A imprensa e a questão indígena na era Dilma

Por Maurício Caleiro*, Observatório da Imprensa

A denúncia contra o Estado brasileiro na Comissão de Direitos Humanos da OEA por tratamento cruel e desumano dispensado às populações indígenas, ocorrida na última terça-feira (20/10), passou virtualmente em branco na imprensa nacional.

Já as vaias que a presidente Dilma Rousseff recebeu na abertura dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, em Palmas, três dias depois, foram tema de manchetes nos sites de jornais e revistas, recebendo cobertura mais discreta na versão impressa dos veículos de alcance nacional.

Para além do comportamento da imprensa em tais eventos, o que nos interessa aqui examinar é como ela tem tratado – ou deixado de tratar – as razões que sustentam tanto a denúncia na OEA quanto a motivação das vaias. Que vão desde a violação impune das terras indígenas, passam pela violência recorrente que não distingue homens, mulheres e crianças, atingem a dramaticidade da mortandade infantil e dos recordes de suicídio e culminam com o que não poucos especialistas do tema qualificam como genocídio.

Informações escondidas

A maioria dessas denúncias sequer chega a ser noticiada pelas publicações de alcance nacional, só vindo à tona graças à atividade jornalística de sites como o do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), e à ação, na internet, de coletivos e cidadãos interessados na causa indígena, os quais têm no trabalho do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro uma de suas referências centrais.

Tal omissão midiática, que confirma um histórico de desatenção para com a questão indígena, vai na contramão do reconhecimento que, nas duas últimas décadas, esta tem recebido internacionalmente, no bojo da ascensão das reemergência das pautas ecológicas, da ascensão da biopolítica e do advento dos Direitos Humanos de quarta geração.

Tal omissão jornalística é particularmente grave por se dar em um momento de acirramento de tensões e conflitos. Pois, bem antes da denúncia à OEA, os dois governos Dilma já vinham sendo sistematicamente acusados de negligência e de violência contra os índios.

Em dezembro de 2012, a Polícia Federal invadiu uma aldeia em Alta Floresta (MT) e matou Adenílson Krixi Munduruku, ferindo gravemente outros dois índios e sendo acusada, conforme noticiado pela imprensa alternativa, de emprego excessivo e gratuito de violência.

Um ano e meio depois, em Belo Monte, epicentro dos conflitos na Amazônia e obra-símbolo do modelo desenvolvimentista arcaico, estilo “Brasil Grande” da era petista, a Força Nacional foi acusada de atirar bombas e balas de borracha contra os índios que protestavam, suscitando investigação do Ministério Público Federal.

Choque assimétrico

No bojo e para além de tais graves eventos, um conflito latente marca a relação dos governos Dilma com a questão indígena, advindo da contraposição entre a visão tecnocrata e antiecológica que vinha caracterizando o modelo desenvolvimentista brasileiro pré-crise econômica – baseado no consumismo e em megaobras energéticas -, e o perspectivismo ameríndio que informa a concepção de mundo indígena, para quem a preservação de suas terras e da fauna e flora circundantes afiguram-se não só essenciais à própria sobrevivência (mesmo se esta se der em diferentes graus de relação com o capitalismo vigente), mas à sobrevivência do próprio mundo.

Uma versão seminal de tal conflito estava, de certa forma, configurada já no embate pré-presidencial petista que, em 2006, opôs a “gerentona” Dilma e a “ecológica” Marina Silva. A escolha de Dilma como candidata representou, em si, a vitória de tal visão ultrapragmática e infesa a reivindicações de cunho ecológico (as quais são vistas como meros empecilhos).

O desastre ambiental que é Belo Monte e a pior política indigenista desde o período militar derivam de tal processo, que vem se alastrando ao longo dos dois mandatos da atual presidente e atingem o escárnio com a nomeação para o ministério da Agricultura – na cota pessoal de Dilma, e não por imposição da aliança – da ruralista Kátia Abreu (PMDB/TO), apelidada de “Miss Motosserra” e contra quem pesam acusações de trabalho escravo, crime ambiental e grilagem de terras. Não por acaso, tal nomeação foi interpreta por setores indigenistas como uma senha ao ruralismo para a violação impune das terras demarcadas.

Esse cenário de pesadelo é resumido pela matéria da revista Exame sobre as vaias nos Jogos Indígenas com uma frase-pérola: “Dilma tem uma relação de pouca proximidade com a causa indígena”. Mais do que um eufemismo, trata-se de amenização indevida e desinformada.

Seria, no entanto, inexato afirmar que a imprensa negligencia por completo a violência contra os povos indígenas. Ainda que com raridade, ela até aparece, aqui e acolá, nas páginas das publicações nacionais: com viés policial na cobertura dos conflitos de terra; nas projeções econômicas sobre os fatores delimitantes para a expansão do agronegócio; ou, por conta do alto índice de mortandade infantil e de suicídios, como nota de rodapé de reportagens sobre saúde.

Vícios e desafios

O problema, que deriva diretamente da aliança cada vez mais forte entre as corporações de mídia e o grande capital, é a ausência de cobertura sistemática, a omissão ante a gravidade do drama humano e da violação de direitos, e a manutenção da questão indígena em um terceiro plano em termos de escala de valores editoriais – sobrepujada, em primeiro lugar, pela prioridade aos desígnios do mercado financeiro; e, em segundo, pelos ditames da supremacia econômica expansionista do agronegócio.

Uma imprensa que efetivamente cumprisse suas funções públicas haveria de fornecer a seus leitores informações e análises que, cotejadas, permitissem um melhor entendimento do necessário equilíbrio entre as demandas comerciais e mercantis do agronegócio, a obrigatoriedade de respeito aos direitos indígenas em sua plenitude, e a importância de que o governo exerça com imparcialidade e determinação o seu papel de mediador e de responsável pela obediência aos preceitos constitucionais.

Evidentemente, não é o que ocorre – muito pelo contrário – nem na imprensa, nem no governo, como ficou patente, uma vez mais, no comportamento do representante do governo brasileiro ante as graves acusações feitas à OEA, as quais limitou-se a rebater com respostas protocolares e lacunares, além de vagas promessas.

E, se mantidos, os interesses e omissões que regem o tratamento da questão indígena – e sua cobertura pela imprensa – podem vir a ser decisivos em um futuro muito próximo.

A hora decisiva

Pois estamos em um momento em que algumas das piores previsões relativas à construção da usina de Belo Monte começam a se confirmar – como a ausência de meios de subsistência para os ex-ribeirinhos deslocados à força para conjuntos habitacionais periféricos, longe do rio de onde tiravam seu sustento. Com isso, cresce o receio pelo destino das três tribos que sobrevivem às margens dos 100 quilômetros de rio que deixarão de ser navegáveis e terão o volume de peixes drasticamente reduzido.

Ainda mais ansiedade desperta a possibilidade de que a PEC 215, que transfere da União para o Legislativo a prerrogativa de demarcar terras indígenas, venha a ser em breve aprovada pelo Congresso. Dado o conservadorismo do atual parlamento, repleto de deputados e senadores ruralistas ou com laços com o agronegócio, afigura-se iminente tal probabilidade, que para lideranças indígenas e especialistas equivaleria, na prática, à legalização de um extermínio.

*Mauricio Caleiro é jornalista e doutor em Comunicação pela UFF.

Imagem: Reprodução do TRF-4

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