Por Renato Santana, Assessoria de Comunicação – Cimi
O Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região determinou a realização de um novo júri referente ao caso da morte do missionário jesuíta Vicente Cañas (na foto, de barba), assassinado em abril de 1987 no barraco que mantinha às margens do rio Juruena, no Mato Grosso, dentro da Terra Indígena Enawenê-Nawê. O desembargador I’talo Fioravante Sabo Mendes acatou o pedido do Ministério Público Federal (MPF) pela nulidade do júri sob o argumento de que os jurados não consideraram provas substanciais apuradas durante o processo.
Em outras palavras, o TRF-1 anulou o primeiro julgamento, realizado quase duas décadas depois do assassinato, no qual o júri inocentou o então delegado de Polícia Civil de Juína, Ronaldo Antônio Osmar. De acordo com as provas levantadas e depoimentos, o delegado foi o agenciador dos oito indivíduos que emboscaram o missionário, matando-o a golpes de porrete na cabeça e facadas na barriga com a expressa orientação dos mandantes de que o crime parecesse ter sido cometido pelos indígenas. O delegado Osmar chegou a presidir o inquérito que investigou o assassinato declarando que o assassinato era obra dos índios insatisfeitos com a presença de Cañas no local.
Conforme o MPF, o Conselho de Sentença desconsiderou provas substanciais colhidas durante o processo, envolvendo testemunhos e o laudo cadavérico, além de misteriosas tentativas de sumiço das provas. O crânio de Cañas desapareceu da sede do Instituto Médico Legal (IML) de Belo Horizonte (MG) enquanto passava por análise pericial. Dias depois, foi encontrado por um transeunte numa praça da cidade. “Os jurados, realmente, deram as costas ao acervo probatório ignorando os depoimentos colhidos na fase instrutória em confronto unicamente com o interrogatório do réu, que ao tempo todo negou sua participação no episódio, o que já era de se esperar”, afirmou o MPF nos autos de apelação.
Para os procuradores do MPF, a defesa do acusado “estrategicamente tentou afastar a materialidade do delito, sob a argumentação de inexistência de provas, no que tange à causa da morte. Porém, os jurados reconheceram que a morte do padre Vicente foi causada por terceiras pessoas”. O MPF aponta ainda manipulações na investigação visando beneficiar os assassinos: “As diversas tentativas no sentido de mascarar e/ou procrastinar as investigações na fase do inquérito foram propositadamente efetivadas pelo recorrido, delegado de polícia na cidade de Juína/MT, na época do acontecimento”.
A assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Michael Mary Nolan, advogada de acusação no primeiro julgamento, afirma que “toda Justiça que tarda, falha. Como o júri aconteceu quase 20 anos depois do assassinato, o crime prescreveu para os assassinos por conta da idade que tinham na ocasião do julgamento. Pode acontecer a mesma coisa agora”. Para Michael, porém, a decisão do TRF-1, mesmo que tardia, engendra uma história que não pode ser esquecida e a qual sempre se deve fazer memória.
Vicente Cañas, chamado pelos indígenas de Kiwxi (na foto, pedra esculpida pelos Enawenê), era integrante do Cimi e à época membro do Grupo de Trabalho da Fundação Nacional do Índio (Funai) para a demarcação do território Enawenê. Nascido na Espanha, o missionário morava na aldeia, falava a língua Enawenê e mantinha os mesmos costumes dos indígenas. Depois de sua morte, Kiwxi passou a fazer parte das histórias, ou mitos, dos Enawenê. Os indígenas falam do missionário como se ele fosse um integrante nato do povo.
O assassinato
Kiwxi, ao lado do também jesuíta Tomás Aquino Lisboa, esteve no contato com os povos em situação de isolamento voluntário do noroeste do Mato Grosso, entre eles os Myky e os Enawenê-Nawê, na primeira metade da década de 1970. Os missionários, fundadores do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e membros da Operação Anchieta (Opan), decidiram acessar os grupos por conta das frentes de colonização cada vez mais próximas das áreas de perambulação desses índios; quando os colonos chegavam, costumavam exterminar os indígenas que encontravam.
O contato e mapeamento dos territórios tradicionais dos povos frearam a sanha colonizadora, mas não a pararam por completo e trouxeram aos jesuítas inimigos violentos e sanguinários. Kiwxi era destemido na enculturação que praticou junto aos Enawenê: enfrentava grileiros, que passavam a reivindicar como propriedade centenas de hectares dentro das terras indígenas, e madeireiros, que até hoje assombram a vida dos Myky e Enawenê. A Funai, herdeira de mais de uma década de ditadura militar e então presidida pelo hoje senador Romero Jucá, já naquela época atrelado a todo tipo de invasor dos territórios indígenas, pouco ou nada fazia.
Em um dos episódios, contado por um indígena Rikbaktsa, Kiwxi tirou das terras Enawenê, em sua própria voadeira, capangas que abriam uma picada grileira para a retirada de madeira, às margens do rio Juruena. Os indivíduos estavam num local chamado Porto da Londrina, fazenda grilada da terra indígena. Na ocasião, o missionário pediu que todos se retirassem ou então seriam denunciados às autoridades, além de terem de enfrentar os Enawenê, conhecidos nas redondezas como os Salumã, famosos por serem arredios e guerreiros. Kiwxi, depois de retirar os invasores, foi ameaçado de morte – o que não era novidade. Dessa vez, no entanto, a ameaça se cumpriu: Pedro Chiquetti, então proprietário da ‘Fazenda’ Londrina, foi um dos mandantes do assassinato, conforme o processo judicial.
A emboscada
Por uma picada partindo da Londrina, os homens arregimentados pelo delegado Osmar, e pagos por Chiquetti, chegaram ao barraco de Kiwxi. José Vicente da Silva, Martinez Ababio da Silva, José Augusto, empregado de Martinez, Camilo Carlos Óbici e outros dois homens, todos acusados no processo judicial, espreitaram o missionário jesuíta. Escondidos na mata, viram quando Kiwxi saiu para tomar banho no rio e um deles aproveitou a oportunidade para acoitar-se no interior do casebre. Quando Kiwxi retornou do rio, foi abordado. Na sequência, os outros assassinos entraram no casebre e o mataram. O corpo foi levado para o quintal, atrás do barraco.
Kiwxi mantinha o barraco afastado da aldeia Enewenê para nele guardar as “coisas de branco”, rádio, roupas, utensílios, ferramentas, além de ver no lugar a possibilidade de verificar se trazia consigo alguma doença ainda não manifestada. Fazia então uma quarentena antes de se dirigir ao convívio com os indígenas, que envolvia se vestir como eles, por exemplo. Kiwxi tinha uma pequena roça, plantou diversas árvores frutíferas e no período em que fazia quarentena costumava pescar para levar os alimentos aos Enawenê. A rotina era regrada, justamente por isso Tomás, que vivia junto aos Myky, estranhou a falta de notícias do companheiro, via rádio.
Com outros missionários do Cimi, Tomás se dirigiu ao barraco e lá chegou cerca de 15 dias depois do assassinato. O corpo estava mumificado. O grupo se dirigiu à aldeia para avisar aos Enawenê, que um dia depois se dirigiram com os missionários ao barraco para realizar o enterro conforme os costumes do povo. As árvores que Kiwxi plantou seguem dando frutos, ladeando o que restou do barraco: símbolo do martírio de Vicente Cañas.