Por Cidinha da Silva, DCM
O professor me contou que fazia compras no Atacadão de Cajazeiras XI num belo domingo de praia, quando o serviço de auto-falante anunciou: caros clientes, o Atacadão pede desculpas pela demora na fila dos caixas, mas, como os senhores sabem, hoje é dia de prova do ENEM e as empresas são obrigadas por lei, a liberar seus funcionários.
Eu e o amigo especulamos, e se não fosse obrigatório? A moçada seria liberada? Cremos que a espetacularização anual da tristeza e desalento, às vezes desespero, das pessoas que chegam atrasadas ao exame e encontram os portões fechados, responde parcialmente à pergunta. Afinal, são mulheres e homens, nem sempre jovens, um povo periférico e negro, a quem a consolidação do ENEM como forma de seleção para a Universidade garantiu o sonho de cursá-la.
É uma gente a quem o transporte público atende de maneira traiçoeira e ainda mais restritiva nos finais de semana. Como? Você não sabe? O número de carros é diminuído e o espaçamento entre um e outro alargado. Em muitos casos os ônibus de determinados trajetos são simplesmente recolhidos à garagem nos domingos e feriados, ou seja, as empresas de transporte só oferecem seu precário serviço à população nos dias “úteis”.
Trata-se de uma turma que os pais não levam de carro até a porta dos locais de prova e que não receberá curso de línguas no exterior como prêmio de consolação, caso fracasse. Um pessoal que precisa negociar duas horas de antecipação na saída do trabalho e, como se não bastasse, pela Lei de Murphy, pelo patrão ou pela falta de solidariedade dos colegas que o julgam esnobe por desejar a universidade, sempre rolará um imprevisto na hora H.
São mulheres que só saem do lar depois de deixar a comida pronta para os filhos; que dependem do favor de alguém que dê uma olhada nas crianças enquanto elas fazem a prova e correm para retornar à casa. Trabalhadoras domésticas só são liberadas do trabalho depois de deixar fresquinho o almoço dos patrões, ou de cumprir a rotina de passeio e banho do cachorro da casa.
Apesar da mídia empenhada em humilhar os candidatos atrasados há esperança de que temas mais relevantes do ENEM mereçam holofotes na imprensa, tais como o pensamento de Simone de Beauvoir sobre como nos tornamos mulheres e de como a violência de gênero, imposta ao longo da vida, é marcante na construção dessa identidade. Ou o pensamento da feminista chicana Glória Anzaldúa na prova de inglês. Quem sabe a auto-cartografia social dos povos e comunidades tradicionais da Amazônia que georreferenciam sua própria presença e transformação no território.
A atualidade do pensamento de Paulo Freire abordada na prova também merece atenção, a poesia impressa no saco de pão, bem como o fantástico e oportuno tema da redação, a persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira, entre outras preciosidades. Todos, sinais evidentes de que estudantes precisam exercitar a reflexão e a expressão do respeito ao humano e convivência com o diverso e contraditório. Oportunidade única para as pessoas expressarem suas idéias, sustentando-as com argumentos dinâmicos e convincentes, sem ferir os direitos humanos, por suposto.
À gente que sai do Coque e da Bomba do Hemetério; de Neves e Contagem; da Maré e de Belford Roxo; de Cidade Tiradentes, Pantanal e Carapicuíba; de Fazenda Coutos, Itinga e Sussuarana; de Chaparral e Ceilândia em direção ao centro de Recife, de Belo Horizonte, do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Salvador e de Brasília para as provas, tal qual Agostinho Neto no poema escolhido pela equipe do ENEM, eu vos acompanho pelas emaranhadas áfricas do nosso Rumo. E vamos nós, significativa parcela dos sete milhões de candidatos-leitores, com Pixinguinha, saravar Xangô.
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Imagem: Fechamento dos portões na Uninove (SP) / Crédito: Renato Ribeiro da Silva-Folhapress