Policiais afirmaram que vigilante morreu ao ser atropelado quando voltava do trabalho para casa em Sapopemba, zona leste de São Paulo. Testemunhas relatam terem ouvido tiros
Por Valdenia Aparecida Paulino, especial para a Ponte Jornalismo
“Bom dia (..) …os policiais estão botando o terror aqui na comunidade… eles atropelaram o Morais que joga no Explosão. Ele estava vindo do trabalho às três da manhã… estava havendo uma fuga, de moto e uma viatura o atropelou… e ele veio a falecer… dizem que o policial estava bêbado… eles levaram o corpo… para dificultar a perícia…” – 11h47 do dia 11/10/15.
“Estão apavorado a população” – 12h08.
“Oi… não foi atropelado ele levou um tiro de ponto 40… eles pioraram a Cena do Crime… Provavelmente” – 16h11.
Essas foram as mensagens que recebi de uma pessoa da favela do Parque Santa Madalena pela manhã do dia de ontem.
Quem era Morais? Seu nome completo é Alex de Morais.
Até anteontem, Morais era um homem com 39 anos, viúvo, pai de um garoto de 9 anos, vigilante, morador na favela do Parque Santa Madalena, zona leste de São Paulo. Filho de dona Francelina, mulher franzina no corpo, mas com grande força em todas as demais dimensões de sua vida, e irmão de Cido.
Trabalhador e brincalhão, assim era conhecido por toda a comunidade. Desde criança, Morais, como era conhecido, era tranquilo, nunca fez uso de drogas ou se envolveu com qualquer situação delituosa. Sempre gostou de trabalhar e jogar bola. Quando adolescente, participou da fundação do time de futebol Explosão, que ele acompanhava até ser executado pela polícia militar.
Morais casou-se ainda jovem, mas quando seu único filho tinha apenas um ano, sua esposa faleceu em razão de um câncer. Desde então, Morais não mais namorou, voltando sua atenção aos cuidados com o filho e com sua mãe. Querido por toda comunidade, por onde ele passava deixava o ambiente melhor com seu bom humor.
Na manhã do dia 10/10, Morais disse feliz para um colega: “Se Deus quiser, logo vou comprar meu carro. Estou trabalhando muito e hoje à noite vou trabalhar em um show no Olímpia. É mais um dinheirinho que entra”.
Assim fez Morais na tarde do último dia 10. Vestiu sua roupa social: calça, camisa e terno, calçou seus sapatos, pegou sua mochila e contente saiu para mais um dia de trabalho.
Morais já deveria saber que ser honesto, ter boa vontade, ser trabalhador e ter seus documentos em ordem nunca seriam o bastante para um jovem da periferia escapar da fúria do Estado, que através de seus agentes, executa sistematicamente os jovens nas periferias.
Mas o que aconteceu?
Era por volta das 2h30 quando Morais voltava do trabalho. Faltando menos de 200 metros para chegar em sua casa, caminhando em direção à entrada da favela, foi surpreendido com um disparo de arma de fogo em sua cabeça, disparado por policiais militares. Caiu ali mesmo. Agonizando tentou falar, mas já não podia.
Com a escuta do tiro, várias pessoas conhecidas de Morais, que estavam na rua e outros em uma festa na proximidade, se dirigiram para o local. Todas puderam ver duas viaturas da polícia militar e os policiais em volta de Morais. A versão dos policiais foi que Morais tinha sido atropelado por uma moto que estava em fuga.
Naquele momento, algumas pessoas pediam para os policiais socorrerem, mas eles diziam que não podiam mexer na cena do crime; outras pessoas imploravam para que os policiais acionassem o SAMU/Resgate, pois Morais ainda estava vivo. Não sabemos se os policiais chamaram, a população o fez.
No curto período de tempo entre o disparo que matou Morais e o socorro, muita gente se aproximou. Apesar da hora, a notícia se espalhou rapidamente, pois tratava-se do Morais, conhecido de todos na comunidade. Com a chegada de outras viaturas da PM, foram desferidos tiros de borracha e gás de pimenta contra as pessoas que se encontravam no local. O Resgate chegou e Morais foi levado para o hospital Santa Marcelina, onde entrou com o histórico de atropelamento.
Os policiais militares registraram a ocorrência na 69ª Delegacia de Polícia com o B.O. n. 8634/2015 às 5:15 do dia 11, como “atropelamento por desconhecido”. Com esse mesmo histórico os policiais apresentaram o caso no pronto socorro do hospital Santa Marcelina para onde Morais foi levado.
Um pouco mais tarde, às 7:00 da manhã, a genitora de Morais, senhora Francelina, acompanhada por Vera e Vicente, chegou ao hospital e foi advertida pelo médico que atendeu seu filho que o mesmo não tinha nenhuma fratura e que nada indicava atropelamento, mas que ele havia sido vítima de um tiro de arma de fogo; que, quando Morais chegou ao hospital, já não se podia fazer nada, embora os médicos tivessem tentado.
Com essa notícia, a senhora Francelina, sempre acompanhada por V. e V., se dirigiu à 53ª DP para registrar a ocorrência do óbito, exigência para a liberação do corpo pelo o Instituto Médico Legal.
Na 53ª DP, insistiram para que o Delegado colocasse as informações que haviam recebido do médico, mas a ocorrência continuou seguindo como se Morais houvesse sido vítima de atropelamento.
Já em sua casa, cabisbaixa, olhar perdido, a mãe de Morais me dizia: “Eles mataram meu filho. Meu filho não foi atropelado”.
Diante da situação, fui orientada a acompanhar a genitora na 53ª DP para pedir que as informações sobre o disparo de arma de fogo fossem acrescentadas no BO. Dada a gravidade das informações, acionamos, enquanto Centro de Direitos Humanos de Sapopemba, uma conselheira do Condepe (Conselho Estadual de Direitos da Pessoa Humana), que nos acompanhou à Delegacia. No caminho, a conselheira acionou o Ouvidor de Polícia para que o mesmo telefonasse ao delegado dizendo que estávamos a caminho. Já na porta da delegacia, o Ouvidor nos telefonou dizendo que o delegado havia dito que não iria acrescentar nada e que estava mudando o plantão.
Não conformados com a resposta, decidimos entrar e conversar com o delegado. No início, encontramos um pouco de resistência, mas logo o Delegado aceitou de fazer um BO “adendo”, que recebeu o n. 7191. Saindo de lá fomos ao IML para levar a cópia do documento, pois entendemos que era necessário o médico legista saber da nova informação. Afinal, o histórico que acompanhava o corpo era de atropelamento e no texto médico do hospital Santa Marcelina fazia-se menção apenas a exposição de massa encefálica. O “adendo” foi juntado à documentação do caso.
A voz corrente na comunidade é que os policiais militares estavam perseguindo dois jovens em uma moto quando atiraram em Morais, que estava a pé, caminhando em direção a sua casa. Segundo uma testemunha, um dos policiais que estava perto do corpo de Morais chegou a dizer “Que besteira eu fiz!”
Fato é que executaram Morais. Mais um cidadão executado no cruel processo de extermínio dos jovens de periferia no Estado de São Paulo.
Com a mesma orientação de outros casos, os policiais tentam, mais uma vez, ocultar sua responsabilidade, atribuindo a terceiros a responsabilidade da execução, ao atribuir aos jovens perseguidos um atropelamento que não aconteceu. Ainda, subestimando a comunidade e os profissionais do resgate, do hospital e do IML, tentam desqualificar uma execução por um atropelamento.
Pensando bem, Morais foi mesmo atropelado. Mas não foi por uma moto. Morais foi atropelado por uma bala de arma de fogo da polícia do Estado, uma bala que não poderá ser chamada de “perdida”. Ele foi “atropelado” por um Estado que faz pouco da vida dos moradores pobres das periferias.
Caído no chão, Morais agoniza e tenta falar, mas já não pode. Sua voz não será silenciada. Falaremos por você, Morais.
Dar a Policia Militar o poder investigativo? Não. Não é isso que entendemos por Ciclo Completo da polícia.