Confira o artigo de Márcio Santilli, sócio fundador do ISA, sobre a estratégia ruralista de aprovar o projeto que dá ao Congresso a competência exclusiva de decidir sobre os limites de Terras Indígenas, Unidades de Conservação e Quilombo. Para Santilli, a bancada do agronegócio pretende manter os conflitos entre produtores rurais e índios em detrimento de soluções de consenso efetivas para eles
Márcio Santilli, ISA
Após um mês de indefinições, a bancada ruralista deu sinais de que prevaleceram, nos seus embates internos, as posições políticas mais radicais contra os direitos dos índios, dos quilombolas e da conservação do meio ambiente. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 71, aprovada no Senado por unanimidade em setembro, agora renumerada na Câmara como PEC 132, está encontrando resistências do núcleo mais extremado da bancada ruralista de deputados e do próprio ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo.
O projeto foi [aprovado] pelo Senado como alternativa de solução para a polêmica legislativa que envolve a demarcação das Terras Indígenas (TIs). A iniciativa foi de senadores ruralistas moderados e comprometidos com a busca de uma solução pactuada para os conflitos pendentes envolvendo TIs. A PEC prevê o direito à indenização pela terra aos portadores de títulos de boa fé incidentes em TIs demarcadas a partir de outubro de 2013. Hoje, a Constituição determina o pagamento apenas pelas benfeitorias realizadas pelos produtores rurais.
Ao mesmo tempo, o deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), que preside a Comissão Especial que analisa a PEC 215, alega que não tem mais condições de conter a pressão dos ruralistas radicais e que colocará em votação, ainda hoje, o relatório do deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR). Já essa proposta pretende transferir do Executivo federal para o Congresso a competência exclusiva de decidir sobre os limites de terras indígenas, quilombos e unidades de conservação, além de afetar de outras maneiras e integridade de TIs já demarcadas e o direito de usufruto dos índios aos recursos naturais nelas existentes.
Além de violentar direitos constitucionais de segmentos vulneráveis da população, a PEC 215, se aprovada, trará para o âmbito do Legislativo cerca de 1,6 mil processos de oficialização de TIs, quilombos e unidades de conservação. O exame de tantos processos levaria mais de um século, dado o curso normal dos trâmites legislativos. Parte desses processos que se converteriam em projetos de lei encontra-se parada na Justiça. Assim, a inserção do Congresso nesses casos pode torná-lo parte em centenas de ações judiciais.
A bancada ruralista reúne mais de 200 deputados federais, além de alguns senadores, mas dispõe de um núcleo duro, com algumas dezenas de parlamentares, que é mais mobilizado e acaba impondo suas posições, mais radicais e irracionais. No entanto, estima-se que a maioria dos deputados, inclusive muitos dos que integram formalmente a bancada, acabarão optando por propostas passíveis de consenso e de efetividade na solução de conflitos, a exemplo dos senadores.
Assim, a estratégia escolhida pelo núcleo duro ruralista é a de aprovar a PEC 215 na Comissão Especial, deixando-a em condições de ser votada pelo plenário, e retardar a análise da PEC 132, tentando sonegar ao plenário a opção pela solução consensual. Os ruralistas prometem votos pela sustentação do combalido presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), junto ao Conselho de Ética, para que ele legitime a estratégia em curso. Cunha enfrenta graves denúncias de corrupção e irá precisar de todo apoio possível para manter-se à frente da Câmara.
A PEC 215 vem sendo usada como instrumento de chantagem e pressão da bancada do agronegócio contra o governo na luta pela conquista de seu principal objetivo: alterar as normas que regulam os procedimentos demarcatórios das TIs de modo a paralisá-los definitivamente, de preferência com a possibilidade de reverter os já finalizados. Acrescente-se que para uma parte dos ruralistas radicais nem mesmo interessa uma solução para os conflitos envolvendo índios e produtores rurais, já que eles justificam sua retórica inflamada, são fonte de votos e apoios políticos.
Resta ao movimento indígena e aos seus aliados denunciar publicamente, e para o conjunto dos deputados, a farsa promovida pelos ruralistas radicais com o claro objetivo de inviabilizar a mediação construída pelo Senado e, com isso, a retardar a solução dos conflitos que se agravam no Mato Grosso do Sul e em outras regiões do país, preservando os seus próprios palanques eleitorais.