Guilherme Boulos, do MTST, aposta: agravamento das condições de vida levará maiorias a buscar saída não-capitalista. Por isso, é possível vencer os conservadores nas ruas
Entrevista especial à Redação de Outras Palavras
Na última quinta-feira (8/10), quando o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), comandou o lançamento da Frente Povo Sem Medo, num ato em São Paulo, houve quem estranhasse. Há muito, os sem teto criticam a recusa da esquerda que hoje ocupa o governo a estimular a mobilização por mudanças estruturais no país. Apontam o acomodamento desta esquerda à política dos palácios. Denunciam a opção do segundo governo Dilma por um “ajuste fiscal” que corta direitos sociais, enquanto multiplica o pagamento de juros à oligarquia financeira. Por que motivo, então, fariam também parte da Frente Povo Sem Medo (aqui, sua Carta Convocatória) organizações claramente identificadas com o apoio ao governo, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e União Nacional dos Estudantes (UNE)?
A terceira parte da longa entrevista concedida a “Outras Palavras” por Guilherme Boulos, integrante da coordenação nacional do MTST, concentrou-se neste tema. Boulos parece pensar, em resumo, o seguinte:
> A tradição de lutas construída pelos movimentos sociais brasileiros nas últimas quatro décadas é bem mais importante que a paralisia atual de alguns dirigentes. Estes não serão capazes de sustentar por muito tempo sua atual posição – em especial num cenário em que as políticas do governo atacam conquistas, mergulham o país em recessão e se tornam impopulares ao extremo.
> A dinâmica econômica e política que surgirá logo adiante também dificultará o esforço dos conservadores por cooptar o descontentamento. A força exibida pela direita nas ruas, há alguns meses, decorre essencialmente de seu poder – em especial o controle que exerce sobre os meios de comunicação. Mas esta capacidade de atrair será esvaziada quando a crise se agravar e a elite não for capaz de apresentar respostas que satisfaçam as maiorias. Basta ver que, apesar de disputarem encarniçadamente o aparato de Estado, governo e direita estão unidos na defesa do “ajuste fiscal”.
> Vale apostar nas lutas, e na capacidade das multidões de aprender com elas. O MTST, que viu nas Jornadas de Junho de 2013 um momento positivo de evolução política, pensa que a ofensiva conservadora não será superada por meio de reacomodações no governo – mas pode ser vencida nas ruas.
> Os sem-teto, contudo, não querem ser parte de uma esquerda sectária, que faz discursos radicais mas é incapaz de mobilizar a sociedade. “Eu não vi estes que nos criticam colocarem 50 pessoas na rua para enfrentar a terceirização”, diz Boulos.
Ao desenvolver este raciocínio, durante a entrevista, o coordenador do MTST foi confrontado por uma questão crucial. Como esperar a “educação política por meio das lutas” se os conservadores podem, hoje, apontar para o governo e alegar, de modo simplista, que “o pessoal de vermelho” e responsável pela crise? Sua resposta a esta e outras perguntas, assim como sua exposição detalhada sobre as formas de passar do cenário político atual para outro, mais favorável, estão a seguir. (A.M)
Seu raciocínio, segundo o qual falta algo mais que a razão à esquerda tem mais a ver com a psicanálise do que com a política, não é? Você parece querer dizer que se a vida se resolvesse na teoria, na racionalidade, seria muito fácil convencer as pessoas.
Isso é a psicanálise, mas também é Marx. A história não é movida por razão, não é feita de bons argumentos. A história é feita de força. Tem uma frase boa do Robert McNamara, ex-secretário de Defesa norte-americano: “Se nós tivéssemos perdido a guerra, nós teríamos sido o que os nazistas foram: criminosos de guerra.” Isso vai definir se você estava certo ou não.
E como a gente vai convencer as pessoas se não com bons argumentos? Nosso discurso, que em teoria é coerente, é um discurso racional, sustentado por dados da realidade, não tem conseguindo levar massas a rua e promover mudanças.
Não quero ser mal interpretado, como se estivesse dizendo que não precisamos ser racionais. Isso não nos falta. Nos falta outro aspecto, a condição de sustentar isso. Nosso dilema não se resolve na teoria. Esse dilema que você coloca, do ponto de vista racional, não tem solução, certo?
Não há saída para ele do ponto de vista teórico. A saída para resolver é a prática. Evidentemente, encontramos uma série de obstáculos, de condições desfavoráveis. Uma delas é o controle da mídia. Quando falo que o que importa na história é a força, estou falando também de força ideológica, força de convencimento. Hoje, mais que nunca, essa força é o aparato midiático. É um problema que temos. Vamos conseguir reverter esse aparato midiático por meio de uma disputa judicial ou por meio do parlamento? É o mesmo que acreditar em Papai Noel.
Como a gente consegue enfrentar isso? Criando novas correlações de força na sociedade. E relações de forças estão calcadas em capacidade de mobilização. Sempre vai haver relações de força mais e menos favoráveis. Fortalecer um campo com ideias de esquerda e capacidade de mobilização popular, incidindo na política, já é um contrapeso na relação de forças. Primeiro, para impedir que haja retrocessos e, segundo, para dar base social à construção de avanços. O caminho é este: reconstruir mobilização social e força social.
Os movimentos sociais são cruciais para isso. Mas qual a relação deles entre si? MTST com MPL, MTST com MST? Críticas recíprocas atrapalham?
Críticas não devem ser nosso problema. Críticas vão existir, é importante que existam. O que as críticas não podem é bloquear um processo de unidade em relação ao que é crucial, ao que se tem consenso e acordo. A esquerda se acostumou a valorizar mais o desacordo do que as estratégias comuns.
Mas é a história da esquerda, não?
É a história de certa esquerda. A história nos serve para avançar, para romper com vícios que só nos atrapalham. Temos um ranço sectário em parte da esquerda brasileira. Uma esquerda que diz, quando você denuncia uma ofensiva conservadora: “Ah, você está querendo legitimar o governo do PT”. Por mais que você fale que você é contra o governo do PT, contra o ajuste fiscal, que você vai para cima do governo do PT, que você coloque 50 mil pessoas nas ruas contra o governo do PT. “Não, se está dizendo que tem uma ofensiva conservadora é porque quer legitimar o governo.”
Certas correntes dizem que o MTST é um braço do PT nas ruas.
Quem faz esse discurso é o Reinaldo Azevedo e uma parte de uma ultra esquerda, que não representa 1% da capacidade de mobilização da esquerda brasileira, que já é pequena.
Nós temos um segmento que talvez grite nas redes sociais, construa textos interessantes em alguns blogs, consiga articular um discurso de enfrentamento muito fácil. Mas que eu não vi esses mesmos que dizem que o MTST é ligado ao PT colocarem 50 pessoas na rua para enfrentar a terceirização. Nosso desafio é construir um espaço de unidade onde caibam amplos setores dispostos a compor uma plataforma comum.
O MTST tem buscado construir esse espaço em uma frente pelas reformas populares. Desde o ano passado, temos feito um esforço contínuo, procurando e dialogando com um conjunto de setores sociais para que se forme uma frente de mobilização. É nisso que estamos empenhados. Estamos fora da ideia de uma frente política, querendo dar muleta para o projeto de governo do PT em 2018. Estamos dispostos a construir uma frente de movimentação social para reconstruir a capacidade da esquerda e alterar a relação de forças no país, ter um programa estratégico de reformas populares e mudanças radicais no Brasil.
Faz um ano que estão tentando. Qual o balanço?
Houve passos importantes, mas colocar milhares de pessoas na rua é mais importante que fazer 200 reuniões. No final de novembro do ano passado, no princípio da ofensiva conservadora, colocamos 20 mil pessoas na rua em ato “Contra a direita, por mais direitos”. Num ato extremamente unitário, onde estavam MST, MTST, CUT, PSOL, estudantes das mais variadas matizes, a juventude progressista. Construímos no começo do ano uma série de mobilizações contra o ajuste fiscal. Construímos em 15 de abril grandes atos, um deles emblemático, com 40 mil pessoas contra terceirização por uma pauta de reformas populares. Em 29 de maio, com o movimento sindical fazendo paralisações, o MTST ocupou dezenas de agências da Caixa pelo país contra o ajuste fiscal. São passos. Unidade se constrói na luta. Estamos respeitando os ritmos e as diferenças, sem afobação.
Ou seja, vocês consideram CUT e esses movimentos mais atrelados ao PT como parceiros nesse projeto?
Parceria se constrói através de programa. Se esses movimentos estiverem dispostos a compor um programa autônomo, independente do governo, que faça uma crítica categórica a esse “ajuste fiscal”, que tem um programa de reformas populares para o país e que, ao mesmo tempo, entenda que o enfrentamento da ofensiva conservadora não é legitimar esse governo, nós achamos que é possível sim.
Mas, e o símbolo? Porque, racionalmente, você já nos convenceu a todos. Mas esse discurso não está colando nas ruas, tem alguma coisa que os conservadores estão conseguindo sensibilizar melhor que a gente – e que não está no campo da razão.
Talvez essa força simbólica tenha a ver muito mais com uma desigualdade de condições do que com o fato de a gente não ter construído uma simbologia que seja mais atraente para puxar as pessoas em defesa do nosso projeto. As mobilizações que a direita construiu são maiores que as nossas. Foram convocadas ostensivamente pelos maiores canais de televisão.
Mas essa vantagem eles sempre terão – e em outros momentos nós conseguimos mobilizar mais do que eles.
Pois é. Nesses outros momentos, nós tínhamos um processo de ascenso nas mobilizações sociais. E esse ascenso de mobilizações sociais, embora haja aí uma força simbólica, está relacionado também a condições da dinâmica econômica e política. A crise econômica que estamos vivendo ainda está engatinhando no Brasil. Se nós estamos achando severo esse ajuste – e de fato ele é –, pior será o que está por vir. A tendência é que nos próximos dois anos a gente tenha um aprofundamento de recessão.
Em tese, a rua não é da direita.
Claro que o cara que está desempregado, o cara que se ferrou com esse ajuste fiscal, está sujeito hoje a comprar o discurso da Globo, em vários sentidos. Mas a tendência é muito mais ele ir pra rua fazer greve, fazer paralisação pelos seus direitos, com as formas históricas de mobilização da classe trabalhadora, do que ele ficar balbuciando apenas o discurso da Globo. Embora esse processo seja contraditório, e ele possa ir à rua fazer greve balbuciando o discurso da Globo, estará na rua fazendo greve. E isso é um fortalecimento do movimento popular e social no Brasil. A crise, contraditoriamente, produz isso também. Um agravamento da crise pode gerar formas mais fortes de resistência. Como o Podemos surgiu, na Espanha? Há 30% de desemprego na juventude e crise estourando. Por que o Syriza ganha eleições na Grécia? Catástrofe, mais de trinta greves gerais nos últimos anos, antes de o Syriza ganhar as eleições. Eu acho que é isso que está em jogo, a crise batendo de uma forma mais pesada.
Agora, esses países tinham governos de direita…
No Brasil, o governo não é popular…
Mas é visto como de esquerda… é a turma “vermelha”.
É a turma vermelha. Eu acho que esse é um tema de simbologia, voltando à sua pergunta original, é um tema de simbologia que precisamos avaliar.
Por isso que é difícil para nós. O Syriza não teria surgido no governo do Pasok, e os Indignados dificilmente teriam surgido no governo do PSOE. Quem começou, nesses dois países, a aplicar medidas de ajuste foram os partidos socialistas, e a primeira reação eleitoral foi uma vitória da direita. O PP na Espanha e a Nova Democracia, de direita, na Grécia. Só depois surgiram Syriza e Podemos.
É o que nós devemos começar a enfrentar aqui no ano que vem… Todos os fatores nos levam a crer que, nas eleições municipais, a direita vai nadar de braçada. O PT vai ser derrotado fragorosamente nas grandes cidades do Brasil. E esse é o problema: o esgotamento do PT não é seguido de uma alternativa de esquerda. Quem está conseguindo capitalizar politicamente o esgotamento do modelo petista é a direita. É o que nós estamos vendo. É o efeito mais dramático da atual conjuntura. E eu acho que, eleitoralmente, em 2016 – embora a Dilma tenha ganho, isso já tenha se expressado em 2014 – nós devemos ter uma eleição de show de horrores.
Falando em eleições, Guilherme, um dia a gente vai ver Guilherme Boulos candidato a alguma coisa?
Não creio. Não é essa a perspectiva. A lógica que se construiu de “carreira política” é essa, né? Esse imaginário é justificado, tem mil exemplos nos quais se respaldar. Não dá para condenar as pessoas que fazem, de nós, esse juízo precipitado. O histórico do movimento social brasileiro incorporando-se a uma tática de integração institucional nos últimos vinte anos é precisamente isso. É o surgimento de lideranças sociais, que se desenvolvem, constroem legitimidade e, com isso, disputam uma estratégia parlamentar e se candidatam.
Eu acredito firmemente que essa estratégia está esgotada. A construção do movimento em que eu atuo é de enfrentamento a essa estratégia. Estou no MTST há treze anos. Oportunidades para sair candidato existiram. Condições de eleição, imagino que também, pela capacidade de mobilização do movimento. Mas o movimento se constrói precisamente em enfrentamento a essa estratégia institucional. E isso não é só o discurso. É nesse sentido que, no caso do MTST, no meu caso, acho que essa acusação é leviana: ela não observa a prática do MTST.
A gente vive um momento de grande desconfiança não só do político em si, mas uma desconfiança de todas as instituições. Tudo parece que tem uma intenção por trás, e é um discurso que cola muito fácil. Fica muito difícil de construir embates às vezes, porque nada se apoia em nada. Como é que se faz, nesse contexto, para construir algo que depende de um convencimento, inclusive de as pessoas aderirem a certas posições, quando tudo parece estar tão confuso?
A primeira questão que o MTST enfrenta ao chegar numa comunidade e fazer uma assembleia é frisar que não estamos ali para pegar dinheiro de ninguém, nem para apoiar ninguém politicamente. Nem vamos sair candidatos a nada. Convenhamos, é algo justificado. Os trabalhadores do Brasil tiveram motivos para desilusão também. Muitos que chegaram com o discurso de mudança social, de melhorias, de avanço de direitos sociais, estão hoje ganhando o seu às custas da piora da vida do povo. Não surpreende que esse discurso tenha força, porque teve eficácia, parte de algo que de fato ocorreu. Isso se enfrenta na prática. Qualquer argumento é inútil, porque esse discurso, por sua natureza, inutiliza os argumentos. A forma de mostrar isso é o MTST existir há praticamente vinte anos e nunca ter lançado um candidato. E nunca ter cobrado um real de ninguém dentro das ocupações. Isso constrói credibilidade, faz com que esse problema seja menor.
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Foto: São Paulo, 8/10: MTST articula lançamento da Frente Povo Sem Medo