– Você não tem vergonha de escrever aquelas bostas no seu blog?
Eu, que ando sem paciência alguma por conta de questões pessoais, olhei o transeunte com um misto de cansaço e uma certa resignação. Afinal de contas, sei onde moro… Se fosse um outro dia, teria tentado engatar um longo e saudável diálogo, que é o melhor remédio para a incapacidade crônica de conviver com a diferença.
Por exemplo, há algumas semanas, depois de ouvir um monte de coisa ruim de uma mulher no supermercado, não me dei por rogado e resolvi bater-papo. Ela se assustou, afinal de contas, essa não é a etiqueta de haters na internet: a gente tem que aceitar ser xingado e/ou xingar de volta. O que fazer, diante de um afável “querida, vamos conversar um pouco?” Daí, saí atrás dela pelo corredor de higiene pessoal, pedindo para que falássemos um pouquinho. Ela acelerou o passo ao chegar nos detergentes e, dando uma corridinha, optou por virar – de forma espantosa – à esquerda. Infelizmente, a perdi entre seção de peixes e a de leite em caixinha.
Mas dessa vez, queria apenas seguir meu caminho e ir até a lotérica para fazer um jogo da MegaSena. Sei que tenho mais chance de ser atingido por um meteoro do que ganhar nessa bodega, mas como tenho torcido muito para que o meteoro realmente venha e dê reset no planeta, acho que minhas chances sobem.
– Do que você está falando, meu amigo?
– Daquelas coisas bolivarianas e comunistas que você escreve?
– Me dá um exemplo que tento melhorar (#ironia).
– Você ataca a família. Não quero meu filho aprendendo a ser gay na escola com essas doutrinas. Você também fica defendendo vagabundo. Tinha que deixar a polícia resolver isso tudo. Por que você não fala da classe média que é quem é passa necessidade de verdade nesse país?
Aprendi que tenho que ficar a uma distância de segurança desses personagens. Pelos perdigotos, pela integridade física. No ano passado, uma me reconheceu, abriu a janela do carro, gritou “volta pra Cuba, filho da puta”, e cuspiu na minha direção. Não deu tempo de explicar que minha mãe faz salgados para festa, portanto, não é puta. E que putas são trabalhadoras que merecem todo o respeito. Quem não merece respeito é quem cospe nos outros. Mas ao menos, do episódio nasceu a ideia do Havana Connection, por isso a ela sou imensamente grato. Já, há algumas semanas, um jovem do tamanho de um armário me acertou uma ombrada na rua que quase me desconjuntou para depois sair rindo com os amigos por ter batido no comunista. Bater em mim é fácil, queria ver ele fazer isso com o Minotauro.
Existe uma diferença grande entre ameaças que chegam por via digital e a interação física, que demanda uma certa coragem (ou loucura) por parte do interlocutor. Mas o clima de polarização e de justiciamento diante da insatisfação está batendo nas tampas e, ao mesmo tempo, a percepção da fraqueza ou inutilidade das instituições públicas abrem a porteira dos dodóis.
Quem acompanha este blog sabe que, há tempos, sou perseguido em restaurantes, na rua, em aeroportos, dentro e fora do país – já tratei desse comportamento bizarro algumas vezes por aqui. Na maior parte do tempo, é divertido. O problema é quando as ações diretas acabam descambando para a violência ou as ameaças são executadas.
Por conta do risco, autoridades brasileiras e as Nações Unidas já foram informadas e há investigações que irão surpreender. Pois liberdade de expressão é uma coisa, já ameaças e agressões são outras.
Voltando ao senhor que usava um suéter:
– Você sabe que meu blog é sobre direitos humanos, né?
– Direitos humanos é coisa de comunista! É coisa de bolivariano!
– Meu amigo, isso é bobagem. Os direitos humanos modernos são uma referência mínima para garantia de um conceito bem ocidental de dignidade e nasceram no seio do liberalismo. A própria Declaração Universal das Nações Unidas, de 1948, sofreu resistência do bloco soviético na época por conta, entre outros temas, da presença da propriedade privada como direito humano.
Ele me olhou por um tempo, meio perdido e respondeu:
– A gente não precisa de liberalismos por aqui, de comunistas dizendo o que a gente tem ou não que fazer, de pouca vergonha. Na minha casa e na minha empresa não entram liberalismos.
Daí, desisti. Decidi fazer um jogo de Loteca também. E torcer para o meteoro.
A moral da história é: Você, irresponsável, que veicula desinformação, ignorância e estupidez pelas redes sociais, saiba que esse homem chegou a esse fundo do poço graças à sua ajuda. Espero que tenha muito orgulho disso. Pois a questão não é ser progressista ou conservador, mas é circular informações equivocadas, muitas delas com potencial para gerar violência – física ou simbólica. O que dói mais não é ser cuspido ou agredido na rua, mas saber que isso está sendo feito com base em desinformação distribuída com o objetivo de criar um exército de zumbis.
Ao mesmo tempo, congratulações aos veículos de comunicação que insuflam o Fla-Flu político sem se preocupar que seus leitores não foram formados para serem leitores. Muitos não veem necessidade em buscar pluralidade nas fontes que lhes informam e acreditam que estão sendo municiados para uma guerra.
E parabéns também aos outros tantos que sabem que tudo isso acontece, mas preferem ficar dentro de sua bolha na rede social, achando que o mundo lá fora é a barbárie e tudo o que você precisa está no seu bar vilamadalenizado ou no seu grupos de amigos praianos.
Pois a ignorância coletiva precisa, para se reproduzir, do silêncio dos que têm consciência, mas não falam.