Velhos e jovens dançam, cantam e pensam no futuro. A preservação da exuberante natureza do Xingu no centro das preocupações
Em que lugar do país se pode presenciar uma reunião de lideranças políticas e espirituais onde as maiores preocupações são com a preservação da floresta e as mudanças climáticas, em que a questão ambiental ocupa espaço central e indissociável da sobrevivência das comunidades? Esse foi o tom dominante nas falas e colocações de quase todos os caciques e líderes dos 16 povos que vivem no Parque Indígena do Xingu, em festa que durou três dias na aldeia Moygu, do povo Ikpeng, entre 16 e 18 de setembro de 2015. “Nós indígenas conhecemos a essência da natureza. A natureza, ela não é para nós, ela faz parte de nós, ela é a nossa família terrena”, resumiu a certa altura o mestre de cerimônias do evento, Mayawako Juruna.
Pela aldeia Ikpeng que recebeu os cerca de 500 convidados de várias nações xinguanas e não-índios circulavam grupos de jovens e velhos, pintados e ornamentados, preparados para oferecer o espetáculo de suas danças e cantos tradicionais. Enquanto os líderes se reuniam no centro da aldeia, grupos organizados preparavam comida para essa pequena multidão – frutas, peixe moqueado, beiju, farinha, arroz, feijão, macarrão e as deliciosas pimentas Ikpeng – outros cuidavam para que não faltasse água fresca e suco de mel para os convidados. “Posso ajudar, posso ajudar?” era a senha repetida pelos organizadores ao microfone quando precisavam que alguém da organização fosse levar água ou cadeiras para o local das reuniões. O pedido em forma de oferta funcionava sempre.
Ao fim das conversas, apresentações de canto, dança e competições de arco e flecha envolviam todos os povos presentes no pátio central da aldeia, cercado pelas casas de arquitetura quase escultural. Ora os Kuikuro dançavam com suas flautas guturais, ora os Ikpeng com os corpos pintados de preto, ora os Yudjá cantando melodias envolventes com saias que eles mesmos tecem. Depois das apresentações, todos dançavam juntos, misturando melodias, adornos e tradições e chamando os não-índios a participar.
A festa comemorou os 20 anos da Associação Terra Indígena do Xingu (Atix), fundada na década de 90 do século XX para representar os povos xinguanos no trato com o estado brasileiro. Com vários convidados que participaram e continuam participando da história da associação (Rainforest Foundation, Instituto Socioambiental, Rede de Cooperação Amazônica) os líderes das comunidades se reuniram na casa de reuniões no centro da aldeia Moygu para falar do futuro. A preservação da exuberante floresta e da fartura de recursos do Xingu e a presença palpável das mudanças climáticas como preocupação central.
“O Xingu verdão, o Mato Grosso careca”, mostra no mapa o presidente da Atix Yacari Kuikuro, apontando para as imensas áreas desmatadas nas fazendas de soja que circundam e, cada vez mais, sufocam o parque. No mapa, o Parque Indígena do Xingu, também apelidado pela sigla PIX, é uma ilha de floresta no nordeste do Mato Grosso. O desmatamento no entorno, que vem deixando as terras dos não-índios cada vez mais carecas, como dizem os índios, causa problemas cotidianos no interior do território. Está muito mais quente agora com esse desmatamento todo, repetia-se nas conversas.
“Considera-se “entorno do Parque” a região do estado de Mato Grosso que se estende ao redor dos principais formadores do rio Xingu, desde suas cabeceiras. Correndo paralelas ao rio Xingu, duas grandes rotas rodoviárias funcionam como eixos de ocupação: a oeste do PIX, a Cuiabá-Santarém (BR-163); a leste, a BR-158. Nesse contexto regional adverso, os recursos naturais e a sociodiversidade do Parque são ameaçados de múltiplas formas ao longo de cerca de 900 km de perímetro”, diz o Instituto Socioambiental (ISA), um dos principais aliados das populações xinguanas na solução desses problemas e responsável, junto com a Atix, por um programa de monitoramento das consequências da ocupação no entorno, o chamado Projeto Fronteiras.
A vizinhança com os grandes latifúndios de soja, gado, milho e seringais plantados provoca problemas incontáveis. O veneno usado pelos fazendeiros contamina cursos d’água, o gado por vezes invade o território e até porcos-do-mato que se alimentam do milho nas fazendas e por isso aumentaram muito de população, após a colheita invadem as roças indígenas, causando grandes prejuízos. O avivamento dos marcos territoriais que delimitam o Parque é, por esses motivos, uma reivindicação constante.
Proteger essa ilha é a missão das velhas e das novas gerações dos xinguanos. “Nossos velhos estão nos deixando. O Mato Grosso está careca, todo mundo sabe. Nossos inimigos são muitos”, disse o cacique Atapuxá Waurá, exortando os jovens a participarem da associação e das lutas políticas para defender o território. O mestre de cerimônias Mayawako Juruna, sempre pontuando os debates, disse que a palavra-chave para entender o que acontece no Xingu é respeito. Respeito, para os povos xinguanos reunidos na festa, estava faltando por parte da Fundação Nacional do Índio, que por estar com presidentes interinos há cerca de dois anos, não enviava sua autoridade máxima até a região.
Recém-empossado, João Pedro Gonçalves, presidente não mais interino da Funai, era aguardado na festa da Atix. Depois de algumas mudanças da agenda, ele finalmente pousou na aldeia Moygu no dia 17 de setembro para ouvir os caciques. “Funai caiu muito. Tem que olhar Jatobá, onde habitamos há muito tempo”, disse o cacique Jakalo Kuikuro, reivindicando a demarcação de terras tradicionais que estão fora do parque. O aumento da população xinguana, uma das vitórias associadas à proteção do território, impõe o desafio de garantir recursos para todos.
Na época do contato com a sociedade não-indígena, a situação dos povos xinguanos deteriorou de forma dramática. Os Panará do rio Peixoto de Azevedo foram reduzidos a 70 indivíduos pela abertura da BR-163. Dizimados, foram encontrados e trazidos para o parque em 1975, onde anos depois conseguiram a demarcação de um território próprio, próximo ao PIX, nas cabeceiras do rio Iriri, entre o Mato Grosso e o Pará. Hoje, contam mais de 700 indivíduos. É deles uma das vitórias judiciais mais importantes dos povos indígenas brasileiros massacrados por políticas do regime militar. Em 2003, por meio de uma ação judicial, obtiveram indenização pelos danos sofridos.
“Nos ajude a afastar os fazendeiros”, disse o cacique Panará, Putikũ, ao falar com o presidente da Funai, dando o tom de uma das preocupações mais urgentes da população xinguana. Assim como o reconhecimento dos territórios tradicionais que ficaram excluídos do Parque do Xingu – o desenho original do território, feito pelos irmãos Villas Bôas, acabou diminuído consideravelmente pela política do governo do Mato Grosso de alienar terras indígenas para fazendeiros. Um desses territórios é a Terra Indígena Jatobá, de ocupação tradicional do povo Ikpeng, excluída do parque e atualmente em processo de delimitação e reconhecimento.
Sem respostas imediatas para dar às reivindicações dos líderes xinguanos, o presidente da Funai, João Pedro Gonçalves, atacou as PECs (Propostas de Emendas Constitucionais) propostas pela bancada ruralista que tramitam no Congresso Nacional para retirar direitos dos índios. “Esse Brasil, ele é verde e amarelo, ele é bonito, mas ele não pode passar por cima daqueles que aqui estavam. Esse país recebeu de braços abertos japoneses, italianos, portugueses, americanos, porque vamos negar direitos aos povos indígenas?”, perguntou à audiência toda pintada e ornamentada para a festa.
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Imagem créditos: Helena Palmquist – ascom MPF/PA