As Pernambucanas, uma das maiores varejistas do país, são multadas por ter fornecedores que empregam bolivianos em condições similares à escravidão
Quando os auditores do Ministério do Trabalho entraram na casa de paredes descascadas num bairro residencial da capital paulista, parecia improvável que, dali, sairiam peças costuradas para as Pernambucanas. Não fossem as etiquetas da loja coladas aos casacos, seria difícil acreditar que a empresa, cujo faturamento foi de R$ 4,1 bilhões em 2009, pagava 20 centavos por peça a imigrantes bolivianos que costuravam das 8 da manhã às 10 da noite. Para abastecer a terceira maior rede varejista em vestuário do país, os 16 trabalhadores suavam em dois cômodos sem janelas de 6 metros quadrados cada um. O ar era quente, havia fios elétricos pendurados do teto e sacos de roupa misturados a sacos de batata no chão. Costurando casacos da Argonaut, marca criada pelas Pernambucanas para os jovens, havia dois menores de idade e dois jovens que completaram 18 anos na oficina. Três crianças, filhas dos trabalhadores, circulavam entre as máquinas.
Como consequência dessa operação, as Pernambucanas foram autuadas, na semana passada, pela acusação de explorar, em sua cadeia produtiva, trabalho análogo ao escravo (crime que pode ser punido, segundo o Código Penal, com multa e reclusão de dois a oito anos). A empresa recebeu multa de R$ 2,2 milhões. Por meio de sua assessoria, emitiu uma nota em que afirma: “A Pernambucanas não produz, ela compra produtos no mercado e os revende no varejo”. É verdade que as Pernambucanas não contrataram os bolivianos diretamente. Eles trabalhavam para a Dorbyn, uma confecção intermediária que recebia as encomendas das Pernambucanas e levava as peças-piloto para a oficina. Fábio Khouri, um dos diretores da Dorbyn, disse que desconhecia as condições de trabalho na oficina. Um gerente da confecção, porém, ia à oficina a cada 15 dias. “Pensamos que a produção poderia ser feita apenas por três pessoas”, afirma Khouri.
Na investigação, os auditores tiveram acesso a e-mails de funcionários das Pernambucanas que revelam como a empresa coordena todo o processo de produção. Embora a execução seja terceirizada, é a loja que define o modelo, os tamanhos, as quantidades, o tempo em que devem ser confeccionadas e o preço pela produção de cada peça. “Isso é diferente de terceirizar serviços de apoio, como limpeza ou segurança”, diz o juiz do trabalho Marco Barberino. “A empresa é responsável pela atividade econômica por trás de seu produto final. Se a atividade é produzir e vender roupas, ela é responsável por isso.”
As condições de trabalho análogas à escravidão foram caracterizadas porque, além de 41 infrações às exigências mínimas de saúde e segurança, o grupo de bolivianos era mantido sob o regime da servidão por dívida. Eles chegaram ao Brasil devendo R$ 300 pela passagem e custos da viagem de El Alto, cidade da região metropolitana da capital, La Paz, a São Paulo. No fim do mês, esse valor era descontado do salário, além de diversos adiantamentos para compra de comida, fralda e cartão telefônico (o maior gasto do grupo). Em um caso, o pagamento de R$ 800 caiu para R$ 176. Ganhando 20 centavos por peça, os bolivianos tinham de acelerar o ritmo para não fechar o mês devendo ainda mais. No fim do dia, dividiam um banheiro com água fria e dormiam em quartos apertados e sem ventilação, alguns em colchões colocados diretamente no chão.
ÉPOCA acompanhou a operação dos auditores. Embora a chave da porta estivesse à vista, o clima era de medo em deixar o local. No fim da inspeção, quando os auditores informaram, em espanhol, que eles ganhariam dinheiro pela rescisão do contrato, seguro-desemprego por três meses, carteira de trabalho e um lugar para ficar, o grupo ficou calado. Enquanto os auditores explicavam seus direitos, o boliviano José (nome fictício), gerente da oficina, falava com os trabalhadores em quíchua, dialeto dos países andinos. Depois de ouvi-lo, os trabalhadores ficaram apreensivos. Uma mulher deslizou as costas pela parede, sentou-se no chão e chorou. Em minutos, todos recusaram a oferta do Ministério do Trabalho. Disseram que preferiam ficar no alojamento, mesmo sem poder trabalhar, pois a oficina estava lacrada. “Não há correntes, como se imagina o escravo do século retrasado, mas isso é uma forma de restringir a liberdade pelo medo, pelo assédio”, diz o auditor Luis Alexandre de Faria.
“Estamos com medo, não queremos prejudicar o José (o gerente da oficina)”, disse Consuelo (nome fictício), uma das funcionárias. Ela veio para o Brasil em agosto do ano passado, quando tinha 17 anos. Desempregada em El Alto, vendia produtos na rua quando um homem lhe ofereceu um sonho: ir para o Brasil, com a viagem paga, trabalhar numa oficina de costura onde ganharia “bem”. Depois que os fiscais saíram da oficina, Consuelo e os outros trabalhadores foram mandados para a rua. “Eles (gerentes) disseram para a gente sumir por um tempo”, afirmou. “Passamos a noite andando, sem dinheiro e sem comida. Ficamos assustados. Alguns de nós têm crianças pequenas e não conhecemos ninguém na cidade.”
Os bolivianos temem procurar órgãos públicos, porque têm medo de ser deportados. Eles não sabem que seu país assinou um tratado de livre circulação com o Brasil, pelo Mercosul, segundo o qual bolivianos podem transitar livremente no Brasil, assim como brasileiros na Bolívia. Para trabalhar, basta fazer um registro no consulado. “A falta de informação deixa essas pessoas reféns dos exploradores”, diz Grover Calderón, presidente da Associação de Estrangeiros e Imigrantes no Brasil.
Consuelo e suas colegas ficaram na rua até a noite seguinte, quando foram chamadas de volta por José, o gerente. Ele foi convencido a “liberar” os trabalhadores depois de uma audiência na superintendência do Ministério do Trabalho. O encontro era para discutir os valores da rescisão de contrato. “Você pode trazer os trabalhadores aqui e a gente vai acertar tudo. Dinheiro não é problema”, disse o advogado das Pernambucanas, Daureo Dórea, na reunião.
Dias depois, os 16 bolivianos receberam suas carteiras de trabalho e a verba pela rescisão, que variou entre R$ 1.000 e R$ 5 mil, de acordo com o tempo que estavam na oficina. Os contadores que calcularam esses valores eram das Pernambucanas, mas o pagamento foi acertado em nome da Dorbyn.
A fiscalização do Ministério do Trabalho nessa oficina não ocorreu por acaso. Os fornecedores das Pernambucanas eram investigados desde agosto de 2010 pelo grupo de auditores do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo Urbano. Na ocasião, outra operação encontrara etiquetas de uma das marcas das Pernambucanas numa oficina autuada por trabalho escravo. No ano passado, os auditores flagraram o crime em oficinas que produziam para a Marisa e a Collins.
Quando começaram a investigar a cadeia das Pernambucanas, a Dorbyn chamou a atenção entre 557 fornecedores porque entregava 140 mil peças por ano com apenas uma costureira. Descobriram que a Dorbyn terceirizava o trabalho para três empresas e 17 costureiros contratados como pessoa física. O maior fornecedor era José, o gerente da oficina irregular fiscalizada: entregava 50 mil peças por ano. Há dois anos, ele trabalhava com peças da Argonaut, a marca jovem das Pernambucanas. “No começo, fizemos alguns trabalhos para coreanos, mas eles não pagam direito”, diz a mulher de José, que ajuda a gerenciar a oficina. “Com as peças da Argonaut, nós nunca tivemos problema, eles pagam direitinho.”
A auditoria em grandes empresas é uma nova estratégia de combate ao trabalho escravo no Brasil. Até o início ano do passado, os auditores só agiam mediante denúncias. Segundo eles, a estratégia não funciona para trabalhadores estrangeiros, que têm receio de procurar o Estado. Os bolivianos só denunciam quando sofrem agressão física ou abuso sexual. Os chineses que já foram flagrados em situações parecidas pela Polícia Federal nunca fizeram denúncia. “Atender às denúncias é importante, mas não muda o funcionamento da rede porque há centenas de oficinas como essas”, diz a auditora Giuliana Cassiano, coordenadora do programa. Estima-se que existam 8 mil pequenas oficinas como essas em São Paulo, a maior parte composta de bolivianos e paraguaios. “Só as empresas que alimentam a cadeia podem mudar essa lógica”, diz Giuliana. Ao mapear a ligação entre a empresa e uma oficina, o objetivo é fechar a torneira que permite a proliferação desse tipo de exploração. O Ministério do Trabalho não pede que as grandes empresas contratem os costureiros nem que cortem aquele fornecedor. Exige que elas criem mecanismos de controle para que suas peças saiam de oficinas regularizadas.
A pressão para que grandes empresas combatam abusos em sua cadeia produtiva começou no Brasil em 2005. Nesse ano, companhias como Bunge, Cargill, Carrefour, Petrobras, Vale do Rio Doce, Walmart e Pão de Açúcar assinaram um pacto no qual se comprometeram a cortar fornecedores flagrados na exploração da mão de obra. Elas assinaram o pacto depois que foram informadas de que suas marcas seriam vinculadas ao trabalho escravo. “Para essas empresas, não faz sentido deixar que sua imagem seja atrelada à prática da exploração”, diz Leonardo Sakamoto, fundador da ONG Repórter Brasil e um dos articuladores do pacto. “O princípio do pacto é o diálogo com as empresas.”
Foi assim que a comunidade internacional pressionou a Nike. Depois de denúncias, na década de 90, que a ligavam à exploração de mão de obra infantil e trabalho escravo em países da Ásia, a Nike investiu em auditorias internas e tornou transparentes os nomes e endereços de seus fornecedores. “A Nike é uma das mentoras da terceirização do produto final para baratear custos”, diz Renato Bignami, auditor que assumirá nesta semana a coordenação nacional do Grupo Móvel de Fiscalização do Trabalho Escravo. “Mas também está sendo precursora da mudança. Ainda não resolveram tudo, mas avançaram no monitoramento e na transparência.” Questionadas sobre quais seriam as medidas para evitar que suas peças continuem sendo costuradas em oficinas como a de José, as Pernambucanas disseram que a empresa “sempre tomou ações concretas, como o compromisso por contrato de que as fornecedoras respeitem a legislação trabalhista”. Não explicaram, porém, como seus mecanismos falharam. A trilha aberta pela Nike pode ser um caminho a ser seguido pelas empresas brasileiras.
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