Com base em documentos e relatos de sobreviventes, jornalistas revelam como as forças de segurança do governo Peña Nieto atacaram os 43 estudantes desaparecidos no México – e participaram da matança
por Anabel Hernandez, Steve Fishe, A Pública
Na noite de 26 de setembro de 2014, Iguala, um povoado que se encontra a três horas da capital do México, se converteu em um inferno. Mais de cem estudantes da Escola Normal Rural Isidro Burgos, no município de Ayotzinapa, foram atacados com armas de fogo durante várias horas enquanto viajavam pelo povoado a bordo de cinco ônibus. Três estudantes foram assassinados, mais de dez ficaram feridos. E 43 estão, ainda hoje, desaparecidos.
Os alunos, na sua maioria filhos de camponeses pobres, chegaram às imediações da cidade para sequestrar alguns ônibus, uma prática comum entre estudantes de escolas públicas mexicanas; geralmente não há violência e os veículos são liberados depois da “carona”. Naquele dia, os jovens queriam usá-los para viajar à Cidade do México e participar da marcha anual em memória do massacre ocorrido na noite de 2 de outubro de 1968 em Tlatelolco, que vitimou outros estudantes. Quarenta e seis anos depois, os massacrados foram eles. Naquela tarde, chegaram às imediações de Iguala cerca de cem estudantes para sequestrar alguns ônibus com o objetivo de ir à marcha de 2 de outubro. À noite, foram mortos pelo Estado.
Fernando Marín estava debaixo de um ônibus banhado no próprio sangue, assim como seus colegas de escola. A bala que o havia acertado minutos antes destroçara seu antebraço direito, e os tendões, arrebentados, eram tirinhas brancas que saíam do corpo. A ferida ainda estava quente, mas não doía tanto.
“Quer saber? Vai à merda”, disse um policial do estado de Guerrero, no litoral mexicano.
“Mate-o de uma vez, porque ele está ferido, mate-o de uma vez!”, encorajou, no anonimato da rua desolada, outro policial. Nesse momento Carrillas, como o apelidaram na escola, sentiu o metal da arma contra a testa, logo acima da orelha esquerda. Eram cerca de dez e meia da noite de 26 de setembro de 2014, e àquela altura a rua Juan N. Alvarez, a apenas alguns quarteirões do centro de Iguala, estava deserta. Comerciantes e clientes estavam apertados atrás das cortinas metálicas das lojas cujas portas haviam fechado quando começou o enfrentamento; os que puderam correram para outras ruas. Os vizinhos, entre idosos, adultos e crianças, se atiraram aterrorizados no chão dentro das casas, tremendo. Apenas alguns se atreviam a espiar de vez em quando, escondidos na escuridão atrás das janelas.
Policiais estaduais, municipais e civis armados haviam encurralado três ônibus em que viajavam cerca de 60 estudantes da escola normal do município de Ayotzinapa naquele ponto, pouco antes da esquina com a avenida Periférico. Algumas quadras adiante, a Polícia Federal desviava o trânsito e os curiosos para outras ruas.
O policial tirou a arma da cabeça de Carrillas e se pôs de lado. Chamou uma ambulância. O pessoal do resgate, porém, não queria chegar perto porque tinha medo de que os estudantes, do outro lado da rua, atirassem. “Como meus companheiros vão atirar se não temos armas, não temos nada?”, pensou Carrillas.
A última coisa que ele viu enquanto era levado à ambulância foram os colegas do terceiro ônibus, jogados ao solo. Desde aquela noite nunca mais os viu. Ele é o único sobrevivente desse veículo. “Quem sabe foi o grande Deus que fez que não me levassem, quem sabe. Não sei o que deu no policial, de verdade não sei. Sou o único”, contou à reportagem, o pesar palpável na voz.
Até as onze da noite, o tratamento aos estudantes seguiu uma mesma diretiva. A polícia estava enviando os feridos ao hospital, segundo Vidulfo Rosales, advogado dos estudantes e dos pais dos 43 desaparecidos, mas depois “houve uma decisão, que não sei de onde veio, de apagar todas as pegadas dos estudantes. E a partir de então começou a segunda agressão, e a caçada”, diz.
17h59 – Saída de Ayotzinapa
Fernando Marín ingressou em 2013 na Escola Normal Rural Isidro Burgos, assim como seus primos e irmãos. Na tarde da sexta-feira, 26 de setembro de 2014, encontrou o amigo Bernardo Flores Alcaraz, conhecido como Cochiloco, nas quadras cobertas da escola. Os dois eram colegas do segundo ano e tinham tarefas de responsabilidade na escola. Carrillas era o responsável pela ordem e disciplina;Cochiloco, o encarregado de conseguir ônibus escolares e gasolina. Eram amigos inseparáveis.
Bernardo convidou Fernando a ir a um boteo – coleta de dinheiro – e para “tomar” alguns ônibus para ir à marcha de 2 de outubro na Cidade do México. Iam fazer um protesto em memória do massacre estudantil de Tlatelolco. Ele respondeu que sim.
Desde o momento em que saíram da escola, nos ônibus da empresa Estrella de Oro, números de registro 1568 e 1531, a polícia e o governo de Guerrero e a Polícia Federal foram notificados através do Centro de Controle, Comando, Comunicações e Computação (C4) de Chilpancingo, a capital estadual, segundodocumentos da Secretaria de Segurança Pública do estado de Guerrero. A máquina do Estado foi posta a andar.
Os ônibus iam cheios, conta Fernando Benítez durante uma entrevista naquela mesma escola, oito meses depois. “Meus companheiros do primeiro ano iam com os seus celulares, falando talvez com as mães, os irmãos ou as namoradas… Todos estávamos contentes.”
O ônibus 1531 parou em Huitzuco, na comunidade Rancho del Cura, e o 1568, onde estavam Carrillas eCochiloco, continuou até o posto de pedágio Iguala-Puente, de Ixtla. Quando estavam no pedágio, chegaram caminhonetes picapes da Polícia Federal e da Secretaria de Segurança Pública estadual, além de uma motocicleta vermelha com um só tripulante. “[Uma moto] começou a patrulhar. Ficava rodeando o local onde estávamos”, conta Carrillas.
(O coronel José Rodríguez Pérez, comandante do 27º Batalhão de Infantaria, declarou à Procuradoria-Geral da República (PGR) no dia 4 de dezembro 2014 que o Exército mantinha dois operadores de rádio na C4 de Iguala e que às sete da noite ele enviou um militar para vigiar os estudantes que estavam nos ônibus de Carrillas e Cochiloco. Disse também que existe um grupo chamado Órgão de Busca de Informação, que se veste de civil para conduzir operações.)
Depois da motocicleta passou outro carro, que também ficou rodeando o grupo. Quando Carrillas os viu, pensou que não iam poder conseguir sequestrar os ônibus. Já estavam a ponto de abortar a missão quando ele recebeu uma ligação de estudantes do ônibus que ficara em Rancho del Cura, avisando que alguns colegas haviam ficado presos no terminal rodoviário. Tinham conseguido “tomar” um ônibus, mas o motorista quis primeiro levar os passageiros até o terminal. Chegando lá, trancou os estudantes dentro do ônibus.
Então, os estudantes do ônibus em que viajava Carrillas e aquele que vinha de Rancho del Cura se juntaram para ir resgatar os colegas no terminal.
21h12 – No terminal
Para resgatá-los, os jovens quebraram o vidro do ônibus. Depois se dividiram: por um lado, saíram o ônibus da empresa Estrella Roja e um da empresa Estrella de Oro e, pela rua Galeana até o centro da cidade, saíram dois ônibus da empresa Costa Line, além de outro da Estrella de Oro. Eram cinco no total.
“O curioso é que, quando eles chegaram ao terminal, imediatamente saem, e em dez minutos a polícia municipal já está do lado de fora. Isso permite concluir que já os estavam seguindo. Não se pode armar uma operação dessas em dez minutos”, explica o advogado Rosales.
Quando três dos cinco ônibus saíram pela rua Galeana, já havia viaturas policiais – que no México são picapes – à sua frente, atrás e dos lados. Carrillas estava no terceiro ônibus da caravana. Alguns estudantes desceram na praça central El Zócalo para ir abrindo caminho. Os policiais municipais apontaram suas armas.
“Somos estudantes. Por que apontam essas armas para nós?”, perguntou aos policiais o aluno Ángel de la Cruz, do segundo ano, que viajava no primeiro ônibus. “Por que temos que descer?” Atirando pedras nos policiais, conseguiram que as viaturas abrissem caminho. Porém, às nove da noite se escutaram na praça os primeiros tiros. Houve disparos entre as ruas Bandera Nacional e Galeana. Não houve feridos.
21h30 – O tiroteio omitido na investigação oficial
Os comerciantes e clientes da esquina entre as ruas Juan N. Alvarez e Emiliano Zapata, a uma quadra da praça central El Zócalo, não sabiam o que estava acontecendo até que uma pessoa com o rosto coberto com um paliacate – um pano estampado com padrões indígenas – parou no meio da rua, olhando em todas as direções. Ele vestia uma calça jeans e uma camisa rasgada na parte de trás. Estava alterado, segundo descreveram as testemunhas. Chegou então uma caminhonete Suburban de cor escura seguida por uma picapes policial. Da caminhonete desceram quatro ou cinco homens armados, porém vestidos de civis, também com o rosto coberto. Chamou atenção o fato de que tinham cabelo muito curto.
“Eu pensei que eram militares, olhavam feio para a gente. Um era barbudo”, diz uma das testemunhas entrevistadas para esta reportagem.
Logo atrás, na viatura picape, chegaram seis policiais vestidos de negro com coletes à prova de balas e equipamentos antidistúrbios. “Parem, cabrones!”, gritou um policial aos da caminhonete.
Então começaram novos disparos.
Uma testemunha gravou todo o áudio com seu telefone – a reportagem teve acesso à gravação, que pode ser escutada no vídeo abaixo. Foram disparos secos e com uma breve pausa entre si. Nos 16 segundos de gravação ouvem-se 14 tiros. “Já se vão, já se vão”, diz a voz de uma mulher no meio da gritaria.
Ninguém foi ferido, mas três carros sofreram o impacto das balas. Os homens da caminhonete saíram correndo, com exceção de um, que saiu dirigindo o veículo; foram em direção à avenida Periférico seguindo a pessoa com o paliacate. Os policiais foram atrás. Em seguida passaram os ônibus nos quais estavam os estudantes.
Depois do incidente, chegou um automóvel Focus azul-marinho, sem placas. Dele desceu um tipo também de aparência militar, dizem as testemunhas, e recolheu as cápsulas de balas. Nenhuma autoridade foi investigar o que aconteceu naquela esquina, nem há nenhuma referência sobre esse incidente nas investigações da Fiscalía Geral do Estado de Guerrero (PGJG) ou da PGR. “As lojas fecharam, [assim como] todas as outras casas, porque foram vários disparos que ocorreram no Zócalo”, conta o sobrevivente Ángel de la Cruz.
21h40 – Encurralados
Os três ônibus estavam chegando à avenida Periférico quando policiais municipais de Iguala atravessaram uma picape no meio da via. Pelo menos três carros bloquearam a retaguarda da caravana. “Já não podíamos avançar”, lembra Carrillas.
Cinco jovens desceram do ônibus que ia à frente para tentar abrir caminho, entre eles Ángel. “Íamos ‘empurrá-los’ quando começaram os tiros contra nós”, conta. Assim o aluno Aldo Gutiérrez, de 19 anos, foi ferido com um tiro na cabeça que destruiu a metade do seu cérebro. Ele permanece em coma. Seu colega Jonathan Maldonado recebeu um tiro na mão e perdeu vários dedos.
Os estudantes ficaram no meio do tiroteio. Nesse momento eclodiu o terror, como atestam diversos vizinhos e clientes do comércio local. Lanchonetes que servem frango e tacos e mercearias, todas fecharam as cortinas metálicas. Foi mais de meia hora de tiroteio.
“Já mataram um! Já mataram um!”, gritaram os meninos do primeiro ônibus. “Abaixem-se!”, foi o grito de outro. Os estudantes desceram e se refugiaram entre o primeiro e o segundo ônibus. Ligaram para os colegas da escola para pedir reforços. E seguiram gritando: “Chamem a ambulância! Chamem a ambulância!”. No chão, Aldo ficou agitando os braços no ar enquanto um jorro de sangue saía de sua cabeça. Os jovens do terceiro ônibus ficaram isolados, sozinhos.
O estudante Julio César Mondragón estava “gravando tudo com seu celular desde o primeiro momento”, assegura Ángel.
Vizinhos e comerciantes entrevistados afirmam que não apenas os policiais municipais uniformizados dispararam, mas também homens vestidos de civis.
“Uma das picapes dos policiais tinha no capô o suporte para uma metralhadora e de lá disparava”, diz outra testemunha entrevistada, enquanto seus olhos revivem o trauma. Nenhuma picape da polícia municipal vistoriada pela Fiscalía tinha esse equipamento.
“Se ouviam os R15 dos policiais, atiraram em todo mundo”, diz. “Mas depois também se escutavam rajadas de maior poder, já era outra arma”, lembra. Quando se ouviu o som da metralhadora na sua casa, todos se atiraram no chão.
“Não temos armas! Não disparem!”, gritavam os meninos.
Carrillas lembra que do ônibus pôde ver que havia policiais municipais e estatais. Todos juntos no ataque. Ele distinguiu perfeitamente os logotipos na parte traseira dos uniformes. Os policiais municipais estavam com o seu uniforme, e os estatais, com coletes à prova de balas. Metralharam os pneus e os vidros. “Os policiais queriam nos matar”, diz.
Por sua vez, o secretário de Segurança Pública de Guerrero, tenente Leonardo Vázquez Pérez, declarou à PGR que seu pessoal não saiu naquela noite porque não havia homens suficientes. Supostamente ficaram protegendo o quartel.
Dentro do terceiro ônibus, se atiraram no chão do corredor para fugir das balas. Carrillas pegou o extintor de incêndio e desceu do ônibus para tentar enfrentar os policiais que atiravam. Acionou o extintor, mas logo sentiu um impacto no braço que o atirou no chão. Subiu como pôde no ônibus. A cada passo deixava uma poça de sangue.
“Neste momento minha mente pensava que eu não tinha mais salvação. Tinham me acertado no braço, iam matar os meus companheiros naquela hora […]”. Então Carrillas sugeriu a Cochiloco que ligasse para La Parca, que era secretário-geral da escola e ficara em Ayotzinapa. Um aluno do primeiro ano, Miguel Ángel Hernández Martínez, conhecido como El Botas, foi quem lhe fez um torniquete no braço para estancar a hemorragia.
Ao ver o amigo sangrando, Cochiloco se rendeu. “Sabe o quê? Temos que nos dar por vencidos. Balearam o Carrillas. Você já não vai poder nos acompanhar ou apoiar”, disse ao motorista, pedindo que descesse do ônibus. O motorista desceu e avisou aos policiais que era apenas o condutor.
“Que nos importa quem é você! É um deles. É igualzinho a eles […] Também é de Ayotzinapa”, ouviu dos policiais.
Quando o motorista desceu, os jovens o seguiram com as mãos atrás da nuca. Foram colocados no chão, de bruços, em uma espécie de beco que se formava na garagem de uma das casas. Carrillas afirma que quem os colocou no chão foram policiais estaduais e municipais. Lembra que eram aproximadamente 20. Foi nesse momento que falaram sobre matá-lo.
Ángel, do outro lado da rua, diz que pôde ver os colegas saindo do ônibus, mas não pôde ver mais nada porque os policiais estavam jogando a luz dos faróis das picape sobre eles.
Cochiloco ainda resistiu a atirar-se no chão. “Sabe o quê? Eu não vou deitar”, protestou. Em resposta os policiais bateram na sua testa com a culatra de uma arma, deixando o muro salpicado de sangue. Submeteram-no e atiraram-no no solo com os demais. Depois disso, já ninguém protestou nem gritou ou tentou escapar. Não estavam armados.
“[…] O Botas, que estava ao meu lado, começou a chorar. Começou a chorar e dizer: ‘O que vamos fazer? Por que estão fazendo isso?’”, lembra Carrillas. “Tranquilo, compa. Agorinha vêm os nossos camaradas para nos tirar daqui. Não se preocupe. Não fique nervoso […]”, disse para tranquilizá-lo.
No chão, Carrillas se contorcia de dor. Ali jogado, deram-lhe chutes nas costelas e no rosto. Depois, conta, chegaram mais policiais, além da ambulância que os levou ao Hospital Geral de Iguala.
Pela avenida Periférico chegaram mais ambulâncias para levar os estudantes feridos e um homem que havia tido um ataque de asma. Até então não havia uma decisão explícita de exterminá-los.
22h30 – A Polícia Federal
Um vizinho que vive numa rua próxima contou à reportagem que, ao saber do tiroteio, foi buscar o irmão, que estava numa lanchonete. Eram cerca de nove e quarenta da noite e, ao chegar à esquina com a rua Revolución, encontrou um bloqueio da Polícia Federal.
Ele diz que a sirene não estava ligada, mas viu a poucos metros de distância e distinguiu claramente os logotipos das caminhonetes que estavam estacionadas, formando um V, e as insígnias dos uniformes. Estavam armados.
Rodeou pelas ruas próximas, mas não pôde seguir até a Juan N. Alvarez porque todas as vias que desembocavam nela estavam fechadas por picapes policiais. Não conseguiu chegar mais perto; dali mesmo chamou o irmão, que saiu de uma casa onde havia se refugiado. O irmão lhe contou que vira carros de civis disparando contra os ônibus.
Aproximadamente às 22h30, a Polícia Federal esteve presente em outro ataque contra os estudantes na avenida Iguala-Chilpancingo, à altura do Palácio da Justiça. Ali detiveram um ônibus da empresa Estrella Roja em que viajavam os 14 estudantes normalistas que tinham conseguido sair do centro de Iguala e iam rumo à capital. Esse ônibus nunca foi mencionado nas perícias da Fiscalía, e o Grupo Interdisciplinar de Experts Independentes (Giei), enviado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos para fazer uma investigação autônoma, o aponta como a provável chave do mistério. Seu informe, apresentado no dia 6 de setembro, atesta que as forças de segurança do presidente Enrique Peña Nieto não só estavam presentes como participaram do massacre.
No documento, os peritos do Giei apontam a hipótese de que possivelmente o quinto ônibus levava, antes de ser sequestrado, um carregamento de drogas e que esse poderia ser o motivo do ataque. E mencionam um processo que corre em Illinois, nos EUA, sobre a organização criminosa Guerreros Unidos, daquela região do México, que diz ser comum a gangue usar ônibus de passageiros para transportar droga.
“Os policiais federais apontaram para eles e os obrigaram a parar, ameaçando disparar. Eles descem, jogam pedras, acontece um enfrentamento ali com os federais, e eles [normalistas] correm para os montes”, relata o advogado Rosales. Metros mais adiante, estão retirando outros 15 a 20 estudantes do ônibus Estrella de Oro 1531. Naquele local, só sobraram pedras e roupas ensanguentadas, segundo a perícia feita pela Fiscalía no dia seguinte.
“Na mesma hora, o quarto ônibus Estrella de Oro estava rodeado de policiais municipais; atrás, como respaldo, estavam os policiais federais”, descreve Rosales. Todos os estudantes desse ônibus também estão desaparecidos. Segundo o advogado, havia ali pelo menos 20.
O comandante do pelotão de informação do 27º Batalhão declarou à PGR que estava presente, apenas observando, quando supostamente a polícia municipal tirou os estudantes do ônibus Estrella de Oro. Ele omitiu, porém, no seu depoimento que a Polícia Federal também estava ali.
Analisando documentos oficiais aos quais a reportagem teve acesso, foram identificados pelo menos dois dos policiais federais que atuaram nessa noite: Luis Antonio Dorantes, comandante da base da Polícia Federal em Iguala, e o suboficial Víctor Manuel Colmenares. Ambos foram transferidos de base depois do ocorrido. A Polícia Federal se negou a responder ao pedido de informação sobre eles, feito com base na Lei de Acesso à Informação. Durante meses, negou até mesmo que Dorantes trabalhasse na Polícia Federal, embora seu nome esteja em documentos oficiais sobre aquela noite.
As testemunhas da rua Juan N. Alvarez dizem que os estudantes foram mantidos no chão por mais de meia hora. De acordo com vídeos aos quais a reportagem teve acesso, as viaturas da polícia municipal ainda estavam ali às 23h11.
24h00 – Os infiltrados
Eram onze da noite. Quando os policiais levaram os estudantes do terceiro ônibus para um local ainda desconhecido, chegaram finalmente um veículo Chevrolet e uma caminhonete Suburban branca com outros estudantes da escola Isidro Burgos. Os reforços haviam chegado tarde. Eles então improvisaram uma coletiva de imprensa com jornalistas que começavam a chegar.
Uma pessoa que se encontrava ali disse que durante essa entrevista havia membros infiltrados do Centro de Investigação e Segurança Nacional (Cisen), o centro de vigilância e espionagem do governo mexicano, e também do Exército, vestidos de civis. Ela diz que os conhecia e sabia que eles mantêm presença e fazem operações secretas em Iguala.
Fontes do Cisen confirmaram que a escola normal de Ayotzinapa é monitorada permanentemente por causa de antecedentes de vínculos com guerrilhas. A 400 metros do Palácio da Justiça, onde “foi desaparecido” o outro grupo de estudantes, há uma casa que serve de escritório do Cisen.
Durante a coletiva, na esquina da rua Juan N. Alvarez com a Periférico, chegou um grupo armado, trajando roupas de cor escura. Saíram de veículos civis. “Primeiro dispararam para cima e depois abriram fogo direto, muito intenso”, conta um dos jornalistas que ali estavam. Houve uma debandada geral; as balas passavam assobiando por todos os lados.
Os homens avançaram em direção às pessoas que fugiam, chegando até a esquina da Juan N. Alvarez e logo para as ruas paralelas, por onde corria um grupo de estudantes. Dois deles ficaram estirados no asfalto: Daniel Solis, de 18 anos, e Julio César Ramírez, de 23. Os demais, dispersos, saíram correndo, gritando pelas ruas, pedindo ajuda.
“Um estudante salvou a vida de uma repórter jogando-se na sua frente para que não atirassem contra ela”, narra uma testemunha.
12h50 – “Por favor, nos ajude! Estão nos matando!”
“Socorro! Estão nos matando! Socorro!”, gritavam os jovens enquanto corriam desesperados pela rua Juan N. Alvarez em direção oposta à Periférico. Atrás deles se escutavam os tiros.
“Ninguém abriu a porta para eles”, relembra uma moradora com um vazio nos olhos, fixando as mãos também vazias. Da sua janela viu correr os rapazes aterrorizados debaixo da chuva que começava naquela hora. Alguns deles estavam feridos. Ela não os ajudou.
Entre os que corriam estavam Omar García, um dos líderes estudantis, que chegou como reforço saindo de Ayotzinapa, e um grupo que carregava o corpo de Edgar Vargas, ferido. Entraram no Hospital Cristina.
“Os estudantes batiam nas portas, desesperados, queriam saltar as cercas. ‘Por favor, ajude-nos, estão nos matando!’, gritavam, mas ninguém quis abrir.” Ela explica que a essa hora toda a sua família já estava dentro de casa. Ela teve medo de abrir a porta. Podiam matar a todos.
Testemunhas que estavam nas ruas paralelas afirmam que nesse momento viram circular uma caminhonete Suburban escura com algo como uma redoma de vidro no capô, de onde desceram homens com porte militar, mas vestidos de civis, perseguindo os normalistas.
“Então começa a acontecer uma verdadeira caçada aos estudantes”, diz Rosales. A perseguição ocorreu sem que nenhuma autoridade tivesse impedido. “Os ataques foram uma confluência de todos os níveis de governo que estavam ali naquela noite”, completa o advogado.
Era dez para uma, ou uma da manhã. A tropa do capitão Martínez Crespo já estava na rua Juan N. Alvarez e havia ido ao Hospital Cristina, onde estavam algumas vítimas, mas nos depoimentos que prestaram à PGR ele e seus homens omitiram a caçada que ocorrera ali.
Nesse momento desapareceram mais estudantes, entre eles Julio César Mondragón, do primeiro ano. Rosales afirma que um grupo de oito ou nove estudantes se escondeu entre os carros estacionados em uma rua próxima à Juan N Alvarz . Viram Julio César à distância. Ele conseguira que um morador abrisse a porta da sua casa e o chamasse para entrar, mas o jovem não escutou e seguiu correndo. No dia seguinte seu corpo foi encontrado na zona industrial de Iguala, na rua das oficinas do C4, esfolado e sem os olhos, que haviam sido arrancados, segundo a necropsia.
Em meio às negras horas de caçada, medo e desolação, houve oito famílias que abriram a porta de suas casas aos estudantes normalistas. Salvaram a vida de 60 estudantes.
Apesar das provas contundentes, o governo de Peña Nieto segue negando a participação do Exército, da Polícia Federal e do Cisen no massacre. Já se passou um ano, e o horror que viveram os estudantes e as testemunhas naquela noite permanece cravado na sua memória.
Por quê? Quem levou os 43 estudantes? Para onde? Por que ele sobreviveu e os outros não? – são perguntas que Fernando Marín, o único sobrevivente do terceiro ônibus, se faz constantemente. Assim como o resto da sociedade mexicana.