o número ainda seja elevado, a maior parte das terras indígenas – cerca de 70% – já foram reconhecidas. Por isso, o processo é considerado em “fase terminal”, pelo ex-presidente da Funai Marcio Santilli. O problema é que as áreas restantes são justamente as de conflito. “Muitas vezes, o reconhecimento de terras indígenas incide sobre áreas tituladas para terceiros pelo próprio Poder Público”, afirma Santilli. Os terrenos a que Santilli se refere são terras públicas, em território indígena, que foram doadas a posseiros durante a ditadura como parte da reforma agrária ou do projeto “ocupar para não perder” implantado na Amazônia.
Há décadas estes processos estão parados na Justiça brasileira, o que aumenta a ansiedade e a possibilidade de conflito. A solução para esse impasse, argumenta Santilli, poderia ser acelerada caso a Presidência optasse por acordos compensatórios entre os índios e os assentados, em vez de judicializar o conflito. “Fica claro que só o Poder Público pode resolver um problema que ele próprio gerou no passado”, diz.
No entanto, nada sinaliza que a Presidência opte por essa via, pelo contrário. No momento, há 21 terras indígenas que aguardam há anos apenas a assinatura da presidenta Dilma Rousseff para serem homologadas. Outros 12 processos, que não possuem nenhum impedimento administrativo ou judicial, esperam por portarias declaratórias do Ministério da Justiça. Não há, porém, prazo para que isso aconteça. “Os processos precisam ser retomados, porque a situação é muito ruim em todo o país. Em Mato Grosso do Sul vivemos sob constante violência, o povo na beira da estrada e os assassinatos todos os dias. Situação parecida acontece no sul e no nordeste do País e na Amazônia, as terras indígenas sofrem graves situações de invasão, de exploração de madeira e minério”, relata Sonia Guajajara, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Em reunião com lideranças indígenas, na quinta-feira 16, o vice-presidente Michel Temer disse desconhecer esses processos. “Vou falar com a presidente Dilma, não estou sabendo desses processos paralisados, mas vou dizer que eu os recebi, para que, se for o caso, dar sequência a essas demarcações”, disse.
Enquanto a Presidência não age, o Judiciário decide sobre os conflitos – e nem sempre a favor dos índios. Em outubro, com votos de Celso de Mello, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia, a 2ª turma do STF (da qual fazem parte também Teori Zavascki e Dias Toffoli) decidiu pela anulação de duas portarias declaratórias de terras tradicionalmente ocupadas pelos povos Guarani-Kaiowá e Terena, no Mato Grosso do Sul, e Canela-Apãnjekra, no Maranhão. No entendimento dos juízes, a Constituição é o “marco temporal” que condiciona o direito indígena à ocupação do território. Ou seja, os índios que não ocupavam a área reclamada em 1988 não têm direito à terra.
“Isso é uma decisão absurda que não leva em conta a história de conflitos no País”, afirma a liderança indígena Lindomar Terena. “Como poderíamos estar na terra em 1988 se expulsaram a gente e nos mandaram para as reservas?”, indaga. As decisões da 2ª turma ainda precisam ser confirmadas pelo plenário do STF. Na quarta-feira 15, o ministro do STF Dias Toffoli disse que o Judiciário não é o melhor caminho para solucionar problemas como esse. “Na Justiça você não tem meio termo, ou ganha um ou ganha outro, o que não resolve o conflito. O ideal é sempre que o Estado intervenha criando uma solução que seja arbitrada”, afirmou.
A frustração dos índios com governo tem crescido porque até o momento pouco do que Dilma prometeu em campanha foi cumprido. Em outubro de 2014, Dilma divulgou a Carta aos Povos Indígenas do Brasil, na qual reafirmava seu compromisso com demarcação de terras, com saúde e educação indígenas. O documento foi recebido pelos povos indígenas como um pedido de “segunda chance” do governo Dilma, que é o governo que menos demarcou terras desde a redemocratização. No entanto, desde então a situação indígena só pirou.
Enfraquecimento da Funai
A Fundação Nacional do Índio (Funai), responsável por proteger e promover os direitos dessa população, viu seu orçamento minguar de 174 milhões de reais, em 2013, para 154 milhões em 2014. E nada indica que o órgão esteja livre de mais cortes em um ano de ajuste fiscal. Além disso, a Funai vive uma condição de informalidade institucional no governo Dilma. Desde 2010, quando Dilma assumiu o primeiro mandato, o número de funcionários permanentes da Funai diminui de 2.396 para 2.238 e o órgão está sendo presidido em condição de interinidade há 22 meses, algo sem precedentes na história do órgão.
O governo Dilma também carrega a marca de ser o governo com a menor demarcação de terras indígenas desde a redemocratização, o que é considerado “uma inflexão histórica” pelo ex-presidente da Funai, Marcio Santilli. No primeiro mandato da petista, apenas 10 terras foram declaradas e 11 homologadas. No governo Lula, esse número era de 51 e 21, respectivamente.
No âmbito da saúde, o Ministério da Saúde se apressa para enviar ao Congresso a proposta de criação do Instituto de Saúde Indígena (INSI). A proposta conta com a oposição do Ministério Público Federal e de lideranças indígenas que vêm o projeto como uma privatização da saúde indígena.
Por isso, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) entregou ao ministro da Secretaria Geral da Presidência da República, Miguel Rosseto, na quarta-feira 15, uma carta endereçada à presidente Dilma, na qual exige o cumprimento dos compromissos de campanha e pede por “nenhum direito a menos, nenhum passo atrás, só mais direitos e só o caminho à frente”.
Congresso
Ainda na quarta-feira 15, lideranças se encontraram com o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). A PEC 215 dominou o encontro em que Cunha se comprometeu a não usar a prerrogativa presidencial de levar a proposta para votação no plenário. Ou seja, garantiu que não há pressa para votá-la.
No entanto, Cunha não inspirou confiança. “Já se passaram quase 30 anos da promulgação da Constituição. Na época determinaram que em cinco anos todas as terras indígenas deveriam ter sido demarcadas. Esse prazo não foi respeitado e nem a Constituição está sendo. A própria casa que a criou quer desfazê-la. É uma vergonha”, disse o cacique Nailton Pataxó Hã-hã-hãe a Cunha, lembrando que Cunha se filiou à Frente Parlamentar da Agropecuária dois dias antes da criação da Comissão Especial da PEC 215.
A PEC 215, contudo, não é a única preocupação indígena. Tramitam no Congresso, um projeto de lei (PL) e um projeto de lei complementar (PLP), com teor semelhante, que visam reduzir os direitos indígenas em prol de interesses da mineração e do agronegócio. O Projeto de Lei 1610/96, de autoria do senador Romero Jucá (PMDB-RR), pretende “regulamentar” a mineração em terras indígenas, enquanto o PLP 227 cria exceções ao direito de uso exclusivo dos indígenas das terras tradicionais, em caso de relevante interesse público da União.
O avanço do lobby do setor primário (agronegócio e mineração) no Congresso é um reflexo da economia brasileira, segundo Marcio Santilli. “[O lobby] está ligado com o processo econômico do País, que também passa por um retrocesso do ponto de vista histórico. A indústria se retrai, o setor de serviços está estagnado e o setor primário, com a mineração e o agronegócio, avança. É como se estivéssemos retornando a um período anterior ao Getúlio Vargas e isso influencia na representação política desses setores e no poder de pressão que eles têm sobre o Poder Público”, afirma.
A Funai foi procurada, mas não respondeu as perguntas até a publicação desta reportagem.
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Foto: Índios apontam flechas para o Palácio do Planalto em protesto contra o retrocesso dos direitos indígenas – Lula Marques/ Fotos Públicas