Na base do projeto de lei 5069 há uma concepção medieval: a de que mulheres são seres suspeitos, de palavra inconfiável e corpo frequentemente pecaminoso
Por Alyson Freire, em Outras Palavras
A admissão do projeto de lei (PL) 5069/13 do deputado Eduardo Cunha pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados na última quarta feira, 21/10, mostra como ainda não estão consolidados os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. O projeto é animado por um ímpeto de negar atendimento às mulheres e meninas vítimas de violência sexual. Prevê, mesmo nos casos em que o aborto é permitido, punição aos profissionais de saúde que facilitarem este procedimento. Revela que persiste enorme dificuldade de reconhecer as mulheres como seres autônomos, pessoas plenas e capazes racional e moralmente de se responsabilizar por suas próprias ações e decisões – especialmente no que diz respeito às gestações.
As novas restrições tencionadas pelo projeto para dificultar o acesso aos procedimentos abortivos — no caso, previstos em lei – atingem, no entanto, mais do que o reconhecimento da autonomia feminina. Elas colocam em suspeição o valor da palavra das mulheres, e, nesse sentido, a violação do corpo e da palavra podem formar, com o auxílio das instituições, um mesmo e perverso golpe.
O PL pretende exigir das vítimas de estupro a submissão a exame de corpo de delito e registro de boletim de ocorrência para comprovar a violência sexual. Sua palavra já não basta. De maneira cruel, acrescenta-se uma segunda violência e violação à vítima. Dessa vez, uma violência que parte das próprias instituições que deveriam resguardar e garantir o respeito a integridade e o reparo ao dano físico e psicológico que vítimas sofreram de modo tão traumático. Há uma evidente má fé institucional nessa iniciativa de lei, que passa por cima das dores e desconforto das vítimas, porque não lhes reconhece direito pleno à verdade e aos seus próprios corpos. A suspeição sobre as palavras das mulheres por meio de procedimentos de poder visa regular os corpos femininos, não apenas como agentes não-autônomos, mas como espaços perigosos e frágeis no tocante à verdade. O que, com efeito, reforça a condição de subordinação, na medida em que não reconhecer um discurso, ou melhor, um sujeito como digno de confiança e verdade significa rebaixá-lo e submetê-lo ao poder de outrem.
Nossa sociedade, como mostrou o filósofo Michel Foucault, é dominada por uma vontade de verdade – quer dizer, pela atuação de procedimentos e mecanismos variados que pretendem controlar, selecionar, excluir e organizar os discursos como verdadeiros e falsos, e, assim, conjurar seus poderes e perigos. Aquilo que é dito como verdade, que reivindica a condição de verdade, tem de se apoiar numa rede de poderes e passar por constrangimentos variados que o sancionem na condição de um discurso verdadeiro. Ora, na “política geral da verdade” das sociedades ocidentais, nos jogos de poder entre o verdadeiro e o falso, as mulheres são historicamente enxergadas como forças ambíguas e potencialmente ardilosas, que podem embaralhar e confundir os juízos. O PL de Cunha está dentro dessa maquinaria de poder que regula os discursos, ou melhor, reforça a subordinação e exclusão das pessoas com base na deslegitimação de sua palavra e discursos como sendo insuficientes e suspeitos.
Nesse sentido, poder-se-ia afirmar que a exigência dos exames de corpo de delito e do Boletim de Ocorrência são procedimentos de poder que retiram das vítimas à condição de sujeito em relação à verdade – a de sua própria experiência de violação. Essa verdade deve ser buscada não na fala da vítima, mas arrancada do seu corpo, um corpo mudo, ou melhor, emudecido. O discurso da vítima não interessa, não há nada o que de relevante ouvir e aprender com ele, porque esse discurso não é confiável. O que importa são as marcas internas no corpo e o discurso que o poder enuncia a esse respeito. São eles que sancionam a verdade, que atestam sua materialidade. A vítima é só um corpo, talvez até um corpo mentiroso, mal-intencionado. Ele não pode dizer a verdade. Então, é preciso purgar a verdade em relação ao corpo que a tenta dizer. Um corpo enxergado como duplamente maculado: primeiro, por ser feminino, segundo por ter sido violado. Não é simplesmente a palavra o que se nega, mas o reconhecimento insuspeito de que aquele corpo possa emitir uma verdade segura e confiável. Então, a verdade para surgir em sua luz natural precisa ser purificada dos pecados desse corpo que a esconde. Pecados de diversas ordem: pecado de ser mulher, pecado sexual.
Trata-se, com efeito, de uma verdade que, mais do que confessada, precisa ser arrancada do corpo. E por quê? Por estar em um corpo suspeito e perigoso que precisa ser devidamente regulado e controlado, pois, por ser o que é, isto é, um corpo feminino, está envolto de desconfianças. A palavra não vale o mesmo, nem ela é avaliada sem referência aos sujeitos que a enunciam. Existe uma estrutura desigual de legitimidade e confiabilidade da palavra. E, nessa estrutura, as divisões de gênero, como as de raça e classe, são historicamente constituintes para definir o lugar e a legitimidade social do verdadeiro e do falso em nossa sociedade.
De um ponto vista cultural mais amplo, o PL de Eduardo Cunha se inscreve e alça ao presente um imaginário social profundamente obscurantista em relação às mulheres. É como se fosse necessário buscar, por trás de suas palavras e intenções, algo que elas podem esconder. Por isso, a proposta lembra, em certa medida, o Malleus Maleficarum (“Martelo das Bruxas”), infame manual inquisidor do final de 1487, sobre como identificar e reconhecer bruxas e feiticeiras. Cunha, como os inquisidores, concebe-se em uma cruzada moral como um caçador de “bruxas”, das “bruxas” abortistas, que querem ludibriar os poderes com os seus feitiços.
Na história do Ocidente, em suas mais diversas culturas, pesou desde muito, sobre as mulheres e seus corpos, um conjunto de imagens e narrativas que as estigmatizaram como o lugar da malícia, do ardil, da tentação, do perigo, do mistério e da perdição. O corpo da mulher foi representado sistematicamente como habitado por forças e qualidades perigosas que facilmente poderiam conduzir ao erro, à injustiça, à mentira. Nas mitologias, as mulheres, como Pandora e Eva, são a porta do mal pelo qual entraram no mundo o pecado, a morte e a desgraça. Nos cantos das sereias de Homero ou nas armadilhas de Cila e de Caríbidis, a ideia dos perigos terríveis capazes de desencaminhar por completo os homens em seus objetivos.
Os julgamentos inquisitoriais sobre as bruxas e seus exercícios e técnicas de apuração exprimem a tensa relação de poder e desconfiança que se construiu sobre as mulheres no Ocidente. O corpo feminino foi construído culturalmente como algo diante de que deve-se ter cuidado e cautela para não ser por ele enganado, tragado, contaminado, seduzido. A dissimulação, a mentira, o fingimento, o feitiço, o veneno, a vingança seriam artes diabolicamente femininas. No Ocidente, portanto, há um medo e ansiedade históricos em relação às mulheres e ao seu corpo.
Além de todo os jogos de poder e interesse presentes nas atuais correlações de força entre congresso e governo, subjaz um imaginário social misógino que sustenta moralmente, num nível tácito, as concepções e decisões de apoio e legitimidade ao dito PL de Eduardo Cunha, fazendo com que ele prossiga tramitando na Câmara.
Este imaginário está, também, na raiz de nossa dificuldade histórica de reconhecer nas mulheres pessoas plenas e integrais em suas faculdades. O Projeto de Lei 5069/13 atenta contra uma condição fundamental para a formação de um sentimento de autonomia e identidade, qual seja: o controle sobre seu corpo e o respeito social por suas decisões e projetos de vida.
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* Pesquisador do Núcleo de Estudos Críticos em Subjetividades e Direitos Humanos (NUECS-DH) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e professor de Sociologia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (Campus Macau-RN).
Destaque: Quatro mulheres — três das quais, bruxas — numa gravura medieval.