Coordenador regional da Funai, Cristiano Hutter, fala sobre o trabalho nas comunidades indígenas: “Tem um inimigo muito forte do outro lado, que não tem sensibilidade e só pensa em riqueza. Só que essa riqueza um dia terá um basta. Daqui a pouco será rico quem tiver água e mato. As terras indígenas têm tudo isso. Está comprovado que quem conserva as matas não são as unidades de conservação, são as terras indígenas”
Por Daniela Origuela, em Diário do Litoral
Vinculada ao Ministério da Justiça, a Fundação Nacional do Índio (Funai) foi criada em 1967 com o objetivo institucional de proteger e promover os direitos dos povos indígenas no Brasil. Cabe ao órgão promover estudos de identificação e delimitação, demarcação, regularização fundiária, registro, fiscalização e monitoramento das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. É também de sua competência a coordenação e implementação das políticas de proteção e voltadas ao desenvolvimento sustentável das populações indígenas.
A Funai mantém em Itanhaém a sede da Coordenação Regional Litoral Sudeste, que atende aproximadamente 60 aldeias indígenas dos povos Guarani, Terena, Kaingang, Guarani Mbya Guarani Nhadeva, localizadas nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro. O trabalho é distribuído entre sete Coordenações Técnicas Locais (CTLs).
O Diário do Litoral conversou com Cristiano Hutter, coordenador da Funai Litoral-Sudeste, sobre a situação das aldeias e do trabalho realizado pelo órgão na Baixada Santista. As comunidades indígenas da Região estão localizadas nos municípios de Bertioga, São Vicente, Praia Grande, Mongaguá, Itanhaém e Peruíbe.
DL- Qual o número de aldeias indígenas e de índios na Baixada Santista?
Existe uma diferença de terra indígena para aldeia. A terra indígena é um território e dentro dele você pode ter algumas aldeias. Nós temos uma terra indígena em Bertioga, que lá se tem aglomerados de aldeias e uma liderança indígena (cacique). Temos uma aldeia, que não é terra indígena ainda porque não foi homologada e nem decretada, em São Vicente. É uma aldeia sobreposta dentro de uma unidade de conservação, onde habitam os índios Guaranis-Mybia. Temos uma aldeia recente, pouco mais de quatro anos, na Praia Grande, a Tekoa Mirim. Outras quatro aldeias em Mongaguá. Lá são duas terras indígenas e cada terra indígena tem duas aldeias. Temos mais duas aldeias em Itanhaém e mais uma comunidade de índios de contexto urbano, que a gente chama de aldeinha. E, em Peruíbe, temos sete aldeias na terra indígena Piaçaguera e mais o Bananal.
DL- E o número de índios?
A gente até tem esse número mais atual, coletado pela Sesai(Secretaria Especial da Saúde Indígena), que atua com a saúde, mas pode mudar de um dia para o outro ou de hoje para amanhã.
DL – Os números mudam por que os índios são nômades?
Não. Inclusive o conceito do nomandismo é equivocado. Eles não são nômades. Eles andam dentro de um espaço que eles reconhecem como deles. Nômade é quando você sai de um lugar e vai para outro desconhecido. Eles fazem o que chamam o caminho do Peabiru, que inclusive passa por São Vicente. Inclusive no sentido do litoral procurando crescer mais. (O Caminho do Peabiru ligava a Capitania de São Vicente à cidade de Cusco, no Peru. A trilha estendia-se por aproximadamente três mil quilômetros e também cortava o Paraná, Bolívia e Paraguai)
DL – Como a Funai avalia atualmente a questão indígena na Baixada Santista?
Quando eu vim trabalhar aqui, em 2001, a gente tinha sete aldeias. Poucos indígenas, onde todos estavam às margens da sociedade e não participavam das políticas públicas. Até hoje existe certa dificuldade, mas as pessoas os reconhecem, sabem que estão ali, ainda que não gostem. Antigamente não era assim. Você tinha poucas aldeias demarcadas na época, hoje você tem quase todas. Nessa região do litoral, se tem uma ou duas, no máximo, que são mais recentes, ou três por causa das áreas sobrepostas. Algumas não estão homologadas, mas não tem perigo de perder. A questão da subsistência, que é a parte social, também há um intercâmbio maior.
DL – Quais as dificuldades que a Funai enfrenta na Região?
Dificuldade se tem em todos os aspectos. Inclusive nós temos bastante dificuldades entre a gente. O maior problema no litoral é que existem algumas aldeias que ainda não foram definidas, e sem o território fica difícil implementar alguma coisa. Tem um problema sério de área sobreposta dentro de unidade de conservação, onde na cabeça do Governo do Estado uma árvore, uma borboleta ou um passarinho é muito mais valioso de que um ser humano diferente e que são senhores da Mata Atlântica, e a gente não consegue entrar em um consenso. Tem o problema da saúde, que é complicada, pois não fazemos gestões da saúde. Não somos responsáveis pela saúde e nem pela educação. Nós acompanhamos as ações e encaminhamos as demandas quando os índios nos procuram e quando a gente tem essa percepção também. Mas a responsabilidade da educação é do MEC (Ministério da Educação), da Secretaria da Educação do Estado e dos municípios. Da saúde se tem a Sesai, que é outro órgão, uma secretaria vinculada ao Ministério da Saúde, e o SUS (Sistema Único de Saúde) que são os aparelhos que os índios também utilizam. A gente tem que ficar respondendo todos os dias porque que não funciona. Há muita falta de conhecimento sobre quem são responsáveis pelas coisas.
DL – E qual é o papel da Funai?
A gente é responsável pelo encaminhamento e não pela gestão. O nosso papel é de encaminhamento. Nós não somos de fiscalização, pois não somos o Ministério Público. A gente acompanha as ações. Os nossos acompanhamentos se restringem a denúncia. Não é uma parceria.
DL – Com relação a valorização da cultura e da subsistência, existem projetos realizados nas comunidades?
A gente tem indígenas que são produtores e estão começando a comercializar para a alimentação escolar. A gente tem projeto com mulheres indígenas, de aperfeiçoamento de artesanato, onde a preocupação que a gente tem é de os índios, que estão próximo da cidade, não perder a tradição que os mais velhos ensinam para os mais novos. Todas as aldeias têm escolas, ainda que precárias, como no caso de São Vicente. Todos os professores são indígenas e as aulas são bilíngues. A questão da medincância, que não é um problema indígena, mas social, a gente se preocupa bastante, e, inclusive, já fizemos vários diálogos.
DL – A falta de demarcação e reconhecimento das terras é o maior problema enfrentado pelos indígenas no Brasil. Como a Funai vem atuando nesse sentido?
Depois que mudou a estrutura da Funai, em Brasília, houve um olhar diferenciado para a região de São Paulo, principalmente para os guaranis. Em um tempo de 10 anos, acredito que foi a região mais beneficiada em encaminhamentos fundiários. Disse de encaminhamentos e não de finalização. Tivemos agora um ganho muito forte. A aldeia na região do Jaraguá, em São Paulo, que é uma terra indígena dentro da área urbana da cidade. Conseguimos que o ministro decretasse aquela área. Agora a gente está com a aldeia que fica na Zona Sul, em Parelheiros, para juntar com as aldeias de Itanhaém, Mongaguá e Praia Grande. Vai ser uma terra indigena só.
DL – Essa área compreende o trecho em que o Estado tem projeto para passar uma nova rodovia, que ligará a capital ao litoral?
É naquele caminho mesmo. Não só o Estado tem interesse. Existe outras situações, como caminhos que eles estão querendo para fazer turismo, sem consultar a Funai, e que passam por dentro de terras já homologadas. Ou seja, quando eles querem fazer eles não perguntam, e quando a gente quer fazer tem que perguntar a eles. Já está no ponto para ser assinado o decreto. Na verdade, os índios já utilizam essa área há séculos. Só vai oficializar a história.
DL – Na Baixada Santista, existe um impasse com relação à aldeia de Paranapuã, localizada no Parque Estadual Xixová, em São Vicente. Como está a situação e a questão da terra indígena de Piaçaguera, em Peruíbe?
Hoje está judicializada a questão de São Vicente. Tem épocas que está mais fácil o diálogo com o Governo do Estado e tem épocas que o diálogo nem existe, como agora. Tudo o que se quer fazer lá tem que pedir a benção do Estado. Já Piaçaguera é uma terra hiper cobiçada por pessoas do ramo imobiliário, inclusive a maioria dos prefeitos do litoral são desse ramo. Então é natural que os municípios sejam contra essas terras indígenas. Ou seja, os índios são muito bons e bonitinhos lá no fundo, lá perto da serra, mas começou a vir para o lado da pista, para o lado da praia, não serve por causa da questão imobiliária. As pessoas têm os seus terremos porque invadiram terras indígenas. Piaçaguera é uma das mais antigas do País. Nós temos documentos dela que datam de 1545, na época dos jesuítas. Por isso que a gente conseguiu ganhar e, em 2011, houve a portaria declaratória do Ministério da Justiça. As pessoas acham que não existem leis. A terra não é dos índios. Eles têm o usufruto da terra. Você quer negociar com índio vai negociar a saída, mas a terra continua sendo da União e indígena.
DL – Como é a relação da Funai com os índios da Região?
Eu, particularmente, tenho uma relação muito boa. Logicamente que temos um entrave do poder público, mas posso te dizer que a relação é muito melhor do que em muitos lugares. A gente tem um diálogo muito bom. A gente vem promovendo as coisas, mas sabe que tem muito a fazer. Houve avanços, mas, hoje, as coisas estão muito ruins, com relação a questão fundiária – basta ver esse movimento ruralista muito forte. Tem um inimigo muito forte do outro lado, que não tem sensibilidade e só pensa em riqueza. Só que essa riqueza um dia terá um basta. Daqui a pouco será rico quem tiver água e mato. As terras indígenas têm tudo isso. Está comprovado que quem conserva as matas não são as unidades de conservação, são as terras indígenas. E os índios são senhores dessa mata aqui.
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Destaque: “Tem um inimigo muito forte do outro lado, que não tem sensibilidade e só pensa em riqueza” (Foto: Matheus Tagé/DL)