#MexeuComUmaMexeuComTodas #CombateàViolênciaContraaMulher
Por Maria Gorete Marques de Jesus e Mayara Gomes, em Justificando
Três mulheres. Duas jovens de aproximadamente 30 anos e uma senhora de 69. Todas iam passar pela audiência de custódia acusadas por um suposto furto numa loja do centro da cidade. O juiz pede para que entre uma de cada vez. A primeira jovem está com a jaqueta cortada. Durante a audiência, o juiz lhe pergunta se houve alguma irregularidade durante a prisão. A moça responde que ela e sua prima tiveram as jaquetas cortadas por um policial na delegacia e foram ameaçadas. Segundo ela, caso não assinassem o BO, os policiais iriam “arregaçar suas bucetas” como fizeram com suas jaquetas. Com um olhar irônico, o juiz a questiona “mas isso é agressão?”. A moça, demonstrando indignação com a pergunta, responde “Claro! Eles atingiram nosso psicológico doutor”.
A violência institucional representa um fenômeno tão complexo que não é possível observá-lo de maneira apenas situacional. A forma como essas mulheres foram tratadas pelos policiais, além de ter sido bastante violenta, revela como a violência institucional está presente no cotidiano policial. A tortura e o abuso de autoridade são apenas alguns exemplos de práticas violentas que estão intimamente ligadas à atuação das forças de ordem, que recorrem a esses expedientes violentos nos momentos da prisão de suspeitos, nos espaços institucionalizados como delegacias, viaturas, prisões com propósitos e interesses diversos.
Sendo assim, como podemos olhar um fenômeno violento, para além da sua ocorrência? Como os operadores do direito enxergam (ou não enxergam) essa violência, especialmente aquela envolvendo as mulheres como vítimas? São essas perguntas que nos instigam a pensar como a violência institucional, enquanto um fenômeno social, se opera de maneira diferente quando as vítimas são homens e mulheres.
Não é de hoje que a prática da tortura pelas forças da ordem atua de maneira diversa, quando as suas vítimas são mulheres. Durante a ditadura civil militar, às mulheres eram submetidas a práticas iguais e diversas dos homens [1] por sua condição feminina. Nesse sentido, ser mulher é um elemento mobilizado através da possibilidade ou da real prática de violência física, psicológica e sexual contra mulheres por aqueles que praticam a tortura.
Se a tortura é um tipo de prática que se investe nos pontos sensíveis da vítima para extrair sua “produtividade”, o corpo feminino torna-se objeto das mais variadas formas de sujeição de dor e sofrimento, cujas marcas sobressaem seu corpo. A associação entre um corte na jaqueta e uma mutilação na genitália atinge a mulher sem que sejam necessárias “as vias de fato”.
O relato das mulheres ao juiz não lhe causou nenhum estranhamento, ao contrário, perguntou-lhes se aquilo que narravam era uma agressão. Por que tal questionamento por parte do magistrado? Por que tal violência parece invisível aos seus olhos?
Pesquisas apontam que a palavra da vítima de tortura é relativizada em oposição à palavra dos agentes das forças de ordem [2]. Quando a vítima é mulher – que ocupa a última posição de interesse no sistema de justiça criminal [3] – os atores jurídicos parecem não apenas relativizar suas falas, mas serem surdos a elas, o que implica num processo de revitimização.
Ao que parece, os operadores do direito ainda reproduzem as variadas representações das mulheres da sociedade patriarcal e machista [4]. Quando são presas, parecem transgredir não apenas a lei, mas aquilo que se espera delas: a passividade, a submissão, a maternidade e outras expectativas do feminino. Dessa forma, recai sobre essas mulheres não apenas a sanção penal, mas também a sanção social de ser uma suposta infratora.
Se considerarmos que a violência institucional contra mulheres não é um fato novo no Brasil, porque há pouca visibilidade sobre a sua ocorrência [5]? Porque a tortura e outras violências institucionais contra as mulheres são tratadas com leniência pelos operadores do direito? Seria a violência institucional e a tortura contra as mulheres mais uma forma de prática de violência que viria a incrementar as múltiplas formas de violência presentes, em nossa sociedade? [6]
A ausência de dados sobre a violência institucional contra as mulheres, longe de representar a inexistência dessa violência, pode significar uma subnotificação ou uma invisibilidade ao problema, além de um desinteresse na apuração de tais casos. Da violência à omissão das autoridades, da invisibilidade ao julgamento moral, as mulheres perpassam o sistema de justiça criminal entrelaçadas nas mais variadas formas de violência.
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Maria Gorete Marques de Jesus é Socióloga Mestre e Doutoranda em Sociologia pela USP. Especialista em Direitos Humanos. Pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV/USP). Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa do IBCCRIM.
Mayara Gomes é Bacharel em direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. Mestranda em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC. Advogada.REFERÊNCIAS
CALDERONI, Vivian.; JESUS, Maria Gorete Marques de. (Coord). Julgando a tortura: análise de jurisprudência nos tribunais de justiça do Brasil (2005 – 2010). ACAT-Brasil/Conectas/NEV-USP/IBCCRIM/Pastoral Carceraria, 2015.
CERQUEIRA, Daniel e COELHO, Danilo Santa Cruz. Estupro no Brasil: uma versão segundo os dados da Saúde. Instituto de Pesquisa Aplicada (IPEA). Brasilia: 2014. Disponível http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdf
CORRÊA, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983.
HELPES, Síntia Soares. Vidas em jogo: um estudo sobre mulheres envolvidas com tráfico de drogas. São Paulo: IBCCRIM, 2014
IZUMINO. Wânia Pasinato. Justiça para todos: os Juizados Especiais Criminais e a violência de gênero. TESE Doutorado em Sociologia, Departamento de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2004.
JESUS, Maria Gorete Marques de. O crime de tortura e a justiça criminal: um estudo dos processos de tortura na cidade de São Paulo., São Paulo: IBCCRIM,. 2010.
LEMGRUBER, Julita. Cemitério dos vivos.: Análise sociológica de uma prisão de mulheres. 2ª Edição.Rio de Janeiro. Editora Forense.1999
MAIA, Luciano Mariz. Do controle judicial da tortura institucional: à luz do direito internacional dos direitos Humanos. Recife: Tese (Doutorado), Universidade Federal de Pernambuco, 2006.
MERLINO, Tatiana e OJEDA, Igor (orgs). Luta, Substantivo Feminino: Mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura militar. São Paulo: Editora Caros Amigos, 2010
MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Secretaria de Assuntos Legislativos Dar à luz na sombra: condições atuais e possibilidades futuras para o exercício da maternidade por mulheres em situação de prisão. Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos. — Brasília: Ministério da Justiça, IPEA, 2015. 92 p. : il. – (Série Pensando o Direito, 51)
VARGAS, Joana Domingues. Crimes sexuais e sistemas de justiça. São Paulo: IBCCRIM, 2000.
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência: Mortes matadas por Arma de Fogo. Brasília: 2015. Disponível:http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/mapaViolencia2015.pdf
[1] No livro de Tatiana Merlino (2010) Luta, Substantivo Feminino: Mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura, há diversos relatos de mulheres que foram torturadas durante a ditadura civil-miltar. As mulheres eram torturadas nuas o que também ocorria com os homens, mas havia ridicularização, comentários libidinosos, abusos sexuais, estupros, aplicação de medicamentos para secar o leite, quando estavam em fase de amamentação, dentre outras práticas.
[2] Ver Jesus (2010), Maia (2006), Calderoni (2015).
[3] Os estudos prisionais, que se debruçam sobre a realidade do cárcere para mulheres demonstram que muitas delas são “abandonadas”, “esquecidas” pelo Estado e pelos seus entes, para mais ver. Lemgruber (1999); Helpes (2014); Ministério da Justiça (2015).
[4] Sobre as representações das mulheres no sistema de justiça criminal ver. Correia (1983); Vargas (2000); Izumino (2004) entre outros.
[5] A título de exemplo, na pesquisa Julgando a tortura: Análise de jurisprudência nos tribunais de justiça do Brasil (2005-2010), os casos de tortura cujas vítimas eram homens presos reuniu 10% dos acórdãos analisados, os de mulheres presas representou apenas 0,6% dos acórdãos.
[6] Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) o Brasil corresponde ao 5º pais com maior número de mulheres vítimas de homicídio. Segundo os dados recentes do Mapa da Violência entre 2003-2013 o número de mulheres assassinadas foi de 4.762. A pesquisa também mostra que os homicídios das mulheres negras cresceu 54,2%. Ver: http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/mapaViolencia2015.pdf, acessado em 18/11/2015. Ainda segundo dados do IPEA, Estupro no Brasil: uma versão segundo os dados da Saúde, o número de estupros no Brasil em 2013 foi acima de 50.000 ocorrências, sendo que 89% das suas vítimas eram mulheres. Ver: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/140327_notatecnicadiest11.pdfn, acessado em 18/11/2015.